PEQUENOS NEGÓCIOS: ÓRFÃOS NA CORONACRISE

Fabrício Augusto de Oliveira¹

Os gestores da política econômica brasileira arvoram-se de entender de economia e de capitalismo. Logo no início da pandemia, o presidente do Banco Central anunciou que a instituição estava em condições de injetar 1,2 trilhão de reais na economia para atender a demanda de crédito das empresas e garantiu que não faltaria dinheiro para suas necessidades.

Na mesma toada, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) divulgou contar com expressivos R$ 55 bilhões para negociar tanto a suspensão do pagamento dos empréstimos contraídos pelas empresas como oferecer linhas especiais de financiamento para as pequenas e médias empresas, as companhias aéreas, o setor de turismo e os restaurantes, setores mais afetados com o avanço da pandemia.

Somados, os recursos do Banco Central e do BNDES representam 17% do PIB brasileiro, um número para ninguém botar defeito na ajuda que poderia ser prestada às empresas para atender suas necessidades de recursos diante de um faturamento em baixa, visando manter o emprego e conseguir fazer a travessia nessa crise. Faltou aos gestores da política econômica, no entanto, ao desenharem os programas de crédito, maior conhecimento da natureza da crise, da forma de financiamento do sistema bancário e dos critérios que este leva em conta para decidir sobre a concessão de empréstimos e também a heterogeneidade do universo das empresas que operam no sistema.

Como não há necessidade de ser economista para saber que não basta injetar liquidez na economia para expandir os empréstimos, já que outros critérios são utilizados pelos bancos para fornecê-los, o governo procurou criar algumas linhas especiais de crédito, com taxas de juros favoráveis para seus tomadores, entre as quais a mais importante foi a MP 944/20, por meio da qual foram disponibilizados R$ 40 bilhões (R$ 34 bilhões do Tesouro e R$ 6 bilhões dos bancos privados) para essa finalidade.

Para ter acesso a esse crédito, a contrapartida exigida pelo governo limitou-se à exigência de que as empresas se comprometessem com a manutenção do emprego por dois meses, mas transferiu para o sistema bancário – público e privado – tanto a responsabilidade como o risco das operações, dando-lhe liberdade para estabelecer outros critérios condizentes com sua forma de atuação.

Não deu muito certo para a maioria das empresas, principalmente as de pequeno e médio portes que necessitavam – e necessitam – desesperadamente de capital de giro para não naufragar durante a pandemia. Isso, por algumas importantes razões que merecem ser destacadas.

O programa vinculou os empréstimos ao pagamento de salários das empresas e estabeleceu que os mesmos fossem feitos diretamente pelos bancos aos trabalhadores, sem os recursos passarem, portanto, pelo seu caixa, burocratizando todo o processo e praticamente exigindo que as mesmas já tivessem algum relacionamento com o agente bancário ou, se não tivessem que passassem a tê-lo, com seus empregados tendo, também, de nele abrir contas. Ignorou, além disso, que além dos salários, as empresas suportam outros custos, como os que se referem, por exemplo, aos alugueis, à conta de luz, de água, reposição de estoques, entre outros, necessitando de capital de giro para seu pagamento.

Ao transferir a responsabilidade da operação para os bancos e também os seus custos e dar-lhes liberdade para definir outros critérios para a concessão dos empréstimos, permitiu que esses estabelecessem exigências de reciprocidade, contrapartidas e garantias do tomador, limitando seu acesso aos mesmos, principalmente para os pequenos e médios negócios que não dispõem de condições para atendê-las.

Não bastasse isso, limitou a concessão dos empréstimos às empresas com faturamento anual entre R$ 360 mil e R$ 4,8 milhões, excluindo de seu acesso um número altamente expressivo de micros, pequenas e médias empresas, que são responsáveis por uma parcela também altamente significativa do emprego no país e que, principalmente em virtude da paralisação das atividades econômicas, devido ao isolamento social imposto, viram simplesmente seus negócios e faturamento desabarem.

Nessas condições, não surpreende, assim, que o crédito não tenha chegado principalmente às pequenas e médias empresas. Depois de mais de 40 dias da aprovação deste programa apenas R$ 1,6 bilhão (4% do total previsto) haviam sido liberados pelos bancos que, temendo o elevado nível de inadimplência diante dos riscos colocados pela pandemia, simplesmente optaram por não fornecer estes empréstimos para quem dele mais precisa, criando uma série de dificuldades e exigências para o tomador, a não ser para seus clientes que possuem um histórico de boas notas de crédito.

Por essa razão, projeto do Senado Federal, de criação de uma linha de crédito especial para as micro e pequenas empresas, que terminou sendo confirmado pela Câmara dos Deputados, disponibilizou R$ 15,9 bilhões para a mesma, procurando corrigir alguns problemas da MP 944/20, estabelecendo a garantia pela União de 85% dos empréstimos concedidos e permitindo o uso destes recursos para ações que vão além do pagamento dos salários dos trabalhadores, caso das despesas com luz, água, alugueis, reposição de estoques, entre outras.

Apesar dessas melhorias, o projeto manteve, contudo, as faixas de faturamento para as empresas terem acesso a essa linha de crédito entre R$ 360 mil e R$ 4,8 milhões, excluindo, tal como na MP do Executivo, o universo dos pequenos negócios, com faturamento abaixo de R$ 360 mil. Sancionado pelo presidente da República no dia 19 de maio, tal projeto ainda aguarda regulamentação para entrar em operação, significando que muitas pequenas e médias empresas, que contam com limitado capital de giro e baixíssimas reservas de capital, dificilmente conseguirão escapar de uma situação de falência, carregando com elas o emprego – formal e informal – de milhões de trabalhadores.

Mais grave ainda é que nem a MP 944/20 nem o PL 1.282/20, o Pronampe, do Senado Federal contemplaram, como aponta Carlos Melles, presidente do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), as empresas que faturam de R$ 80 mil a R$ 360 mil, “como a quitanda da esquina, a padaria, o salão de beleza”, cujo universo é considerável e responsável por uma parcela apreciável da mão de obra empregada. Essas estão simplesmente, até o momento, sendo totalmente ignoradas pelo poder público e abandonadas sozinhas no turbilhão devastador da pandemia.

Se tivessem descido do pedestal e consultado o programa de crédito que os Estados Unidos criaram para salvar as pequenas empresas, o Paycheck Protection Program (PPP), a equipe econômica do governo poderia ter aprendido a lidar melhor com essa crise. Para este programa, para o qual foram destinados 670 bilhões de dólares em duas etapas, os empréstimos para essas empresas são 100% garantidos pelo governo – ou seja, o risco dos bancos é zero -, aos bancos é permitido a cobrança de uma tarifa para incentivá-los a ofertar o crédito, e a dívida contratada pode ser perdoada desde que 75% de seu total sejam destinados para o pagamento de salários e que as empresas mantenham o emprego por dois meses. Não é preciso dizer que os recursos do programa rapidamente se esgotaram e chegaram a quem mais dele precisa para manter-se em pé, juntamente com o emprego, na travessia da crise.

Mas é exigir demais de uma equipe econômica adepta do neoliberalismo extremado e disposta a negociar tostões para não ver as contas do governo desabarem, mesmo em plena pandemia, ter sensibilidade para enxergar o que representa a vida humana, e conhecimento do que representam os pequenos negócios para a economia e para o próprio capitalismo. Nessa visão estreita, vale o velho ditado dessa escola: se não têm competência melhor que não vivam e nem se estabeleçam.

NOTAS


¹Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Econômica, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”.
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