Nos 90 anos do voto feminino, pesquisadoras apontam desafios para a igualdade de gênero na política

Sufragista Almerinda Farias Gama vota, em julho de 1933, na eleição de representantes classistas para a Assembleia Nacional Constituinte de 1934. Imagem: Acervo/ Agência Câmara de Notícias/ CPDOC FGV
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– Por Noélia Lopes* –

Noventa anos após a conquista do sufrágio feminino no Brasil, movimento político e social que estendeu às mulheres o direito ao voto, elas ainda são minoria nos espaços de poder. A partir de estudos desenvolvidos, as pesquisadoras Lívia Rangel e Tanya Kruger,  do Laboratório de Estudos de Gênero, Poder e Violência (LEG/Ufes), explicam os fatores históricos por trás da persistência desse quadro de sub-representação na política institucionalizada. Ambas as dissertações foram orientadas pela professora Maria Beatriz Nader, do Programa de Pós-Graduação em História Social das Relações Políticas da Universidade.

O direito ao voto feminino, conquistado em 24 de fevereiro de 1932, inicialmente era limitado às mulheres casadas que tivessem a autorização dos maridos e às solteiras e viúvas que tivessem renda própria. Foi resultado da luta constante das sufragistas no final do século XIX e início do século XX e está diretamente ligado aos desejos das mulheres da época, de participação no mercado de trabalho e de acesso à educação.

Lívia Rangel, pós-doutoranda em História na Ufes, destacou essa relação em sua dissertação de mestrado, intitulada “Feminismo Ideal e Sadio: a construção dos discursos feministas nas vozes das mulheres intelectuais capixabas” e defendida em 2011. “O aumento da participação das mulheres das elites urbanas e das classes operárias no mercado de trabalho contribuiu para que o sufrágio feminino fosse reconhecido, porém, a participação ativa de mulheres – como Bertha Lutz, Carlota Pereira de Queiroz e, no Espírito Santo, Judith Leão Castello – também ajudou a entoar nacionalmente a proposta da emancipação pela cidadania política, fazendo com que as mulheres pudessem votar e se eleger”, destaca a pesquisadora, que atualmente estuda transnacionalidade e estéticas feministas na trajetória e obra de mulheres fotógrafas latino-americanas.

Sub-representação

Apesar de a conquista do voto ter possibilitado o exercício dos direitos políticos pelas mulheres, elas continuam sub-representadas nos ambientes formais de poder. No Brasil, apenas 14,9% do total de parlamentares são mulheres, segundo a Inter-Parliamentary Union, índice bastante inferior à média global, que corresponde a 25,9%. O país ocupa a 145a posição no ranking. Já no contexto regional, o Espírito Santo possui apenas 5% de representação feminina nos cargos políticos, sendo que 52% das eleitoras são mulheres. 

Para Lívia Rangel, a mentalidade patriarcal é um dos motivos que explicam o fato. “A sociedade é machista e existe a noção binária, de que cada gênero tem um papel predeterminado na sociedade e na família. Assim, as mulheres são reduzidas à biologia, à casa e aos filhos, enquanto os homens são destinados aos negócios e ao espaço público. Nesse sentido, são usados argumentos como ‘elas não se interessam’, ‘não entendem’ ou ‘não nasceram para isso’.”

Essa mentalidade se traduz em uma divisão sexual do trabalho, segundo Tanya Kruger, que é mestre em História Social das Relações Políticas pela Ufes. Em sua dissertação, “Por trás das urnas: mulheres, poder e política no Espírito Santo de 1982-2018”, defendida em 2020, ela ressalta as consequências dessa visão de mundo para a entrada das mulheres na política. “Há assimetrias sobre os serviços domésticos, cabendo à mulher, ainda hoje, o cuidado com a casa e a família, o que as sobrecarrega. Há uma dificuldade para elas escolherem estar no ambiente político, que requer tempo, capital e participação no partido, uma vez que também estão imersas nessas jornadas com o lar e os filhos.”

Kruger também aborda, em sua pesquisa, a nova Lei das Eleições (nº 9.504/1997), que passou a valer no pleito municipal de 2020 e obriga os partidos a indicarem mulheres a pelo menos 30% das candidaturas. “A lei de cotas é a única ação afirmativa institucionalizada em prol da participação feminina na política. Contudo, ela não é suficiente, pois existem muitas mulheres feitas de ‘laranjas’, ou seja, que não vão participar de campanhas e do pleito, apenas estarão lá para preencher a cota exigida”. 

Depois de eleitas, o desafio é ocupar espaços dentro do partido e dos espaços de poder. “Ao imaginar uma figura de autoridade ou de poder, imaginamos um homem, às vezes branco, hétero, engravatado – é raro imaginar uma mulher. E isso influencia na hora das escolhas para compor o diretório partidário, de conseguir a aprovação  de um projeto de lei, de ocupar uma mesa diretora, de compor uma comissão. Ou seja, são vários obstáculos que elas têm de percorrer”, complementa Kruger.

Essa imagem do poder associado a figuras masculinas também colabora para que as mulheres sejam questionadas e hostilizadas nos espaços públicos, segundo Rangel. “Desde crianças, somos bombardeadas com imagens masculinas representando poder, força, segurança, raciocínio. E todas as mulheres que se destacaram na política, como a [ex-primeira-ministra britânica] Margaret Thatcher, são apresentadas como excepcionais, alguém fora do seu lugar, dotada de capacidades próprias dos homens”, destaca.

Como consequência, episódios de violência de gênero que se manifestam, segundo as pesquisadoras, em interrupções de fala, ameaças, ofensas à honra e à reputação, exclusão de debates, invasão de privacidade, atos de manipulação psicológica e, principalmente, nos discursos de desqualificação da competência da mulher política.

Perspectivas

Diante disso, ambas as pesquisadoras reforçam a importância de fortalecer o debate sobre a participação da mulher na política, para além dos períodos eleitorais. “Talvez seja hora de irmos às entranhas do problema, ampliar sua discussão, articular melhor a nossa própria compreensão do que é política e dobrar seu significado, para que pareça menos com a foto de um homem branco, de meia-idade, engravatado”, ressalta Rangel.

Outra proposta indicada na pesquisa de Kruger, a partir das entrevistas realizadas com deputadas do Espírito Santo, é a de fortalecer a legislação. “A lei atual garante a participação das mulheres durante as eleições, mas na visão das deputadas, para melhorar o quadro de sub-representação, teria que haver percentual mínimo de mulheres eleitas”, detalha.

A unificação com outras lutas femininas também pode contribuir para melhorar esse quadro, no entendimento de Lívia Rangel. “O futuro das mulheres na política passa por outras pautas de luta, como o enfrentamento ao machismo, às violências patriarcais, à objetificação de nossos corpos, à cultura do estupro e às hierarquias de gênero”, complementa.

* Bolsista em projeto de Comunicação

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