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Entre a produção de conteúdo e a arte: quando o mimetismo, a disrupção, a crítica e a originalidade fazem parte de um conteúdo

Todes somos autories*, mas será que todes somos artistas? Afinal, o que é ser artista na contemporaneidade?  

A partir dessas questões iniciais, analiso aqui o produtor de conteúdo @startupdareal, que, utilizando de estratégias comuns tanto na arte, como nas redes sociais, tais como o anonimato, a disrupção e o mimetismo, divulga um conteúdo crítico ao que chama de empreendedorismo de palco, sobre o qual explico melhor a seguir. 

*Importante: o presente ensaio foi construído em linguagem neutra de género, utilizando os parâmetros do “Sistema Elu” apontados no artigo de Pedro Valente. Dessa forma, destaco  aqui que quando não souber o género de alguém ou para me remeter a um grupo com diferentes géneros, será utilizada a linguagem neutra.

Startup da Real: o anonimato entre as mentiras e as realidades

Print do perfil do Startup da Real (05/12/2020)Startup da Real é como se autodenomina o produtor de conteúdo no Twitter, no Instagram, no Medium e autor do livro “Este livro não vai te deixar rico: Descubra a verdade sobre empreendedorismo, startups e a arte de ganhar dinheiro”. Sem revelar seu nome ou identidade, o Star – como é chamado pelos seus seguidores – começou em novembro de 2017 publicando conteúdos desmistificando e criticando conteúdos sobre o empreendedorismo e as dicas comuns de coaching, inicialmente usando de uma linguagem mais descontraída. Ou seja, falando “a real” (a realidade).

Startup da Real: personagem anônimo

O criador do perfil Startup da Real optou pelo anonimato desde o início com o objetivo de evitar que o perfil se centrasse na pessoa dele. Em uma entrevista de 2019, o anônimo afirma: “Não queria que a discussão fosse sobre mim, mas sim sobre o empreendedorismo”. 

Print do Stories do Instagram do Startup da Real (30/11/2020)
Print do Stories do Instagram do Startup da Real (30/11/2020)

Enquanto muitas pessoas usam a internet para se tornarem famosas, o Star se opõe a isso. Na mesma entrevista de 2019, ele falou: “Não quero ser famoso, só quero divulgar as minhas ideias”.

Vale frisar que, ainda que seja contrário à ideia de fama, ele se tornou famoso e tem o apelido de Star, que é justamente “estrela” em inglês. Uma palavra cuja cognição remete às pessoas famosas, às “estrelas da TV” ou “estrelas da Internet” – por exemplo. 

Mesmo que use do anonimato como estratégia, o criador de Startup da Real se construiu e se constrói constantemente como uma persona criativa individual, ao assumir características pessoais. Muitas dessas características surgem a partir de perguntas feitas pelas pessoas e respondidas pelo seu criador, inclusive com fotos ilustrando tais respostas.

Outro ponto é que o autor tem uma figura real, que, inclusive, participa de palestras presenciais, como o Festival de Inovação e Cultura Empreendedora (FICE) 2019. Porém, mesmo assim e com as informações que temos hoje, não há como comprovar que a pessoa que ali está seja realmente o criador do perfil Startup da Real. A história que ele nos conta até o presente momento – a qual aqui acreditamos, nos diz que sim, trata-se de uma pessoa real. Usando uma máscara preta, óculos escuros e capuz preto, assim como na sua foto atual de perfil nas redes sociais, o Star se apresenta em palestras presenciais e online. Dessa forma, Startup da Real sustenta um personagem criado por sua linguagem e também pela sua imagem.

Foto do site Revista PEGN.

Nesse ponto, vale resgatar a trajetória do fictício Ary Itnem Whitacker – nessa matéria ainda apontado como verdadeiro, criado pelo jornalista Ricardo Kauffman e apresentado no documentário “O Abraço Corporativo” (2009). Nele, o falso consultor se apresenta como porta-voz brasileiro da Confraria Britânica do Abraço Corporativo (CBAC) – instituição igualmente inventada – e levanta questões como: será que a prática do abraço poderia aumentar a produtividade – e por extensão, o lucro – de empresas? Para aferir maior realidade, um ator incorpora o simpático representante da CBAC. Dessa forma, assim como Star faz, as ações de “O Abraço Corporativo” se utilizam estrategicamente de formas do contexto da mídia e da construção de ícones para, justamente, criticá-las.

 A diferença, por enquanto, é que a construção feita por Ricardo Kauffman já foi entendida como arte e analisada pelos recursos utilizados. Já a produção feita pelo anônimo de Startup da Real, segue sendo uma incógnita, o que nos instiga ainda mais.

Foto do site Revista PEGN.

Quem é o Startup da Real: características da persona criativa individual

O que se sabe do Star é que ele é homem, tem 36 anos, possui tatuagens no corpo, é casado com uma médica, gosta de assistir o desenho Naruto, joga Warzone no Playstation, ama comida japonesa e gosta mais de ano novo do que de Natal. Também se sabe de alguns “nãos” sobre ele: não mora em Mogi/SP, não sabe jogar xadrez (ainda que saiba as regras), não precisou tirar os sisos, não curte muito dar palestras online, não curte acompanhar Fórmula 1. 

Abaixo, alguns prints que mostram falas dele sobre os assuntos citados:

Startup da Real: entre a arte e a produção de conteúdo

Os conteúdos do Startup da Real possuem um contexto muito forte: ele critica o empreendedorismo de palco, ou seja, o empreendedorismo que sempre dá certo e não mostra a realidade – seja ela o fato da pessoa ter nascido em família rica, seja a chance percentual de um novo negócio dar errado ser muito maior do que a de dar certo. 

A seguir, um trecho do livro do Startup da Real que explica os riscos do empreendedorismo de palco.

O que é "empreendedorismo de palco" segundo o Startup da Real.

O criador do Star conhece muito bem esse contexto, a ponto de usar da linguagem dele para fazer suas críticas. Um dos melhores exemplos disso é o nome e a capa do livro de sua autoria “Este livro não vai te deixar rico”, onde fala o que as pessoas querem (ser ricas), mas coloca um “não” ali no meio. Na diagramação visual da capa tal estratégia fica ainda mais evidente, de forma que quem vê o livro de longe, em uma prateleira, logo se atrai pelo que é mais fácil de ler pelas cores de maior contraste: “Este livro vai te deixar rico”, uma vez que o “não” só dá para ver de perto, em uma cor de menor destaque. 

Capa do livro do Startup da Real

A escolha do nome e das cores da capa foi proposital, como mostra uma fala do Star feita durante uma entrevista de fevereiro de 2020: “Já tem uma brincadeira de o ‘Não’ estar meio ofuscado, para a pessoa achar que é uma coisa e quando chega perto vê que é outra – inclusive é interessante, pois as coisas de perto não são o que achamos que é.”

Outro exemplo é a linha de conteúdo voltado para dicas de produtividade, onde utiliza de uma linguagem otimista – típica des profissionais de coaching – para quebrar paradigmas criados por elus mesmes. Assim como os posts des coachings de sucesso, Star começa com uma frase motivacional, ou seja, se valendo de um mimetismo para se aproximar de uma realidade. Sobre o mimetismo, vale destacar os conceitos apresentados por Fábio Oliveira Nunes no livro “Mentira de Artista” (2009), disponível para download no site do autor. Segundo Nunes, “Na biologia, mimetismo é uma relação ecológica em que criaturas de uma determinada espécie buscam parecer-se com outros organismos, partes ou objetos do meio ambiente em troca de algum benefício, como proteção ou alimento.” (Nunes, 2009, páginas 34 e 35).

Já no âmbito da arte e dos objetos analisados no mesmo livro, Fábio nos diz que “A ideia de mimetismo justamente busca dar suporte a uma forma de enxergar estas manifestações artísticas em sua complexidade, mantendo aquilo que é essencial em todas as ações: o ato de se passar por aquilo que não são, tal como na natureza.” (Nunes, 2009, página 38)

No caso do Star, ele usa tal mimetismo, ou seja a estratégia de se passar por algo, como isca para capturar a atenção de pessoas que buscam por dicas de empreendedorismo. Porém, logo em seguida quebra essa similaridade e mostra a falácia que há por trás dessa ideia. Seria como um predador que se disfarça no ambiente de sua presa, para, em seguida, abocanhá-la. A diferença é que esse “abocanhamento”, no caso, faz bem à presa, por lhe desiludir e evitar uma queda maior no futuro. 

Outro ponto de disrupção, é o fato da linguagem adotada pelo anônimo ser direta, sem rodeios e com um tom debochado. Isso faz oposição à linguagem estritamente otimista, com frases prontas e de motivação, tipicamente praticada peles coachings e também peles empreendedories de palco anteriormente comentados aqui.

Tal linguagem pode parecer mera brincadeira, mas o próprio autor, em entrevista de 2019 no lançamento do livro, explica que não é. “O que eu escrevo não é mentira. É absurdo, é engraçado porque é verdade”. Inclusive, seu conteúdo pode ser entendido como uma fonte para entender as mentiras que empreendedories de palco contam, uma vez que mostra um outro lado sobre temas levantados por elus.

Mas, afinal, o que é mentira? Para Fábio Oliveira Nunes, mentira pode ser ilusão, fantasia ou fazer o outro acreditar, simplesmente. Dessa forma, Star parte da fantasia sobre o empreendedorismo contada peles coachings para nos trazer outros dados e um outro lado dessa história. Fazendo, assim, uma ruptura com o que é posto como verdade. 

Para mostrar a verdade por trás das publicações do Twitter e Instagram, assim como provar os contrapontos críticos que apresenta, o autor anônimo possui um perfil no Medium – uma plataforma de publicação de blog muito popular, usada para divulgação de textos e artigos. Nela o autor publica conteúdos mais embasados, traz dados sobre o tema abordado e exemplos sobre o que está argumentando. É, assim, uma das formas que ele combate o que chama aqui de “empreendedorismo autoajuda e conhecimento superficial” na prática.

Print do perfil do Startup da Real no Medium (06/12/2020).

Foi a partir de tais textos publicados no Medium, que Star gerou dois produtos: o livro – já citado aqui antes, e, posteriormente, a newsletter semanal. Em uma definição simples, newsletter é um tipo de distribuição regular, gratuita ou não, para assinantes via e-mail e que aborda um determinado assunto. No caso de Star, trata-se do envio de textos mais profundos e exclusivos para assinantes que pagam R$17,00 por mês por ela – cerca de 1.700 pessoas, segundo divulgado dia 03/12/2020 no Stories. 

Contraditoriamente – ou não, os perfis do Startup da Real se tornaram um empreendimento ao seu criador. Ou melhor, um negócio para o qual ele destina tempo para produzir os conteúdos e com o qual ele vende produtos – como o livro e também a newsletter semanal.

Autor além do autor: uso da caixa de perguntas e co-participação dos seguidores

Um dos recursos mais utilizados, em número de frequência, pelo Star é a caixa de perguntas. Caixa de perguntas é como é chamado um dos recursos atuais do Instagram onde o autor ou pessoa que cuida do perfil lança uma provocação e pergunta aos seguidores.

No período acompanhado (de 26/11 a 10/12/2020), todos os dias esse recurso foi acionado pelo criador de conteúdo anônimo. Tal recurso permite a interação e dá voz, no caso letras, aos seguidores que o acompanham. 

No livro cujo nome é “O livro depois do livro” (2003) – e que está disponível para download aqui, a pesquisadora e artista Giselle Beiguelman traz diferentes pontos sobre a questão do livro e também da autoria, especialmente em casos que há participação do público. Em uma de suas análises ela nos diz que:

“Seja problematizando os mecanismos de funcionamento da Rede e apropriando-se deles para fins de intervenção cultural, seja questionando e apostando em novas relações possíveis entre a obra e o leitor, a autoria é revalidada por projetos que criam ambientes colaborativos onde se conforma uma outra forma de subjetividade, mais fluida ou expandida.” (Beiguelman, 2003, página 52)

Quando o Star cria diariamente conteúdos com base nas perguntas das pessoas, ele gera um conteúdo cujo ponto de partida fundamental é a co-autoria. Diferente de uma entrevista, limitada a perguntas e em que a pessoa entrevistada precisa responder a todas as perguntas, nesse recurso há diferentes tipos de interação, como comentários sobre um assunto – ainda que, sim, a maioria das interações sejam perguntas. Outro ponto importante, é que o autor filtra o que quer responder ou comentar sobre. Ou seja, sobre o que quer criar naquele dia. 

Startup da Real: as perguntas e as respostas que ficam

A partir da análise e dos pontos levantados neste ensaio, algumas respostas aparecem, enquanto que outras dúvidas permanecem. 

Arlindo Machado nos traz importantes questões sobre “um verdadeiro criador” no seu artigo  “Arte e Mídia: aproximações e distinções” (2002). Nele, Machado afirma que “O que ele [artista] quer é num certo sentido, ‘desprogramar’ a técnica, distorcer as suas funções simbólicas, obrigando-as a funcionar fora de seus parâmetros conhecidos e a explicitar os seus mecanismos de controle e sedução.” (Machado, 2002, página 27) Nesse sentido – de romper e desprogramar – pode-se encontrar o que o Startup da Real produz. Um conteúdo que utiliza de uma aproximação inicial com o público para, em seguida, gerar questionamentos e rompimentos com o empreendedorismo de palco, ou seja, com o que é constantemente programado para o público acreditar. Nesse sentido e nesse quesito, sim, o que Star produz pode ser considerado arte. Inclusive, aqui mais uma resposta, uma arte que utiliza, sim, de outras estratégias como o mimetismo e a mentira, muito utilizadas em obras de arte contemporâneas. 

Porém, entre as perguntas que ficam hoje são muito relacionadas à história apresentada e o anonimato do autor. Será o Startup da Real presente nas palestras a mesma pessoa que seu criador ou um ator? Será que a história que ele nos conta, sobre quem é, real ou criada com base em fatos reais? Ou até mesmo será que trata-se de uma pessoa ou um coletivo?

Como um livro que não chegou ao fim, a arte disruptiva de Startup da Real cabe, assim, de contínua observação e acompanhamento dos próximos capítulos a serem divulgados. 

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