– Por Sueli de Freitas –
Analisar como o cruzamento das práticas médicas, maternas/paternas e de gestão da saúde interferem no evento do parto, contribuindo para a manutenção e/ou a mudança do fazer obstétrico, foi o objetivo da pesquisa desenvolvida por Ana Carolina Júlio, doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Administração da Ufes, sob orientação do professor César Tureta. Na avaliação da pesquisadora, é preciso enxergar o parto de forma ampla, entendendo o momento do nascimento como um fenômeno social, que envolve práticas de diversos segmentos da sociedade.
O fim da violência obstétrica é uma mudança necessária, que tem a ver com a formação do médico, com a história das famílias e com a forma como hospitais, planos de saúde e o serviço público estão organizados para receber a parturiente e garantir seu protagonismo no parto.
“Meu campo de pesquisa são os estudos organizacionais, entendendo o hospital como uma organização e a maternidade como uma unidade de gestão hospitalar. No doutorado, parti de uma questão empírica, pois o Brasil, à época da pesquisa (2016-2019), estava no topo do ranking de cesáreas, e hoje ocupa o segundo lugar, só perdendo para a República Dominicana”, conta Júlio, formada em Administração e Relações Internacionais com foco em gestão. Segundo ela, “é no encontro de práticas [maternas/paternas, médicas e de gestão] que vemos emergir no país um movimento social em prol de mudanças, da humanização do parto, sendo um de seus objetivos reduzir a alta incidência de cesáreas”.
A pesquisa foi desenvolvida a partir dos Estudos Baseados em Prática, linha de pesquisa na qual o foco analítico de um trabalho tende a ir além da compreensão de práticas específicas e isoladas, dando ênfase à interdependência, às conexões que existem entre práticas que não apenas se relacionam, mas se sobrepõem. A pesquisadora, que utilizou o método de observação participante, buscou entender o cotidiano na maternidade do Hospital Universitário Cassiano Antônio Moraes (Hucam-Ufes). “Eu engravidei durante a pesquisa, o que facilitou meu acesso ao campo, ajudando-me, especialmente, a incorporar em passos mais acelerados a lógica que organiza a performance das práticas maternas, do parto e do fazer obstétrico como um todo”, afirmou.
Etapas
O estudo ocorreu em duas etapas. A primeira começou em agosto de 2016 e terminou em julho de 2017. “Nessa fase, pretendia entender o contexto no qual o parto está imbricado, assim como mapear as práticas que, uma vez sobrepostas, dão vida a esse fenômeno enquanto uma prática social.” As observações aconteceram em diferentes contextos: em audiência pública sobre violência obstétrica na Assembleia Legislativa; em estúdios de pilates, “observei futuras mães se exercitando”; em rodas de conversa sobre parto e nascimento com participação de doulas e pais; e nas maternidades de um hospital universitário e de um hospital privado na cidade de Vitória.
Após essa fase exploratória, ocorreu a segunda etapa da pesquisa, que foi de agosto a dezembro de 2018. “Tive a oportunidade de conversar informalmente com gestores hospitalares, médicos, enfermeiras, residentes, internos e parturientes.” Foram realizadas, por fim, dez entrevistas em profundidade com três obstetras que trabalham na rede privada e no Sistema Único de Saúde (SUS), com experiência em gestão hospitalar; uma parturiente de parto normal humanizado; uma parturiente de cesárea e parto normal humanizado; um grupo de doulas; gestoras da área de faturamento hospitalar e uma enfermeira obstetra.
A análise dos dados apontou para a complexidade da teia que envolve o nascimento humano e colocou como desafio um processo permanente de mudança e permanência de práticas na tentativa de devolver o protagonismo do parto à mulher. “É sobre como nossa geração entende o que é o parto, como a sociedade vê o parto. É preciso desconstruir conceitos como a dor do parto, entender que esse é um evento fisiológico da mulher, não um acontecimento médico. Devolver o protagonismo que é da mulher e enxergar o nascimento como um fenômeno social”, afirma Júlio.
Movimento e mudança
Para ela, não dá para falar da violência obstétrica de maneira pontual, sem fazer o movimento de aproximação e distanciamento da lente, ou seja, tendo um olhar macro, entendendo a complexidade do processo. “Falo de uma prática social emaranhada de outras práticas mais amplas: prática materna, da mãe dona do corpo que vai parir; sobreposta a isso tem a prática de gestão da saúde, do cuidado, da assistência, que envolve o médico, a enfermeira, a doula; e tem a gestão hospitalar, o plano de saúde, a gestão pública de assistência ao parto e as políticas públicas”, diz a pesquisadora.
Segundo Júlio, todo movimento de mudança traz consigo elementos de manutenção de práticas antigas. “Alguns elementos vão mudar, outros permanecem constantes. Manutenção e mudança andam juntas. Do ponto de vista da estrutura da maternidade, por exemplo, a sala de parto do Hucam já era individualizada, com paredes de alvenaria. Uma estrutura física com privacidade para a mulher já era realidade. No Hucam já havia enfermeira obstétrica. Em hospitais privados, se a mulher quisesse assistência durante o trabalho de parto, tinha que contratar a enfermeira ou a doula. Então, já eram práticas novas. Contudo, na hora em que o bebê nascia, a sala ficava lotada: obstetra, residentes, internos e acadêmicos de enfermagem, todos dizendo como a mulher deveria ficar posicionada, que ela deveria fazer força, e tal. A sala, silenciosa, transformava-se com o evento médico. Então, algumas mudanças são introduzidas e outras práticas são mantidas”.
O protagonismo da mulher, ressalta a pesquisadora, tem seus limites. Em alguns momentos, quando realmente há risco para o bebê ou para a mulher e é necessária a indicação cirúrgica, o médico deve intervir, ou seja, é necessário que o médico que está assistindo a mulher entenda que o parto é um evento fisiológico e que o profissional entra em cena quando algo dá errado, quando é necessária a intervenção cirúrgica.
Contexto histórico
O parto se transformou em um evento médico no momento da urbanização das cidades, quando os nascimentos deixaram de acontecer nos domicílios e foram transferidos para os hospitais. “Não foi ruim, porque antes as mulheres morriam sem assistência quando algo dava errado no nascimento. Entretanto, o problema é fazer o procedimento cirúrgico sem necessidade”, avalia.
Segundo dados do Ministério da Saúde e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), em 2015, 55,5% dos partos realizados no Brasil foram cesarianas. No setor privado a proporção de partos cirúrgicos chega a 84%, enquanto no público o percentual é de 40%.
Analisando a cirurgia de grande porte que é a cesárea, incluindo os profissionais que vão assistir a mulher, além de uma eventual internação em UTI e transfusão de sangue, todo esse processo torna a cesariana mais cara. O parto normal pode ser mais demorado, mas é mais barato. A cesárea traz ganho maior para os hospitais e facilita a agenda do médico e a gestão do hospital, o que pode justificar a priorização das intervenções cirúrgicas. “O parto normal deixa mais complexa a gestão hospitalar, mas, se o gestor quer gerenciar a maternidade como se fosse uma linha de montagem, opta pela cesárea”.
A lógica do sistema privado é levada muitas vezes para o serviço público pelos médicos que atuam nas duas redes, e é por isso que é importante que os hospitais-escola da rede pública tenham práticas avançadas de gestão hospitalar para a mudança de paradigmas pelos profissionais ao longo do tempo. “No Hucam as coisas estão andando. Eu teria um parto no Hospital Universitário”, diz a pesquisadora.
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