
Ghenis Carlos*
Uma pesquisa de doutorado vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da Ufes revela que a prática de artesanato com fios, como crochê e tricô, está relacionada a sensações e sentimentos positivos, como liberdade, prazer, paciência, amor, alegria, felicidade, relaxamento e concentração, itens fundamentais para a saúde mental e a qualidade vida.
De autoria de Barbara Frigini De Marchi, psicóloga e pesquisadora, o estudo avaliou a relação entre essa modalidade de artesanato e a qualidade de vida de mulheres jovens, entre 20 e 40 anos, ao longo da pandemia de covid-19. Entre as participantes, o tricô foi a arte mais praticada como passatempo, enquanto o crochê e o macramê despontaram como fontes de renda.
Apesar das adversidades da pandemia, a pesquisa mostra que jovens que praticaram artesanato com fios apresentaram elevados níveis de qualidade de vida e de flow – termo que refere-se a um estado mental positivo, no qual se experimenta grande satisfação, foco e absorção pela atividade desafiante.
“Os resultados demonstraram a inter-relação entre a experiência ótima de fluxo na consciência, o bem-estar e a qualidade de vida e, por conseguinte, a importância de as pessoas se dedicarem a atividades com potencial de geração de flow para o cuidado da saúde como um todo”, afirmou a pesquisadora.
Segundo ela, a prática do artesanato “agiu como fator de proteção a sintomas psicopatológicos, promovendo autorregulação emocional”. De Marchi destacou a importância disso numa situação de crise sanitária, não passível de resolução individual e imediata, quando “os esforços cognitivos e de ação devem se dar não sobre o problema, mas sobre aquilo que permite à pessoa tolerar ou aceitar o que não pode dominar”.
Impacto na pandemia
A pesquisadora ressalta que as mulheres jovens sofreram maior impacto psicológico no período de pandemia devido ao acúmulo de responsabilidades no lar, para aquelas que passaram a trabalhar remotamente; ao aumento da carga de tarefas com os filhos, que não podiam frequentar as escolas e espaços de socialização; e à permanência por mais tempo em companhia de parceiros agressores, entre outros fatores. A prática do artesanato com fios foi, nesse cenário, uma ferramenta terapêutica.
“Essa ferramenta é super benéfica, mas desde que complementar. As pessoas confundem terapia com terapêutico que, apesar [de termos] próximos, não são sinônimos. A terapia é um processo de intervenção e cuidado, conduzido por um profissional a partir de princípios éticos e sólidos conhecimentos teóricos e técnicos. Terapêutico, por sua vez, diz respeito à característica positiva de um recurso que permite o acesso ao mundo interno de cada um e, assim, à expressão de emoções, sentimentos e pensamentos”, afirmou a psicóloga, lembrando que a prática do artesanato, portanto, não substitui qualquer tratamento, sobretudo para sofrimento ou adoecimento psíquico grave.
Ciência contra estereótipos
A ideia da pesquisa surgiu de um incômodo da pesquisadora que teve a infância marcada pela confecção de peças a mão, principalmente usando técnicas de macramê e bordados, mas que no início da vida adulta se deparou com comentários de que o artesanato com fios era uma atividade para mulheres de idade avançada ou das que preparam o enxoval para o casamento.
“Associado a isso, a concepção de que as artesanias se encerravam em si mesmas, em seu valor puramente estético, econômico ou doméstico destoava da natureza da minha experiência com elas. Como eu acredito que um dos papeis da ciência é combater estereótipos, achei importante estudar um público fora do óbvio. Além disso, naquele momento, a literatura começava a mostrar que as mulheres jovens estavam sendo as mais afetadas pela covid-19”, explica De Marchi.
Ela destaca que, pela sua observação, “as manualidades com fios têm ganhado, nos últimos anos, contornos políticos, marcadamente diferentes do propósito de conformação das mulheres a um comportamento subserviente, a um modelo específico de feminilidade e a um papel social restrito ao lar como era num passado recente”.
A pesquisadora complementa: “Se, lá atrás, nos faziam ocupar as mãos com agulhas e fios para não tocarmos nossos próprios corpos e não explorarmos nossa sexualidade, para não querermos projetos de vida diferentes do que o patriarcado nos reservava, hoje, as manualidades com fios são uma forma de resistência, feminismo, liberdades de expressão e financeira, empoderamento, socialização e cuidado de si”.
Cartilha
A pesquisa de De Marchi foi a base para a edição da cartilha Prática de manualidades com fios e qualidade de vida, disponível, de forma gratuita, em formatos físico e digital. Trata-se de um material de caráter educativo e que visa fomentar as práticas artesanais com fios como recurso acessível, eficaz e de baixo custo financeiro para a promoção da qualidade de vida e da saúde mental dos indivíduos.
*Bolsista em projeto de comunicação
Edição: Sueli de Freitas
Imagem: Pavel Danilyuk/Pexels (CC)
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