POR UMA DIREÇÃO DIFERENTE

HENRIQUE BRAGA
Departamento de Economia/Ufes

O avanço da pandemia da COVID-19 estabeleceu inúmeros desafios para as ciências, sejam elas naturais ou sociais. No campo da ciência natural, o principal desafio tem sido o de salvar vidas. O que implica desenvolver o tratamento da doença e, enquanto não há uma “cura”, estabelecer estratégias de redução da contaminação pelo novo coronavírus. No campo das ciências sociais, impõe-se propor formas de se lidar, seja no campo psíquico, político, social ou econômico, com as estratégias apresentadas.

Nesse contexto, estudiosos de infectologia e imunologia da Universidade de Harvard afirmam que, na ausência de qualquer tratamento farmacêutico eficaz contra as graves doenças provocadas por um vírus de alta transmissibilidade, as estratégias para seu enfrentamento devem estar centradas na contenção da contaminação da população. Assim, seria possível “evitar o risco de sobrecarregar os sistemas de saúde e ganhar tempo para o desenvolvimento de tratamentos e vacinas”. É nesse sentido que devem ser adotados a quarentena, o distanciamento social e monitoramento da população, com teste em massa. Cuidados esses que precisam ser redobrados na estação do ano mais propícia à propagação do vírus: o inverno[1].

Mas, por quanto tempo seria necessária a adoção de tais medidas? Como o desenvolvimento e o teste de tratamentos e vacinas podem levar meses e até anos, eles estimam, com base nos países centrais, que seja necessário adotar o distanciamento social intermitente – ou mesmo substancial – e monitorar a população, com teste em massa, até 2022[2]. Com isso, o avanço da contaminação poderá ser contido, de forma que os sistemas de saúde teriam capacidade para o tratamento adequado da população[3]. O que reduziria não somente o número de mortes pelas doenças provocadas pelo COVID-19, como também diminuiria o número de mortos por outras doenças que, com um sistema de saúde em colapso, não conseguiriam o tratamento adequado. 

Embora essas estimativas estejam sujeitas a uma série de limitações técnicas, que são reconhecidas pelos próprios autores[4], a rapidez da transmissão do vírus pelo mundo, o elevado número de mortos – a despeito da baixa taxa de letalidade do vírus[5] – e o caso dramático da Itália, são evidências suficientes de que a pandemia da COVID-19 deve ser levada a sério. Mais do que isso, medidas contundentes precisam ser adotadas para viabilizar a forma de contenção da pandemia disponível no momento, evitando o adoecimento e a morte prematura da população[6]. Com especial atenção para os trabalhadoras e trabalhadores que, há anos, vêm sofrendo com a precarização das suas condições de trabalho, com a incerteza dos seus salários e com a pressão de terem de ser “empresário de si mesmo”[7]. 

A mesma força que compeliu a essa degradação das condições de trabalho é, porém, responsável pela produção desse vírus. Como mostra o coletivo chinês Chuang, a expansão das montadoras de automóveis para Wuhan proporcionou tanto a rápida urbanização quanto a busca por novas áreas agrícolas, que avançaram sobre o bioma da região. Localizada num vale quente e úmido, Wuhan é conhecida como uma das quatro “fornalhas” da China, constituindo um ambiente propício para as chamadas transmissões zoonóticas de doenças – a saber, quando há transmissão de uma espécie para outra. Numa das principais zonas produtivas da China, alimentada pela incessante dinâmica de produzir mais coisas em menos tempo, a emergência de um novo vírus (SARS-CoV-2) teve as consequências que estamos passando agora[8].

No campo econômico, o FMI estima, por exemplo, um declínio de 3,0% no PIB mundial, sendo que esse indicador recuaria, nas economias avançadas, em 6,1% e, nas economias ditas “emergentes”, em 1,0%[9]. Contudo, a julgar pela queda de 6,8% do PIB chinês no primeiro trimestre desse ano, quando comparado com o mesmo trimestre do ano passado, as estimativas do FMI são, para dizer o mínimo, otimistas[10]. 

Diante de um cenário de declínio da atividade econômica, o próprio fundo sugere aos Bancos Centrais medidas para preservarem a “estabilidade financeira global” e “manterem a economia global funcionando”. Em linhas gerais, as medidas são as seguintes: reduzir as taxas de juros e comprar ativos do sistema financeiro; intensificar as operações de mercado aberto para ampliar a quantidade de dinheiro disponível para o sistema financeiro; prover contratos de câmbio que deem conta da demanda por dólares; e, por fim, reativar programas usados na crise financeira de 2007/2008 para comprarem “ativos de risco” e “títulos privados”. Até o momento, segundo o fundo, os Bancos Centrais anunciaram a provisão de recursos ao sistema financeiro na ordem de 6 trilhões de dólares[11].

O montante dos recursos disponibilizados até então aponta, por um lado, para a importância deste setor para a economia contemporânea[12]. Pois, o automóvel produzido em Wuhan, por exemplo, será, provavelmente, vendido à crédito – seja no mercado chinês, estadunidense ou mesmo brasileiro – enquanto a tecnologia aplicada em sua produção foi financiada à crédito – neste caso, em grande parte pelo endividamento público e, em menor medida, por dívida privada. A relação imbricada entre sistema financeiro e produção de mercadorias é conhecida como financeirização, na qual a emissão de novos títulos de dívida públicos e privados, a garantia de suas remunerações por parte dos emissores e a contínua aposta na variação de seus preços nos mercados bursáteis condicionam – e são necessários – à produção usual de mercadorias[13]. 

Por outro lado, tal volume de recursos mostra que o FMI supõe que, assegurado o circuito de reciclagem dos títulos de dívida, sua emissão e a aposta nas variações dos seus preços, o crédito para os demais setores da economia será estabilizado. Contribuindo, portanto, para evitar a desorganização da atividade econômica[14]. Aposta semelhante faz o governo brasileiro, tanto nas ações já realizadas pelo BACEN, que liberaram 1,2 trilhão de reais[15], quanto a Emenda Constitucional nº 10/2020, que libera a compra e a venda, por parte do BACEN, de títulos públicos em mercado secundário e de títulos privados que apresentem risco de crédito[16]

No primeiro caso, trata-se de permitir ao BACEN que compre títulos emitidos pelo Tesouro Nacional, cuja função seria, em tese, financiar as ações estatais de combate à pandemia do COVID-19[17]. No segundo caso, os títulos privados serão monetizados. Diante de uma estimativa de declínio de 5,3% do PIB brasileiro em 2020[18], esse dinheiro disponibilizado para o setor privado tende a ser convertido em títulos públicos emitidos pelo Tesouro Nacional. Assim, além de estatizar a dívida privada, esse tipo de ação não assegura que as empresas não financeiras terão acesso ao crédito, poderão renegociar suas dívidas, manterem parte da atividade econômica e, por meio do multiplicador do gasto, garantirem parte do emprego e da renda dos trabalhadores e trabalhadoras afetados pela pandemia da COVID-19[19].

Além disso, é problemático o financiamento, por meio da emissão de dívida, das ações do Estado brasileiro de combate à pandemia e aos seus efeitos. Isso porque teria consequências futuras desastrosas sobre a relação Dívida Pública/PIB, principal indicador da política econômica para a imposição da austeridade fiscal. Esse é o principal argumento de Henrique Meirelles, ex-presidente do BACEN, que, em entrevista recente, chegou a defender a emissão monetária, por meio da expansão da base monetária, para financiar os gastos para fazer frente à pandemia e aos seus efeitos. Ainda assim, ele não foi contrário à emissão de títulos de dívida para tal financiamento, apenas deixou claro que essa forma exigiria, no futuro, medidas contundentes de austeridade fiscal[20]. 

Mesmo que alguns economistas apostem na capacidade do Estado de rolar dívida, podendo emitir títulos respeitando somente a capacidade produtiva da economia[21], há de se considerar o papel da dívida no capitalismo contemporâneo. Ela disciplina as instituições e as pessoas. O sujeito endividado – seja ele o Estado Nacional ou o trabalhador – deve se comportar de forma austera, comedida e buscar sempre novos rendimentos para honrar a dívida (num caso, privatizações; noutro, bicos ou segundo emprego)[22]. Afinal de contas, a dívida é uma obrigação quantificada com precisão, tomada de forma simples, fria e impessoal, a qual não se pode deixar de pagar – mesmo que sejam somente os seus juros[23]. Em poucas palavras, a dívida é uma técnica de poder, que condiciona as instituições e as pessoas à busca contínua do aumento da sua produtividade, conduzindo as pessoas a pressionarem pela mercantilização de diversas dimensões da vida, pois é preciso “fazer dinheiro” para honrar a dívida.

Se é apontado que o cenário para a vida social, até que haja uma vacina ou um tratamento razoável, é, até 2022, o isolamento social intermitente – ou completo – a quarentena e o monitoramento, com teste em massa; as medidas econômicas não podem apostar numa “volta da normalidade”, empenhando uma produção futura cujo modo de produzir foi um dos aspectos que nos colocou nesta situação[24]. Os efeitos disso podem ser ainda mais desastrosos, quando for constatada a inexistência das promessas de remuneração futuras – sejam elas a arrecadação do Estado, as receitas das firmas ou mesmo os recebimentos dos bancos.

Assegurar que as pessoas possam tomar as precauções necessárias para evitar o contágio implica, antes de tudo, a “criação de um salário social – renda básica universal – financiado com base em uma maior taxação das rendas e das riquezas dos capitalistas e seus associados”[25]. Em seguida, uma reorganização da produção, da distribuição, da troca e do consumo que evite o desabastecimento de alimentos e de material médico e que permita, dentre outras coisas, a continuidade dos atendimentos médicos e da pesquisa em busca de um tratamento e de uma vacina eficazes no combate à COVID-19[26]. 

Essa reorganização não partirá, contudo, do Estado ou do Mercado, uma vez que cada um de seus agentes estão preocupados demais consigo para agirem à altura da situação. Nesse momento, contamos somente com nós mesmos para impormos sobre eles, que possuem uma relação simbiótica[27], um rígido controle, orientado pela princípio de que nossa saúde, nossa subsistência e nossas vidas somente são possíveis em co-atividade, coobrigação, cooperação e reciprocidade[28]. E, por isso, nossas vidas estarão inviabilizadas se nossas ações continuarem a ser orientadas pela concorrência e pela autovalorização de nós mesmos e dos resultados das nossas atividades. Assim, para salvarmos nossas vidas e os seus meios de subsistência, cabe bloquearmos a produção pré-crise e agirmos numa direção diferente[29].

Nesse sentido, devemos nos perguntar quais foram os princípios das relações sociais que nos conduziram à perda dos laços de solidariedade, como recuperar esses laços sem retomar formas de dominação pessoal e, com isso, como produzir uma economia que assegure uma vida que valha a pena ser vivida e que seja passível de luto. Isso implica, dentre outras coisas, superar a mediação social pelo trabalho, cuja forma social valor se expressa por meio do dinheiro e tem na dívida monetária seu regime de obrigações. Talvez tenha chegado o momento de realmente colocar a questão: é necessário o contínuo suor no rosto de muitos para produzir uma riqueza que, no momento derradeiro, quando o vírus bate à porta, se mostra inútil? Até porque, não será com carros esportivos, bolsas de luxo, colares, banheiras de mármore de Carrara, debêntures, ações ou derivativos de balcão que iremos combater a COVID-19, não é mesmo?

NOTAS

[1] KISSLER, Stephen et al. Projecting the transmission dynamics of SARS-CoV-2 through the post-pandemic period. Science. Apr. 14, 2020. Disponível em: https://bit.ly/2XQhpk7. 
[2] Ver Kissler et al (2020).
[3] Ver figura 5 de Kissler et al (2020).
[4] Kissler et al (2020) são explícitos em reconhecerem a limitação do modelo usado para elaborar os cenários. Além disso, reconhecem os impactos negativos na economia e na sociedade da adoção das medidas sugeridas. Para mais sobre a limitação dos modelos, ver:  ADAM, David. Special report: The simulations driving the world’s response to COVID-19. Nature, 2020. Disponível em: https://go.nature.com/2VkHOF3.
[5] COVID-19 CORONAVIRUS PANDEMIC. Estatísticas de casos e de mortes por COVID-19.      Disponível em: https://bit.ly/2xKeOh3. Acesso em: 19 abr. 2020.
[6] Nota sobre os impactos econômicos e sociais da COVID-19.
Disponível em: https://bit.ly/34MWmk2.
[7] COVID-19 e o agravamento da pandemia neoliberal.
Disponível em: https://bit.ly/2zcj7SJ.
[8] Contágio Social – coronavírus, China, capitalismo tardio e o mundo natural.
Disponível em: https://bit.ly/2VGiCbb. 
[9] The Great Lockdown: Worst Economic Downturn Since the Great Depression.
Disponível em: https://bit.ly/2xylIWU.
[10] Com coronavírus, PIB tem queda anual de 6,8% no 1º trimestre na China.
Disponível em: https://bit.ly/2zfSgp1.
[11] COVID-19 Crisis Poses Threat to Financial Stability.
Disponível em: https://bit.ly/2XNYHd5.
[12] A economia real e o mercado de capitais diante da pandemia do COVID-19.
Disponível em: https://bit.ly/2zhBp5j.
[13] Lazzarato, Maurizio. É o capitalismo, estúpido!.
Disponível em: https://n-1edicoes.org/016.
[14] Cabe notar que o FMI recomenda políticas fiscais que preservem a renda das famílias nesse momento. O que está em franco desacordo com as medidas até o momento adotas pelo governo brasileiro. Ver: Fiscal Policies to Contain the Damage from COVID-19.
Disponível em: https://bit.ly/34N00dC.
[15] Quadro – Liberação de Liquidez.
Disponível em: https://bit.ly/3alirHH.
[16] Proposta de Emenda Constitucional nº 10/2020.
Disponível em: https://bit.ly/34N4Nff.
[17] COVID-19 e o Banco Central. Disponível em: https://bit.ly/2ypStW7. Financiamento monetário é arma orçamentária em “guerra” contra a covid-19.
Disponível em: https://bit.ly/2VlNmPZ. 
[18] The Great Lockdown: Worst Economic Downturn Since the Great Depression.
Disponível em: https://bit.ly/3ctESvG. Acesso em: 14 abr. 2020.
[19] Algo que já ocorre desde a primeira medida do BACEN: Varejo acusa banco de elevar juros. Disponível em: https://glo.bo/2yusPiR. Além disso, em recente entrevista, Ricardo Carneiro, ex-diretor executivo do diretor executivo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) nota que “não interessa só dar autorização ao Banco Central para comprar títulos no mercado secundário e não garantir que essa intervenção venha acompanhada também de assegurar novos financiamentos na economia, porque é disso que se trata.”. Disponível em: https://bit.ly/2yrNWCA. Entretanto, não há qualquer sinal do governo de que este exigirá contrapartidas do setor financeira assistido pela compra de títulos. 
[20] Meirelles defende ‘imprimir dinheiro’ contra crise do coronavírus: ‘Risco nenhum de inflação’.
Disponível em: https://bbc.in/2RT2Ush.
[21] Covid-19: a pandemia ensina ao mundo a verdade sobre o gasto público.
Disponível em: https://bit.ly/3cxjmq4.
[22] Lazzarato, Maurizio. O Governo do Homem Endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017.
[23] Graeber, David. Dívida: os primeiros 5000 anos. São Paulo: Três Estrelas, 2016.
[24] Sobre esse assunto, além do texto Contágio Social – coronavírus, China, capitalismo tardio e o mundo natural. Disponível em: https://bit.ly/2VGiCbb; conferir também: Jappe, Anselm. O colapso. Disponível em: https://bit.ly/2Ki1jYL; e Scholz, Roswitha; Böttcher, Herbert. Coronavírus e o Colapso da Modernização.
Disponível em: https://bit.ly/34NuOet. 
[25] Prado, Eleutério. Entre ficção e o fetiche.
Disponível em: https://bit.ly/2XQh0hB.
[26] Para mais medidas, ver Nota sobre os impactos econômicos e sociais da COVID-19. Disponível em: https://bit.ly/34MWmk2.
[27] Mariutti, Eduardo. Estado, Mercado e concorrência. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. 2019, p.19.
Disponível em: https://bit.ly/3ajGd6H.
[28] Dardot, Pierre e Laval, Christian. Comum. São Paulo: Boitempo, 2017.
[29] Latour, Bruno. Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise.
Disponível em:
https://n-1edicoes.org/008-1.
 
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