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MEMES: Apropriação da arte na construção de sentido no contexto politico da COVID-19

Dayana Côrtes

O distanciamento da arte tradicional

Na vertente das mudanças tecnológicas, Flusser (2012) comenta acerca dos objeto e inobjetos. Para ele, enquanto o objeto denotaria uma criação/função estética, o inobjeto seriam informações, conhecimento. No âmbito tecnológico, o objeto seria o hardware (material) e o inobjeto o software (impalpável). Essa comparação se estabelece à medida que o hardware se mostra cada vez mais barato em relação ao software, representado pelo conhecimento. A cada passo que damos para longe das bibliotecas (acervo físico), caminhamos para a tecnologia (acervo impalpável). Entretanto, Flusser (2012) estabelece uma relação com outra caminhada, a do nascimento à morte, o único destino sobre o qual temos certeza. Porém existe uma reflexão sobre a mudança de padrão de comportamento das pessoas, acerca do que gostariam de construir nesse “intervalo” entre um e outro — bens (objetos: casa, carro, dinheiro) ou conhecimento (inobjetos: viagens, informações, vivências)? O autor ainda faz uma análise da sociedade pautada em informação:

Nossa vida se assemelha mais à do operário e do burguês da Revolução Francesa do que à vida dos nossos filhos, os que brincam com jogos eletrônicos e computadores. Tamanha a transformação que a moleza das informações produziu. Por certo: tal comparação com a Primeira Revolução não vai tornar a nossa situação mais cômoda mas nos ajudará a tomarmos distância dos eventos.

(FLUSSER, 2012, p. 33)

Entretanto, Flusser (2012) indica uma recusa dos valores que até então eram aceitos no passado. Aponta para o surgimento de uma sociedade de mãos atrofiadas, sugerindo que a tecnologia nos afastará dos afazeres manuais, rompendo com o mundo antigo e formando o “novo homem”. Ele manipulará teclas de computadores, porém o seu fim será o mesmo, a morte. Contudo, Kittler (1987) presume na tecnologia uma esperança de registrar os inobjetos para as futuras gerações, por palavras, sons e imagens. O fonógrafo de acordo com Kittler (1987), foi uma invenção que possibilitou registrar a despedida dos que esperavam pelo passamento. Tamanha a importância que existia na vida ou na experiência de passagem, o fonógrafo seria a oportunidade de preservar sonoramente memórias.

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Longe dos dilemas acerca da morte, Manovich (2017) comenta o avanço da tecnologia e dos padrões artísticos. Descreve que a partir de 1960, o avanço tecnológico ameaçou a arte tradicional (desenho, pintura, escultura), possibilitando novos caminhos e experimentações com a finalidade de diversificar o fazer artístico. Manovich (2017) data que, entre 1980 e 1990, o meio digital trouxe novas alternativas, fazendo com  que se pudesse usar vários formatos ou mídias em uma rede, algo que possibilitou o alcance de mais pessoas e as mais diversas maneiras de se fazer arte. Isso aponta que:

“O“aqui agora” se faz pelo fluxo no deslocamento dos arquivos pela rede”.

(BEIGUELMAN, 2003, p. 22)

Os avanços tecnológicos ultrapassaram os aparelhos digitais e alcançaram os aparelhos domésticos por meio da internet das coisas1. A cada avanço, a busca pela facilidade nas relações humanas torna o apontamento de Flusser (2012), sobre uma sociedade de mãos atrofiadas, uma realidade com pessoas cada vez mais distantes dos trabalhos manuais, porém imersas na cibercultura.

Cibercultura

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Reprodução: Internet/ Giphy.com

André Lemos (2003) define a Cibercultura como a relação entre sociedade, tecnologia e cultura. Com a evolução tecnológica, o autor entrevê o momento que vivemos, como marcado pelas tecnologias digitais, como a cibercultura. Lemos sugere que:

Toda mídia altera a nossa relação espaço-temporal.

(LEMOS, 2003, p. 3)

Já que as lives nos aproximam cada vez mais e rompem as barreiras impostas pela distância.

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Lemos (2003) sugere que a tecnologia nos torna a sociedade da informação, quando nos conecta em tudo e a todos os lugares, sem deixar de considerar que existe uma sociedade excludente, pois  a participação na rede depende de conexão na internet e de um conhecimento prévio, digo conhecimento quando me refiro a alfabetização e também a expertise de manipular smartphone, computador e aparatos tecnológicos.

Lemos (2003) considera ainda que a escrita, no contexto espaço-temporal, é instrumento de memória que registra o tempo, o que nos remete a Kittler (1987), no que tange ao ato de escrever como procedimento pessoal e íntimo. Kittler considera o avanço das mídias como forma de distribuição das memórias, importando-se com fato do fim ser a morte, ao passo que Lemos (2003) ainda conclui que na evolução dos meios eletrônicos, do telégrafo à internet, passando pelo rádio televisão, a emissão da informação se estende além do espaço e do tempo, pois segundo o autor:

Cada informação midiática altera nossa percepção espaçotemporal, chegando na contemporaneidade a vivenciarmos uma sensação de tempo real, imediato, “live”, e de abolição do espaço físico geográfico.

(LEMOS, 2003, p.3)

Porém, o autor ainda acrescenta que existe desvantagens no tempo real, pois a necessidade de resposta pode apressar a reflexão e argumentação.

Vivemos uma nova conjuntura espaço-temporal marcada pelas tecnologias digitais e telemáticas onde o tempo real parece aniquilar, no sentido inverso à modernidade, o espaço de lugar, criando espaços de fluxos, redes planetárias pulsando no tempo real, em caminho para a desmaterialização dos espaço de lugar. Assim, na cibercultura podemos estar aqui e agir à distância. A forma técnica da cibercultura permite a ampliação das formas de ação e comunicação sobre o mundo.

(LEMOS, 2003, p.3)

Lemos (2003) ao se referir à modernidade, remete à sociedade de consumo, em que os meios eram para a massa. Entretanto, na contemporaneidade regida pela informação, Nunes (2016) ressalta a relação das redes sociais com as fakes, visto que existem usuários que criam perfis fakes, seus próprios e até de outras personalidades. Essas fakes demanda dos usuários uma certa ‘vivência tecnológica’ para identificar a malícia que se apresentam na rede:

Não se pode acreditar em tudo, evidentemente. E, indo além, [a tecnologia] coloca em xeque também nossa capacidade de discernimento e análise diante de um volume incomensurável de situações nesses novos meios. Ora, é impossível verificarmos a veracidade de toda informação que recebemos, seja por qual meio for. Acreditamos naquilo que apresenta ser verdadeiro. Ou dá-se crédito a algo pelo lugar  – o contexto, melhor definindo – no qual se encontra.

(NUNES, 2016, p. 29)

O contexto da fake se resumirá em uma farsa. Em veículos de informação de credibilidade como os da imprensa as informações são checadas, entretanto no ambiente virtual as informações se espalham e as pessoas não costumam fazer a verificação antes de repassarem, contribuindo para a desinformação.

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Em decorrência dessa ampliação nas formas de comunicação, Lemos (2003) aponta o e-mail como uma ferramenta que revolucionou as relações de comunicação. Entretanto, na data de publicação em que Lemos se baseia, ainda não existia Whatsapp, aplicativo que dentro do nosso contexto de práticas comunicacionais tem se mostrado uma ferramenta instantânea para lazer e trabalho. O Whatsapp também demonstra a reconfiguração das ferramentas tradicionais, as quais Lemos (2003) entende terem sido necessárias para atender a cibercultura, como a evolução das revistas on-line, jornal e rádio on-line entre outros. O autor ainda aponta que a Internet não é uma mídia de massa, pois ela não corresponde a uma única ação, quando se está na internet a pessoa pode estar assistindo a um jornal ou enviando um e-mail. Assim o autor define que:

A internet é um ambiente, uma incubadora de instrumentos de comunicação e não uma mídia de massa, no sentido corrente do termo.

(LEMOS, 2003, p.5)

A cibercultura procura novas maneiras de se relacionar, e neste contexto, os artistas acompanharam a evolução da tecnologia envolvendo arte, como apontado por Kittler (1987) e Lemos (2003) assim, autor e público se misturam efetivamente, tornando a interatividade aliada na arte eletrônica.

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Memes e apropriação da obra de arte

No contexto de arte e sua apropriação, os memes promovem mudanças no significado. Não somente no sentido da obra, em parte promovido pelo meio que a divulga, mas também no lugar da fala que a obra oferece aos que necessitam ter voz ativa. No museu, as obras são apresentadas como objeto de culto e contemplação; entretanto, na cibercultura a apropriação permite a criação de novos significados e outros sentidos, sem desmerecer seu status artístico e os que apreciam a obra de arte no entendimento de seu contexto histórico. Os memes consideram uma releitura crítica, contrária ao “capitalismo fofinho”, mas com o enriquecimento de uma postura política.

@Artes Depressão

Quando falamos em arte é comum lembrarmos as obras que compõem o acervo dos museus, porque elas carregam valor histórico e cultural. Porém, é importante mencionar que muitas pessoas não têm acesso a esses ambientes. Por vezes, falta conhecimento artístico para entendimento do valor histórico/cultural que essas obras carregam.

Arquivo pessoal: A Balsa da Medusa
Autor- Théodore Géricault, 1818
Técnica: Óleo sobre tela, 4,91m x ,16m/ Localização: Museu do Louvre

Ao observar uma imagem na ótica da percepção digital, Basbaum (2012) propõe uma relação sinestésica que envolve outras ciências como a psicologia, fisiologia e neurologia. Sinestesia é definida por Basbaum (2012, p. 246) como “muitas sensações simultâneas”, que sugerem sensações perceptíveis na arte e na tecnologia. Portanto, se entendermos o “meio” como o veículo, sugerido por MacLuhan, assimilamos que nas redes sociais encontramos diversas formas de arte em entretenimento. Digo arte em entretenimento, em sua versão rasa, porque Giselle Beiguelman (2020)2 compreende os emojis arredondados como capitalismo criativo que ela denomina “capitalismo fofinho”:

A lógica do capitalismo fofinho [está] explícita nos ícones gordinhos e arredondados da web 2.0, um design de informação que parece amortecer qualquer forma de conflito e apresenta um mundo cor-de-rosa e azul-celeste (pense no passarinho do Twitter). A forma mais bem acabada desse tipo de design é a do Facebook, o empreendimento on-line mais bem sucedido de todos os tempos.

(BEIGUELMAN, 2020)

O capitalismo fofinho resulta em associar a rede de amizade com um espaço feliz onde todas as coisas podem ser medidas por um like. Como ainda sugere Beiguelman (2020), o capitalismo fofinho leva-nos a usar emojis fofinhos que não expressam a realidade de uma discordância ou abre espaço para o debate. Emojis arredondados que simbolizam uma realidade sem dor.

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Em outra vertente, os memes podem ser associados a um tipo de arte contextual, pois:

[…] uma arte tida como contextual agrupará todas as criações que se ancoram nas circunstâncias e se mostram desejosas de “tecer com” a realidade.

(NUNES, 2016, p.33)

A identificação como meme é instantânea, atribuída à imagem e ao hipertexto. Sobre o hipertexto, Giselle Beiguelman (2003) orienta ser importante entender a situação da informação, o conteúdo e a rede utilizada, para que se possa compreender sua mensagem.

O Covid -19 e os memes

O COVID-19 é um assunto que está em ênfase no mundo todo, devido à agressividade do vírus e às medidas de isolamento que a OMS – Organização Mundial da Saúde3 propõe. Os memes têm explorado esse assunto, e seus praticantes encontraram uma maneira de informar a população e entreter ao mesmo tempo.

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A cibercultura e a relação estabelecida entre arte e meme formam uma rede que propõe mais que entretenimento. Essa rede estabelece uma cronologia aberta e irrestrita entre informação, entretenimento e publico, que é beneficiado pelo longo alcance dos posts e pela facilidade de compreensão dos memes, o que determina um público abrangente. Conforme sugere Beiguelman (2020), os “memes vão contar a história da Coronavida”, enfatizando a liberdade de circulação e expressão que o meme tem com a sociedade.  

Memes são uma espécie de jornalismo a quente […] um noticiário paralelo, em tempo real e baseado em imagens. Nada escapou aos memes: a política nacional, o cotidiano das redes, as agruras do teletrabalho.

(BEIGUELMAN, 2020)

Neste contexto, iremos montar a trajetória do vírus da COVID-19, através de alguns memes sobre o tema, publicados pelo perfil do Facebook @artesdepressão que se apropria da arte de maneira que alcança o publico e informa acerca da prevenção do vírus, além de fazer crítica aos acontecimentos com linguagem irreverente e irônica, associando imagem e mensagem.

*As publicações são de março à dezembro de 2020.

Referência

BASBAUM, Sérgio. “Sinestesia e percepção digital”. PUC/SP. Teccogs, n. 6, 2012. p. 245-264. (Disponível em http://www4.pucsp.br/pos/tidd/teccogs/artigos/2012/edicao_6/9- sinestesia_e_percepcao_digital-sergio_basbaum.pdf)

FLUSSER, Vilém. Do inobjeto. ARS,  São Paulo,  v. 4, n. 8, p. 30-35, 2006.  DOI: https://doi.org/10.1590/S1678-53202006000200003.

KITTLER, Friedrich; VON MUCKE, Dorothea; SIMILON, Philippe L. Gramophone, Film, Typewriter. October, Cambridge, v. 41, n. 102, p. 101–118, 1987. DOI:  https://doi.org/10.2307/778332   

LEMOS André; Cunha, Paulo (orgs). Olhares sobre a Cibercultura. Sulina, Porto Alegre, 2003; pp. 11-23

MANOVICH, Lev. Une esthétique post-média. Appareil, Paris, n. 18, p. 0–14, 2017. DOI: https://doi.org/10.4000/appareil.2394

(versão em inglês:  http://manovich.net/index.php/projects/post-media-aesthetics

NUNES, Fabio Oliveira. Mentira de artista: arte (e tecnologia) que nos engana para repensar o mundo – São Paulo: Cosmogonias Elétricas, 2016.

BEIGUELMAN, Giselle. O livro depois do livro. São Paulo: Peirópolis, 2003. Disponível em: http://www.desvirtual.com/thebook/ebook.htm. Acesso em: 25 ago. 2020.


[1] “Internet das Coisas” se refere a uma revolução tecnológica que tem como objetivo conectar os itens usados do dia a dia à rede mundial de computadores. Cada vez mais surgem eletrodomésticos, meios de transporte e até mesmo tênis, roupas e maçanetas conectadas à Internet e a outros dispositivos, como computadores e smartphones. Fonte: TechTudo. Acesso em 28 de outubro de 2020 às 22:15h.

[2] Gabriel, Ruan de Sousa : ‘Memes vão contar a história da coronavida’.  O globo, São Paulo, 23, novembro de 2020. O segundo carderno . Disponível em: https://oglobo.globo.com/cultura/memes-ajudarao-contar-historia-da-temporada-covidica-diz-artista-visual-giselle-beiguelman-24750952 . Acesso em: 24, novembro de 2020.

[3] Transmissão de SARS-CoV-2: implicações para as precauções de prevenção de infecção.  https://www.who.int/news-room/commentaries/detail/transmission-of-sars-cov-2-implications-for-infection-prevention-precautions . Acesso em 09 de dez. de 2020.

Foto de destaque: @artedepressão