100 ANOS DE FLORESTAN FERNANDES: IMPORTANTES LIÇÕES SOBRE O BRASIL DE HOJE E O QUE QUEREMOS



Matheus Avila²

Dia 22 de julho deste ano comemoramos o centenário de um dos maiores pensadores do Brasil. Florestan Fernandes é autor e pensador chave para entendermos os maiores dilemas, problemas e desafios estruturais do país em perspectiva crítica, uma vez que sua análise macrossociológica, olhando diretamente para uma sociedade de classes, nos permite enxergá-los nos âmagos de sua estrutura. 

Em sua vasta obra, temos a chance de aprender sobre um Brasil e América Latina subdesenvolvidos, em que o processo histórico da formação social e a dominação burguesa são, em suma, os elementos chaves para explicar o subdesenvolvimento e o caráter desse tipo de sociedade.

A formação social do Brasil, nascida de uma colônia, impôs à sociedade uma dupla articulação: as profundas desigualdades e segregação sociais e a dependência econômica externa. Por outro lado, a dominação política por uma classe em específico se intensifica, à medida em que transformações na economia acontecem – como por exemplo, mudanças no padrão de acumulação do capital -, em uma relação de associação entre vontades da elite nacional e o imperialismo. Aliás, uma das contribuições de Florestan, foi ter percebido que essa classe dominante conquista sua ascensão no campo político legitimando seu poderio econômico.  

Essa foi apenas uma breve introdução para perceber a atualidade de seu pensamento, uma vez que por meio dele, podemos encontrar respostas para questões que vão desde a conformação da estrutura fundiária do país e sua relação com o poder político, até mesmo outras, bem atuais, como tentar entender, por exemplo, o porquê do Brasil estar tão atrasado no combate ao novo coronavírus, bem como o da insuficiência de políticas econômicas que tenham o intuito de mitigar os efeitos da pandemia sobre a economia. Mais que isso! Porquê tanta restrição em se ter políticas públicas de bem-estar social, que garantam empregos, a seguridade e proteção sociais? Porquê o país está batendo recordes de desemprego e informalidade? Porquê as desigualdades persistem?

Tentando responder às perguntas, em primeiro lugar, os problemas essenciais do Brasil – a dupla articulação e a dominação de classes – seriam resolvidos através do controle do país sobre suas decisões e destino mediante afirmação da autonomia do Estado nacional perante o setor externo. Em relação a esses dilemas, o problema crucial do país continua sendo a dependência externa e a grande desigualdade social. 

Florestan Fernandes (1976) vê que a revolução nacional viria conforme a burguesia pudesse, na evolução da história, quebrar com esses problemas e heranças coloniais, paralelamente no contexto em que fossem inseridas num cenário de crescente industrialização, tendo em vista que tal classe iria além, se posicionaria em conflito com a dependência externa e tomaria seu lugar na acumulação de capital. Portanto, se trataria também de uma revolução política ou, mais estritamente, uma “Revolução Burguesa”, porque burguesia seria a única classe possuidora de condições de estabelecer seus anseios, de forma articulada  arquitetando projetos, planos e conchavos no intuito de mitigar os problemas que impedem o país de dominar suas próprias decisões e a sair do subdesenvolvimento.

No entanto, em A Revolução Burguesa no Brasil (1976), analisando a fundo o caráter da burguesia que se formaria no país, atuando como sujeito histórico e a consolidação da dominação de classes, o autor conclui que o que se dá no limite da formação é uma contrarrevolução burguesa permanente. Isso implica no fato de que tal classe não marcha no sentido da superação do subdesenvolvimento, mas sim em sua atenuação como forma de ampliar sua dominação. Nesse sentido, o autor coloca a dominação burguesa como uma autocracia na ideia de que essa seria sua fonte de estabilidade política, econômica e social para manutenção do poder. Entretanto, em momentos em que a classe dominada se põem em condições de cobrar seus interesses, a burguesia mostraria seu caráter reagindo de maneira “reacionária e ultraconservadora, dentro da tradição do mandonismo das oligarquias”.

Isto, sem tirar o fato de que as impotências burguesas no cenário externo seriam compensadas, no cenário político nacional, pela manipulação das condições socioeconômicas internas, de modo que a renovação e novos moldes das estruturas de poder herdadas do passado  seriam postas como instrumento político para garantir as transformações capitalistas, além de sua própria hegemonia no campo político.

Dessa forma, se torna imprescindível o estudo sobre a burguesia nacional em sua formação e consolidação, de suas características próprias, suas relações com a dependência externa, bem como suas estratégias autocráticas de perpetuação de dominação política, sua forma de fazer “democracia” e sua contrarrevolução permanente. Tal ponto se justifica pelo fato dessa classe ser uma categoria fundamental da base do subdesenvolvimento no Brasil, sua permanência e retroalimentação. Para isso, parece não haver outro caminho, senão a reconstrução sócio-histórica de Florestan Fernandes sobre a burguesia brasileira.

Florestan também percebe que a dependência exerce uma incontrolável pressão sobre a própria economia interna, provocando uma hipertrofia de setores socioeconômicos e políticos da própria dominação da elite. As desigualdades causadas por esse movimento do imperialismo resulta em um contraponto democrático levando a um conflito com a burguesia. Tem-se nesses parâmetros um vislumbre introdutório da contradição entre a dependência externa e democracia, pois tornam-se necessários aspectos de superioridade que não podem possuir contrapartidas ao desenvolvimento capitalista no exterior. Em outros termos, uma “forte associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia” .

Estabelece-se, então, uma interdependência política e reciprocidade de interesses, garantindo os interesses do imperialismo e o crescimento econômico desejado pelo empresariado brasileiro para manter seu status quo, tornando-se uma “vanguarda política da dominação imperialista sob a égide do capitalismo”, que apenas moderniza o atraso. Vale destacar que nesse cenário de dependência o Brasil fica a mercê das oscilações provocadas pelas crises do capitalismo e das mudanças de padrão de acumulação do capital.

Com esse movimento social, a ascensão das elites aparece como um flerte não com busca pelo êxito da Revolução Brasileira e com a construção social de um país livre, autônomo, que consiga resolver seus problemas deixados como herança da colonização, mas sim com o capitalismo dependente, que além de legitimar a dominação material interna também mantém a continuidade da expansão desse sistema.

Funciona como uma via de mão dupla: a burguesia se associa ao capital internacional de forma marginal e periférica para manter sua acumulação e legitimar seu poder político perante às demais classes. E, por outro lado, a dinâmica do capitalismo e do próprio capital, que precisa se expandir intensificando as contradições da dualidade capital x trabalho, se alimenta de seu próprio antagonismo, preservando a posição de superioridade de classes, atenuando os problemas sociais.

O pensamento de Florestan também é fundamental para entender a autocracia e/ou autoritarismo das elites no Brasil. Porque, suas outras dimensões, seja a sua polarização, conservadorismo e dependência entrariam em conflito com aspirações democráticas, além de enfrentar oposição das classes subalternas, o que leva tal classe a uma contradição com o modelo democrático republicano representativo. 

Para conter essa possibilidade, emergem as máquinas de opressão e repressão do Estado, representado por uma classe. A reação também correu contra as classes e categorias que pudessem reivindicar suas posições e melhorias, como a classe trabalhadora, sindicatos e movimentos sociais – chamados pelo autor de reivindicações “de baixo pra cima”.

Sendo assim, entender e estudar a obra de Florestan é a chave para compreender o Brasil de hoje. Afinal, com o que vimos anteriormente, fica claro como o autoritarismo representado pelo poder executivo, bem como as políticas econômicas capitaneadas pelo Ministério da Economia, são reflexos da dominação das burguesias do país na esfera política e econômica. Aliás, não seria mera coincidência, nem obra da mão invisível, nem do liberalismo econômico que, em meio a maior crise econômica enfrentada no mundo nos últimos tempos, as políticas de “salvamento” à economia seriam concentradas na esfera financeira, enquanto a regra para os hospitais e famílias desamparadas pelo desemprego é a austeridade fiscal. Também não é a toa que a concentração de renda no Brasil seja tão exorbitante e que, em contrapartida, as elites relutam em aceitar a permanência e ampliação do auxílio emergencial, a adoção da tributação progressiva sobre fortunas, bem como a criação e expansão de programas de redistribuição de renda.

Florestan deixa como lição, então, que dentro dessa ordem não seria possível sair da condição de subdesenvolvimento e de crescente barbárie. Talvez, um de seus maiores legados seja a importância da luta popular e democrática, liderada pelos movimentos dos trabalhadores (fora dos âmbitos da “democracia” burguesa)  para superar a dupla articulação e resolver os problemas essenciais da formação nacional. O caminho é mediante o rompimento político com as elites e com a dependência do setor externo, o que coloca na ordem do dia grandes desafios, que aparentemente parecem ser impossíveis de ser alcançados (baseado no exposto até aqui).

Entretanto, em uma entrevista de Florestan à Vox Populi, a autora Lygia Fagundes Telles pede ao autor “Que esperança você me dá, nesse instante?”. Ele sorri e diz: 
“Infelizmente não posso dar a Lygia nenhuma esperança. Eu acho que quem nos dá a esperança são os humildes, os trabalhadores, os índios e os negros … Todos eles estão fazendo o que as elites nunca fizeram: estão tentando construir um Brasil novo (…) É única razão pelo qual alguém pode dizer ‘O Brasil tem futuro!’”.

Salve, Florestan Fernandes.

 

NOTAS


[1] Partes do texto foram selecionados de artigo científico elaborado pelo autor.
[2] Egresso do Programa de Educação Tutorial do curso de Economia da UFES; Graduando pelo curso de Economia da UFES.
[3] Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=DKaY2HcQ9b8> Acesso em 20/07/2020.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


FERNANDES, Florestan. Revolução Burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. zahar ed. 2ª edição. São paulo. 1976.
FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. zahar, ed. 2ª edição. Rio de Janeiro. 1975
FERNANDES, Florestan. Clássicos sobre a revolução brasileira. Ed. Expressão Popular, 2000.