– Por Sérgio Lucena Mendes, professor do Departamento de Zoologia da Ufes e diretor do Instituto Nacional da Mata Atlântica –
A palavra “museu” tem origem na mitologia grega, onde as musas, fi lhas de Zeus e Mnemósine, eram inspiradoras das ciências e artes e o templo onde viviam chamava-se “mouseion”. Os museus contemporâneos têm suas origens nos “gabinetes de curiosidades”, impulsionados pelas explorações e descobertas dos séculos XVI e XVII, onde nobres e burgueses colecionavam e exibiam objetos considerados exóticos e obras de arte. A partir do Século XVII os “gabinetes” foram substituídos por coleções institucionais ou privadas, dando origem aos museus de arte e de história natural.
No Brasil, os museus surgiram durante o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves quando, para estimular as ciências, em 1818 o Rei Dom João VI fundou o Museu Real, que mais tarde viria a se chamar Museu Nacional. Originalmente o Museu Real localizava-se no Campo de Santana, no centro da cidade do Rio de Janeiro, em um prédio que mais tarde foi ocupado pelo Arquivo Nacional.
Inicia-se, assim, a história do mais antigo museu brasileiro, que, a partir de 1892, após a proclamação da República, se estabeleceu no Palácio da Quinta da Boa Vista, também conhecido como Palácio de São Cristóvão. Construído no início do século XIX, O palácio pertenceu a Elias Antônio Lopes, um comerciante português que enriqueceu com o tráfico negreiro. O palácio foi cedido à família real, se transformando na residência de Dom João VI, bem como de seus sucessores, Dom Pedro I e Dom Pedro II.
O Museu Nacional, portanto, reúne aspectos muito relevantes tanto sob o ponto de vista histórico e cultural, quanto científico. O valioso acervo remonta à sua fundação por Dom João VI, foi significativamente ampliado pelo empenho pessoal de Dom Pedro II, sendo grandemente enriquecido no século XX pela ciência que ali se estabeleceu. A relevância histórica e cultural é engrandecida pela instalação do Museu no Palácio de São Cristóvão, residência oficial da família real portuguesa e da família imperial brasileira.
No século XX o Museu Nacional consolidou-se como uma instituição de impacto internacional, não somente pelo crescimento de seu acervo, mas também pela sua atuação como uma instituição de ciências e educação, destacando-se em áreas como Botânica, Zoologia, Arqueologia, Etnologia, Geologia, Paleontologia e Antropologia. O Museu passou a oferecer cursos de mestrado e doutorado em Antropologia Social, Arqueologia, Botânica e Zoologia, além de cursos de especialização em Línguas Indígenas Brasileiras, Gramática Gerativa e Cognição e Geologia do Quaternário. Os cursos de pós-graduação estão vinculados a laboratórios e grupos de pesquisa de diversas áreas do conhecimento.
O desenvolvimento científico do Museu foi acompanhado pelo trabalho de divulgação realizado, sobretudo, por intermédio de exposições que abordavam, principalmente, a evolução da vida, a evolução da humanidade, as culturas mediterrâneas, o Egito antigo, a arqueologia pré-colombiana, a arqueologia brasileira, a etnologia indígena brasileira, e as culturas do Pacífico, além das diversas seções dedicadas à Zoologia.
As artes e a ciência passaram a ser objeto de proteção no âmbito do direito internacional humanitário desde fins do século XIX. As primeiras iniciativas nesse sentido estavam relacionadas a ações que buscavam, em tempos de guerra, a proteção e defesa de determinados locais e construções relevantes. As Declarações de Bruxelas, de 1874, e as Convenções de Haia, de 1889 e 1907, traziam a orientação formal quanto à necessidade de preservação das “artes e das ciências” durante combates.
Mesmo com a proteção internacional, grandes museus de arte e ciências foram vítimas de bombardeios durante o século XX, principalmente na Segunda Guerra Mundial, e incêndios acidentais têm atingido vários museus de grande importância ao redor do mundo, inclusive no Brasil, onde podemos destacar os incêndios no Museu de Arte Moderna do Rio (1978), no Instituto Butantã (2010), no Memorial da América Latina (2013), no Museu de Ciências Naturais da PUC Minas (2013) e no Museu da Língua Portuguesa (2015).
Apesar desses exemplos dramáticos, o incêndio do Palácio de São Cristóvão, sede do Museu Nacional, no dia de 2 de setembro de 2018, representa uma tragédia inédita para a história do Brasil e do Ocidente. Chocaram o mundo as imagens do Museu em chamas e os servidores em volta chorando de desespero. Certamente é extremamente grave termos grande parte do Palácio da Quinta da Boa Vista transformado em cinzas, mas a tragédia é muito ampliada com a perda do acervo científico e dos laboratórios que foram incendiados.
Dentre as perdas destacadas pelos pesquisadores do Museu pode-se citar a coleção da Imperatriz Teresa Cristina, os afrescos de Pompeia, o Trono do Rei do Daomé, as coleções de Paleontologia, as coleções de animais invertebrados, o acervo de Etnologia com artefatos da cultura afro-brasileira, africana e indígena, além do trono do rei africano Adandozan (1718-1818), doado pelos seus embaixadores ao príncipe regente Dom João VI, em 1811. Por sorte, o fóssil humano mais antigo das Américas, achado em 1974 em Lagoa Santa – MG, e batizado de Luzia, foi reencontrado sob os escombros e sobreviveu à catástrofe. Felizmente, nem todo o Museu foi atingido pelo incêndio, já que a biblioteca e as coleções científicas de vertebrados e de botânica (herbário) estão alojadas em outros prédios na Quinta da Boa Vista.
Além do acervo de inestimável valor para a humanidade, o impacto atingiu a estrutura de produção de conhecimento e educação de uma instituição de 200 anos. Laboratórios destruídos, cientistas e estudantes desalojados, pesquisas interrompidas, exposições que viraram cinzas são alguns dos exemplos desse impacto que ficará para sempre marcado na história do Brasil. Fragmentos do crânio do fóssil Luzia, o mais antigo das Américas, foram encontrados nos escombros.
Mais do que buscar culpados, essa tragédia nos impõe uma reflexão sobre as nossas falhas no trato do patrimônio cultural e científico brasileiro. Em primeiro lugar, a nossa cultura de segurança e prevenção de desastres é, obviamente, precária em todos os setores. Em segundo lugar, os investimentos em ciência e cultura estão muito aquém do desejável, deixando as instituições fragilizadas e expostas a riscos. Em terceiro, mas não menos importante, é o modelo de gestão de instituições públicas, como o Museu Nacional, que necessitam de mecanismos ágeis de captação e gestão de recursos financeiros e de pessoal.
Conforme campanha deflagrada após o incêndio, o “Museu Nacional Vive”, o incêndio não destruiu a instituição de 200 anos, mas provocou um incalculável prejuízo, com feridas ainda abertas, que deixarão profundas cicatrizes. O restabelecimento do Museu Nacional é responsabilidade de todos os brasileiros. Órgãos públicos, empresas privadas, terceiro setor e cidadãos de um modo geral devem se unir na recuperação dessa instituição tão valiosa para o país. Por razões óbvias, o Museu que ressurge das cinzas não será mais o mesmo que havia até o dia 2 de setembro de 2018. Mas esperamos que ressurja com a grandiosidade que devem ter a história, a ciência e a cultura na consolidação de um país que honra a sua Constituição.
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