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20

dez

Entre a produção de conteúdo e a arte: quando o mimetismo, a disrupção, a crítica e a originalidade fazem parte de um conteúdo

Todes somos autories*, mas será que todes somos artistas? Afinal, o que é ser artista na contemporaneidade?  

A partir dessas questões iniciais, analiso aqui o produtor de conteúdo @startupdareal, que, utilizando de estratégias comuns tanto na arte, como nas redes sociais, tais como o anonimato, a disrupção e o mimetismo, divulga um conteúdo crítico ao que chama de empreendedorismo de palco, sobre o qual explico melhor a seguir. 

*Importante: o presente ensaio foi construído em linguagem neutra de género, utilizando os parâmetros do “Sistema Elu” apontados no artigo de Pedro Valente. Dessa forma, destaco  aqui que quando não souber o género de alguém ou para me remeter a um grupo com diferentes géneros, será utilizada a linguagem neutra.

Startup da Real: o anonimato entre as mentiras e as realidades

Print do perfil do Startup da Real (05/12/2020)Startup da Real é como se autodenomina o produtor de conteúdo no Twitter, no Instagram, no Medium e autor do livro “Este livro não vai te deixar rico: Descubra a verdade sobre empreendedorismo, startups e a arte de ganhar dinheiro”. Sem revelar seu nome ou identidade, o Star – como é chamado pelos seus seguidores – começou em novembro de 2017 publicando conteúdos desmistificando e criticando conteúdos sobre o empreendedorismo e as dicas comuns de coaching, inicialmente usando de uma linguagem mais descontraída. Ou seja, falando “a real” (a realidade).

Startup da Real: personagem anônimo

O criador do perfil Startup da Real optou pelo anonimato desde o início com o objetivo de evitar que o perfil se centrasse na pessoa dele. Em uma entrevista de 2019, o anônimo afirma: “Não queria que a discussão fosse sobre mim, mas sim sobre o empreendedorismo”. 

Print do Stories do Instagram do Startup da Real (30/11/2020)
Print do Stories do Instagram do Startup da Real (30/11/2020)

Enquanto muitas pessoas usam a internet para se tornarem famosas, o Star se opõe a isso. Na mesma entrevista de 2019, ele falou: “Não quero ser famoso, só quero divulgar as minhas ideias”.

Vale frisar que, ainda que seja contrário à ideia de fama, ele se tornou famoso e tem o apelido de Star, que é justamente “estrela” em inglês. Uma palavra cuja cognição remete às pessoas famosas, às “estrelas da TV” ou “estrelas da Internet” – por exemplo. 

Mesmo que use do anonimato como estratégia, o criador de Startup da Real se construiu e se constrói constantemente como uma persona criativa individual, ao assumir características pessoais. Muitas dessas características surgem a partir de perguntas feitas pelas pessoas e respondidas pelo seu criador, inclusive com fotos ilustrando tais respostas.

Outro ponto é que o autor tem uma figura real, que, inclusive, participa de palestras presenciais, como o Festival de Inovação e Cultura Empreendedora (FICE) 2019. Porém, mesmo assim e com as informações que temos hoje, não há como comprovar que a pessoa que ali está seja realmente o criador do perfil Startup da Real. A história que ele nos conta até o presente momento – a qual aqui acreditamos, nos diz que sim, trata-se de uma pessoa real. Usando uma máscara preta, óculos escuros e capuz preto, assim como na sua foto atual de perfil nas redes sociais, o Star se apresenta em palestras presenciais e online. Dessa forma, Startup da Real sustenta um personagem criado por sua linguagem e também pela sua imagem.

Foto do site Revista PEGN.

Nesse ponto, vale resgatar a trajetória do fictício Ary Itnem Whitacker – nessa matéria ainda apontado como verdadeiro, criado pelo jornalista Ricardo Kauffman e apresentado no documentário “O Abraço Corporativo” (2009). Nele, o falso consultor se apresenta como porta-voz brasileiro da Confraria Britânica do Abraço Corporativo (CBAC) – instituição igualmente inventada – e levanta questões como: será que a prática do abraço poderia aumentar a produtividade – e por extensão, o lucro – de empresas? Para aferir maior realidade, um ator incorpora o simpático representante da CBAC. Dessa forma, assim como Star faz, as ações de “O Abraço Corporativo” se utilizam estrategicamente de formas do contexto da mídia e da construção de ícones para, justamente, criticá-las.

 A diferença, por enquanto, é que a construção feita por Ricardo Kauffman já foi entendida como arte e analisada pelos recursos utilizados. Já a produção feita pelo anônimo de Startup da Real, segue sendo uma incógnita, o que nos instiga ainda mais.

Foto do site Revista PEGN.

Quem é o Startup da Real: características da persona criativa individual

O que se sabe do Star é que ele é homem, tem 36 anos, possui tatuagens no corpo, é casado com uma médica, gosta de assistir o desenho Naruto, joga Warzone no Playstation, ama comida japonesa e gosta mais de ano novo do que de Natal. Também se sabe de alguns “nãos” sobre ele: não mora em Mogi/SP, não sabe jogar xadrez (ainda que saiba as regras), não precisou tirar os sisos, não curte muito dar palestras online, não curte acompanhar Fórmula 1. 

Abaixo, alguns prints que mostram falas dele sobre os assuntos citados:

Startup da Real: entre a arte e a produção de conteúdo

Os conteúdos do Startup da Real possuem um contexto muito forte: ele critica o empreendedorismo de palco, ou seja, o empreendedorismo que sempre dá certo e não mostra a realidade – seja ela o fato da pessoa ter nascido em família rica, seja a chance percentual de um novo negócio dar errado ser muito maior do que a de dar certo. 

A seguir, um trecho do livro do Startup da Real que explica os riscos do empreendedorismo de palco.

O que é "empreendedorismo de palco" segundo o Startup da Real.

O criador do Star conhece muito bem esse contexto, a ponto de usar da linguagem dele para fazer suas críticas. Um dos melhores exemplos disso é o nome e a capa do livro de sua autoria “Este livro não vai te deixar rico”, onde fala o que as pessoas querem (ser ricas), mas coloca um “não” ali no meio. Na diagramação visual da capa tal estratégia fica ainda mais evidente, de forma que quem vê o livro de longe, em uma prateleira, logo se atrai pelo que é mais fácil de ler pelas cores de maior contraste: “Este livro vai te deixar rico”, uma vez que o “não” só dá para ver de perto, em uma cor de menor destaque. 

Capa do livro do Startup da Real

A escolha do nome e das cores da capa foi proposital, como mostra uma fala do Star feita durante uma entrevista de fevereiro de 2020: “Já tem uma brincadeira de o ‘Não’ estar meio ofuscado, para a pessoa achar que é uma coisa e quando chega perto vê que é outra – inclusive é interessante, pois as coisas de perto não são o que achamos que é.”

Outro exemplo é a linha de conteúdo voltado para dicas de produtividade, onde utiliza de uma linguagem otimista – típica des profissionais de coaching – para quebrar paradigmas criados por elus mesmes. Assim como os posts des coachings de sucesso, Star começa com uma frase motivacional, ou seja, se valendo de um mimetismo para se aproximar de uma realidade. Sobre o mimetismo, vale destacar os conceitos apresentados por Fábio Oliveira Nunes no livro “Mentira de Artista” (2009), disponível para download no site do autor. Segundo Nunes, “Na biologia, mimetismo é uma relação ecológica em que criaturas de uma determinada espécie buscam parecer-se com outros organismos, partes ou objetos do meio ambiente em troca de algum benefício, como proteção ou alimento.” (Nunes, 2009, páginas 34 e 35).

Já no âmbito da arte e dos objetos analisados no mesmo livro, Fábio nos diz que “A ideia de mimetismo justamente busca dar suporte a uma forma de enxergar estas manifestações artísticas em sua complexidade, mantendo aquilo que é essencial em todas as ações: o ato de se passar por aquilo que não são, tal como na natureza.” (Nunes, 2009, página 38)

No caso do Star, ele usa tal mimetismo, ou seja a estratégia de se passar por algo, como isca para capturar a atenção de pessoas que buscam por dicas de empreendedorismo. Porém, logo em seguida quebra essa similaridade e mostra a falácia que há por trás dessa ideia. Seria como um predador que se disfarça no ambiente de sua presa, para, em seguida, abocanhá-la. A diferença é que esse “abocanhamento”, no caso, faz bem à presa, por lhe desiludir e evitar uma queda maior no futuro. 

Outro ponto de disrupção, é o fato da linguagem adotada pelo anônimo ser direta, sem rodeios e com um tom debochado. Isso faz oposição à linguagem estritamente otimista, com frases prontas e de motivação, tipicamente praticada peles coachings e também peles empreendedories de palco anteriormente comentados aqui.

Tal linguagem pode parecer mera brincadeira, mas o próprio autor, em entrevista de 2019 no lançamento do livro, explica que não é. “O que eu escrevo não é mentira. É absurdo, é engraçado porque é verdade”. Inclusive, seu conteúdo pode ser entendido como uma fonte para entender as mentiras que empreendedories de palco contam, uma vez que mostra um outro lado sobre temas levantados por elus.

Mas, afinal, o que é mentira? Para Fábio Oliveira Nunes, mentira pode ser ilusão, fantasia ou fazer o outro acreditar, simplesmente. Dessa forma, Star parte da fantasia sobre o empreendedorismo contada peles coachings para nos trazer outros dados e um outro lado dessa história. Fazendo, assim, uma ruptura com o que é posto como verdade. 

Para mostrar a verdade por trás das publicações do Twitter e Instagram, assim como provar os contrapontos críticos que apresenta, o autor anônimo possui um perfil no Medium – uma plataforma de publicação de blog muito popular, usada para divulgação de textos e artigos. Nela o autor publica conteúdos mais embasados, traz dados sobre o tema abordado e exemplos sobre o que está argumentando. É, assim, uma das formas que ele combate o que chama aqui de “empreendedorismo autoajuda e conhecimento superficial” na prática.

Print do perfil do Startup da Real no Medium (06/12/2020).

Foi a partir de tais textos publicados no Medium, que Star gerou dois produtos: o livro – já citado aqui antes, e, posteriormente, a newsletter semanal. Em uma definição simples, newsletter é um tipo de distribuição regular, gratuita ou não, para assinantes via e-mail e que aborda um determinado assunto. No caso de Star, trata-se do envio de textos mais profundos e exclusivos para assinantes que pagam R$17,00 por mês por ela – cerca de 1.700 pessoas, segundo divulgado dia 03/12/2020 no Stories. 

Contraditoriamente – ou não, os perfis do Startup da Real se tornaram um empreendimento ao seu criador. Ou melhor, um negócio para o qual ele destina tempo para produzir os conteúdos e com o qual ele vende produtos – como o livro e também a newsletter semanal.

Autor além do autor: uso da caixa de perguntas e co-participação dos seguidores

Um dos recursos mais utilizados, em número de frequência, pelo Star é a caixa de perguntas. Caixa de perguntas é como é chamado um dos recursos atuais do Instagram onde o autor ou pessoa que cuida do perfil lança uma provocação e pergunta aos seguidores.

No período acompanhado (de 26/11 a 10/12/2020), todos os dias esse recurso foi acionado pelo criador de conteúdo anônimo. Tal recurso permite a interação e dá voz, no caso letras, aos seguidores que o acompanham. 

No livro cujo nome é “O livro depois do livro” (2003) – e que está disponível para download aqui, a pesquisadora e artista Giselle Beiguelman traz diferentes pontos sobre a questão do livro e também da autoria, especialmente em casos que há participação do público. Em uma de suas análises ela nos diz que:

“Seja problematizando os mecanismos de funcionamento da Rede e apropriando-se deles para fins de intervenção cultural, seja questionando e apostando em novas relações possíveis entre a obra e o leitor, a autoria é revalidada por projetos que criam ambientes colaborativos onde se conforma uma outra forma de subjetividade, mais fluida ou expandida.” (Beiguelman, 2003, página 52)

Quando o Star cria diariamente conteúdos com base nas perguntas das pessoas, ele gera um conteúdo cujo ponto de partida fundamental é a co-autoria. Diferente de uma entrevista, limitada a perguntas e em que a pessoa entrevistada precisa responder a todas as perguntas, nesse recurso há diferentes tipos de interação, como comentários sobre um assunto – ainda que, sim, a maioria das interações sejam perguntas. Outro ponto importante, é que o autor filtra o que quer responder ou comentar sobre. Ou seja, sobre o que quer criar naquele dia. 

Startup da Real: as perguntas e as respostas que ficam

A partir da análise e dos pontos levantados neste ensaio, algumas respostas aparecem, enquanto que outras dúvidas permanecem. 

Arlindo Machado nos traz importantes questões sobre “um verdadeiro criador” no seu artigo  “Arte e Mídia: aproximações e distinções” (2002). Nele, Machado afirma que “O que ele [artista] quer é num certo sentido, ‘desprogramar’ a técnica, distorcer as suas funções simbólicas, obrigando-as a funcionar fora de seus parâmetros conhecidos e a explicitar os seus mecanismos de controle e sedução.” (Machado, 2002, página 27) Nesse sentido – de romper e desprogramar – pode-se encontrar o que o Startup da Real produz. Um conteúdo que utiliza de uma aproximação inicial com o público para, em seguida, gerar questionamentos e rompimentos com o empreendedorismo de palco, ou seja, com o que é constantemente programado para o público acreditar. Nesse sentido e nesse quesito, sim, o que Star produz pode ser considerado arte. Inclusive, aqui mais uma resposta, uma arte que utiliza, sim, de outras estratégias como o mimetismo e a mentira, muito utilizadas em obras de arte contemporâneas. 

Porém, entre as perguntas que ficam hoje são muito relacionadas à história apresentada e o anonimato do autor. Será o Startup da Real presente nas palestras a mesma pessoa que seu criador ou um ator? Será que a história que ele nos conta, sobre quem é, real ou criada com base em fatos reais? Ou até mesmo será que trata-se de uma pessoa ou um coletivo?

Como um livro que não chegou ao fim, a arte disruptiva de Startup da Real cabe, assim, de contínua observação e acompanhamento dos próximos capítulos a serem divulgados. 

14

dez

Embates literários

ARL.: Olá a todas, todos, todes, todix, toddys, tédias e tédios. Estamos aqui para a primeira e única edição do programa de entrevistas Embates Literários; patrocinado pelo curso Arte e Mídias Contemporâneas, do Programa de Pós-Graduação da UFES no canal ARTE/PÓS/MÍDIA, do professor Daniel Hora. Eu sou Ana Rita Lustosa.

LT.: E eu sou Luciano Tasso, e juntos vamos entrevistar dois pesos-pesados do campo das arte e literatura!

ARL.: Nossa convidada é artista e professora Livre-Docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e autora da obra: O livro depois do livro, Gisele Beiguelman!

LT.: Ele foi professor de semiologia da Universidade de Bolonha e autor da obra: Não contem com o fim do livro, em parceria com Jean-Claude Carrière e Jean-Philippe de Tonnac: Umberto Eco!

ARL.: Queremos agradecer à presença de vocês esta noite e gostaria de iniciar nosso embate com um pensamento: estamos continuamente lendo e interpretando tudo o que está à nossa volta. Nossa capacidade de absorver as informações, dependem ainda do formato, disposição e montagem pelos quais a informação se dispõe, mas a absorção desta informação está intimamente relacionada à capacidade intelectual individual de compreender, absorver e interpretar o sistema de signos expostos. Quando se fala de “interface e superfície”, pressupõe-se uma capacidade de leitura capaz de desencadear novas ideias inter-relacionadas que sejam determinantes para o avanço do conhecimento. Boa noite Gisele, boa noite, Umberto!

GB.: Boa noite Ana, Luciano e a todos os que estão nos acompanhando.

UE.: Boa noite. É um prazer estar aqui.

ARL.: Como primeira pergunta para esta rodada, gostaria que vocês falassem um pouco sobre o tema que abordam em suas obras escolhidas para este embate: o livro, tal qual o conhecemos, vai deixar de existir?

GB.: “Não se pensa aqui sobre o fim do livro impresso. Isso não passaria de mais um capítulo da história apocalíptica que a indústria da informática vem elaborando nos últimos anos”. Muito pelo contrário. O que está surgindo é “Um contexto de leitura mediado por interfaces conectadas em Rede, discutindo projetos criativos que têm como denominador comum o fato de expandirem e redirecionarem o sentido objetivo do livro, permitindo pensar experiências de leitura pautadas pela hibridização das mídias e cibridização dos espaços (on line e off line). Mas não se fala de um mundo da leitura sem pressupor uma leitura de mundo, e é inegável que o livro impresso seja ainda a referência central do universo da leitura on line e, por conseguinte, da forma como se estrutura essa leitura de mundo”. Por outro lado, “Se é verdade que o livro impresso tende a transformar-se em um complexo digital multimídia, então não é só ele que desaparecerá, mas todas as outras mídias que lhe serão acopladas, como o vídeo e o áudio, que terão esgotadas suas qualidades de suportes de linguagens específicas”.

UE.: “Das duas, uma: ou o livro permanecerá o suporte da leitura, ou existirá alguma coisa similar ao que o livro nunca deixou de ser, mesmo antes da invenção da tipografia. As variações em torno do objeto livro não modificaram sua função, nem sua sintaxe, em mais de quinhentos anos. O livro é como a colher, o martelo, a roda ou a tesoura. Uma vez inventados, não podem ser aprimorados. Você não pode fazer uma colher melhor que uma colher. Designers tentam melhorar, por exemplo, o saca-rolhas, com sucessos bem modestos, e, por sinal, a maioria nem funciona direito. Philippe Starck tentou inovar do lado dos espremedores de limão, mas o dele (para salvaguardar certa pureza estética) deixa passar os caroços. O livro venceu seus desafios e não vemos como, para o mesmo uso, poderíamos fazer algo melhor que o próprio livro. Talvez ele evolua em seus componentes, talvez as páginas não sejam mais de papel. Mas ele permanecerá o que é”.

LT.: Boa noite, Gisele, boa noite Umberto, obrigado por aceitarem nosso convite. Vou começar com uma provocação. Gisele, você propõe a libertação da metáfora a partir da combinação aleatória de informações contidas em plataformas sinestésicas capazes de provocar sentimentos puramente estéticos, gerando novas formas de compreensão, a partir de sua multiplicidade (combinação de vídeo, imagem, texto e navegação). Seria como ler um livro construído com recortes combinados numa ordem indistinta.

GB.: “Entre outras transformações, [os novos recursos permitiriam], possivelmente, que nos libertássemos da tirania das metáforas e analogias que esvaziam a possibilidade de pensar o mundo polissêmico, entrevisto [pelo próprio Umberto Eco, aqui presente], quando refletiu sobre a necessidade de uma “arte do esquecimento” em contraposição às técnicas de memorização desenvolvidas na Idade Média e na Renascença. Para além da sofisticação técnica e estética, [a obra] Filmtext [de 2002, de Mark Amerika]anuncia-se como marco de uma prática escritural que se faz pela interpenetração dos formatos vernaculares e algorítmicos, apontando para novas interfaces de leitura”.

UE.: Quando falei sobre a arte do esquecimento, referia-me aos processos mnemotécnicos que “utilizam a imagem de uma cidade ou de um palácio dos quais cada parte ou lugar está associado ao objeto a ser memorizado. A lenda narrada por Cícero no De oratore conta que Simônides encontrava-se num jantar na companhia de altos figurões da Grécia. Num certo momento da noite, despediu-se e saiu, imediatamente antes de os comensais morrerem todos sob o desmoronamento do telhado da casa. Simônides é chamado para identificar os corpos. Faz isso recordando-se do lugar que cada um ocupava em torno da mesa.

A arte mnemotécnica, portanto, consiste em associar representações espaciais a objetos ou conceitos de maneira a torná-los solidários uns dos outros. […] Ainda encontramos as artes da memória na Idade Média. Porém, a partir da invenção da impressão gráfica, tudo levava a crer que a prática desses recursos mnemónicos fosse morrer gradativamente. Não obstante, é a época em que se publicam os mais belos livros de mnemotécnica!”

LT.: Gostaria de insistir, Gisele, quando você fala em libertar-se da “tirania das metáforas”. Não seria justamente o nosso acervo de interpretações metafóricas – algo que construímos desde que nascemos e reconstruímos ininterruptamente [1], por meio dos aprofundamentos e internalizações [2] intelectuais – que nos tornam seres pensantes? Em termos de leitura, quando a combinação metafórica é feita através de algoritmos, não reduzimos nossa capacidade da construção intelectiva?


[1] Piaget (1971) [2] Vigotsky (2004)

GB.: Em absoluto! No campo da arte, refiro-me às possíveis ampliações de leitura a partir do “conceito de “fusão dinâmica” que aponta para novas formas de literariedade. Formas essas que são agenciadas por um processo de letramento expandido, preparado para a leitura de linguagens a um só tempo cinematográficas, videográficas, textuais e sonoras. Seria ingênuo, no entanto, acreditar que esse agenciamento de novos pressupostos de leitura é decorrente de sua aderência ao ambiente da tela. O que se coloca no centro dessa discussão é a competência do texto em desvestir-se da malha de sua superfície para se impor como interface de leitura”.

UE.: Ao longo da história, a palavra algoritmo recebeu vários significados. Alguns atribuem sua origem ao matemático persa do século IX. Hoje, anos após a minha morte, não pude me familiarizar com a designação do termo. O que posso dizer é que “O ser humano é uma criatura literalmente extraordinária. Descobriu o fogo, construiu cidades, escreveu magníficos poemas, deu interpretações do mundo, inventou imagens mitológicas, etc. Porém, ao mesmo tempo, não cessou de guerrear seus semelhantes, de se enganar, de destruir seu meio ambiente etc. O equilíbrio entre a alta virtude intelectual e a baixa idiotice dá um resultado mais ou menos neutro. Logo, decidindo falar da burrice, de certa forma prestamos uma homenagem a essa criatura que é um tanto genial e outro tanto imbecil. E, quando vamos nos aproximando da morte, como é o nosso caso, então começamos a achar que a tolice prevalece sobre a virtude. É evidentemente a melhor maneira de se consolar”.

ARL.: Isso faz pensar que a aceleração que estamos vivemos, em decorrência do surgimento dessa multiplicidade de mídias e suportes, poderia desequilibrar esta neutralidade, uma vez que nossas memórias vão sendo desconstruídas à medida em que mais e mais canais registram, sob sua própria ótica uma forma particular de enxergar o mundo.

UE.: “Aceleração que contribui para a extinção da memória. Este é provavelmente um dos problemas mais espinhosos de nossa civilização. De um lado, inventamos diversos instrumentos para salvaguardar a memória, todas as formas de registros, de possibilidades de transportar o saber — é provavelmente uma vantagem considerável em relação à época em que era necessário recorrer a mnemotécnicas, a técnicas para lembrar, pura e simplesmente porque não era possível ter à sua disposição tudo que convinha saber. Os homens então só podiam confiar em sua memória. Por outro lado, independentemente da natureza perecível desses instrumentos, que de fato constitui problema, também devemos reconhecer que não somos imparciais diante dos objetos culturais que produzimos”.

GB.: “A lógica da novidade iminente draga não só o passado, mas o próprio presente, arremessando-nos em um estranho estado de expectativa de um pós-futuro que nunca chega, mas que se promete a milhões e milhões de potenciais usuários globais”. Porém, “A aposta em uma cultura cíbrida (pautada pela interconexão de Redes on e off line) não é em uma nova indústria capaz de substituir meramente velhas tecnologias por outras. O desenvolvimento desse novo horizonte de leitura, que o mundo cibernético promete e a proliferação dos dispositivos móveis corrobora, impõe que se pense em que queremos dos textos, da memória e das próprias tecnologias de conhecimento. O que está em jogo é a necessidade de engendrar não só repertórios capazes de transcender o formato do códex e a cultura material da página, como as únicas possibilidades para a exposição de ideias, mas também suas funções simbólicas, como as de suporte de memória, e econômicas, como o valor material da autoria. Aposta-se aqui na possibilidade de uma cultura cíbrida, pautada pela interpenetração de Redes on line e off line, que incorpore e recicle os mecanismos de leitura já instituídos, apontando para novas formas de significar, ver e memorizar”.

LT.: O que a Rede nos fornece é, na realidade, uma informação bruta, sem nenhum discernimento. Ora, todos nós precisamos não apenas verificar, como dar sentido, isto é, organizar, colocar seu saber num momento de seu discurso. O livro seria, em antítese, o símbolo dos progressos com que tentamos fazer esquecer as trevas das quais continuamos a acreditar que agora saímos ou este veloz volume de conhecimentos nos levaria apenas a um contínuo estado de vertigem?

UE.: “Há uma diferença entre a vertigem “equilibrada” de uma bela livraria e a vertigem infinita da Internet…”

GB.: kkkkkk! Não vejo grandes mudanças nas formas pelas quais organizamos nosso conhecimento. “As telas de qualquer site dispõem páginas, critérios biblioteconômicos de organização do conteúdo regem os diretórios, como o Yahoo, e a armazenagem de dados é feita de acordo com padrões arquivísticos de documentos impressos, seguindo à risca o modelo de “pastas e gavetas”. Isso não nos remete a um mero problema de erro de termos, mas a um problema epistemológico. A identificação do conteúdo on line com a página reitera a linearidade de uma história sobre o mesmo que se faz pelo apaziguamento das instabilidades”. É preciso entender que as “estratégias correntes da publicidade tomam o lugar do discurso crítico, criando um panorama transhistórico e transpolítico que constituiria um domínio informacional dentro do qual todos os fatos são esvaziados de significado, compondo um espaço global e midiático. O discurso do marketing corporativo é convincente e uma gama de produtos e ferramentas promete, diariamente, revoluções nos modos de publicação, distribuição e pensamento que trazem sempre algo novo e que desterram tudo aquilo que lhes é anterior”. Isso nos obriga a “pensar estratégias de percurso porque impõe que se desautomatizem as rotinas de leitura e interação, forçando repensar os parâmetros de usabilidade e conferindo novos atributos às funcionalidades”.

UE.: Veja, por exemplo, “Sou incapaz de ensinar atualmente [3] […]. Nossa insolente longevidade não deve nos mascarar o fato de que o mundo dos conhecimentos está em revolução permanente e de que não fomos capazes de captar plenamente alguma coisa senão no lapso de um tempo necessariamente limitado. A velocidade com que a tecnologia se renova impõe-nos um ritmo insustentável de reorganização contínua de nossos hábitos mentais, é verdade. A cada dois anos, seria preciso mudar de computador, uma vez que é precisamente dessa forma que são concebidos esses aparelhos: para se tornarem obsoletos após um certo prazo, consertá-los custando mais caro que substituí-los. A cada ano seria preciso mudar de carro porque o novo modelo apresenta vantagens em termos de segurança, de acessórios eletrônicos etc. E cada nova tecnologia implica a aquisição de um novo sistema de reflexos, o qual nos exige novos esforços, e isso num prazo cada vez mais curto. Foi preciso quase um século para as galinhas aprenderem a não atravessar a rua. A espécie terminou por se adaptar às novas condições de circulação. Mas não dispomos desse tempo”.


[3] Nota do ed. Umberto Eco faleceu em 2016 – fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Umberto_Eco

ARL.: Temos uma visão lisonjeadora de que obras-primas têm por função guardar em lugar seguro os consensos culturais que o esquecimento ameaça sempre destruir, mas a revolução tecnológica que o livro está prestes a vivenciar seria capaz de mudar esta concepção? Como última pergunta, gostaria de saber até que ponto a mudança em nossos hábitos de leitura não seriam agentes transformadores da nossa cultura e da nossa forma de pensar?

UE.: “Um agricultor ocidental começa a cultivar sua plantação indo da esquerda para a direita para voltar da direita para a esquerda, e um agricultor egípcio ou iraniano da direita para a esquerda para voltar da esquerda para a direita. Porque o traçado do arado corresponde exatamente à escrita em bustrofédon. Com a ressalva de que, num caso, começaríamos pela direita e no outro, pela esquerda. Esta é uma questão muito importante que, a meu ver, não foi suficientemente estudada. Os nazistas teriam podido imediatamente identificar um camponês judeu. Mas voltemos ao que interessa. Falamos da mudança e de sua aceleração. Mas dissemos também que existiam novidades técnicas que não mudavam, isto é, o livro. Poderíamos acrescentar a bicicleta ou os óculos. Para não falar da escrita alfabética. Uma vez alcançada a perfeição, impossível ir mais longe”. Como já falamos disso anteriormente, “A memória — seja nossa memória individual, seja essa memória coletiva que é a cultura — tem uma função dupla. Uma é, com efeito, conservar certos dados, a outra é relegar ao esquecimento as informações que não nos servem e que poderiam atulhar inutilmente nossos cérebros. Uma cultura que não sabe filtrar o que preservamos como herança dos séculos passados é uma cultura que nos lembra o personagem Funes, inventado por Borges em Funes ou a memória, e que é dotado de uma capacidade de se lembrar de tudo. O que é exatamente o contrário da cultura”.  

GB.: Meu livro é baseado num conto de Borges!

UE.: O livro de Areia de Borges, sim, eu li isso em seu livro, que está disponível nas nuvens! Prosseguindo: “A cultura é um cemitério de livros e outros objetos desaparecidos para sempre. Existem atualmente trabalhos sobre esse fenômeno, que consiste em renunciar tacitamente a certos vestígios do passado e, portanto, em filtrar, e por outro lado em colocar outros elementos dessa cultura numa espécie de geladeira, para o futuro. Os arquivos, as bibliotecas são esses frigoríficos nos quais armazenamos a memória a fim de que o espaço cultural não fique abarrotado com toda essa quinquilharia, mas sem com isso renunciar a ela. Poderemos sempre, no futuro, se o coração nos ditar, voltar a eles. Logo, a cultura é uma seleção. A cultura contemporânea, ao contrário, via Internet, nos inunda com detalhes a propósito de todas as Calpúrnias do planeta e isso diariamente, a cada minuto, de tal forma que um guri que faça uma pesquisa para seu dever de casa pode ter a sensação de que Calpúrnia é tão importante quanto César”.

GB.: Mas não é isso que se espera da Rede e mais precisamente da literatura on line? Uma literatura fundada em um grau de ironia tão radical que seja capaz de corromper os pressupostos de ordenamento e representação da cultura impressa, forçando não o descarte do livro de papel, mas sim a redefinição do que se espera do livro eletrônico?

Maximizam-se as possibilidades intrínsecas a um repertório cultural pautado pela transitoriedade dos conteúdos que serão mantidos em constante estado de transmissão, dentro de ambientes cíbridos (on line e off line), agenciados por inúmeros dispositivos “nomádicos”, como os PDAs (Personal Digital Assistants). Criar para essas condições implica, por isso, repensar a própria natureza da fruição artística e das convenções e formatos da comunicação no âmbito de uma cultura pautada pela ubiqüidade, em que a contemplação eventualmente se esvanecerá, passando a conviver com um leitor de interfaces distribuídas e mídias divergentes e assincrônicas. Por esse caminho, que se insinua já nos projetos aqui comentados, vem se colocando em xeque a órbita do volume e todos os seus desdobramentos lingüísticos, jurídicos e da própria cultura material da página, aproximando a discussão do Livro depois do Livro da magnitude de um livro de areia. Livro fluido, livro da leitura em aberto, é o livro do vir-a-ser da literatura porque celebra não o formato, nem o suporte, mas as recomposições do sentido e da linguagem.

A riqueza da criação cultural contemporânea, no entanto, reside em sua capacidade de se realizar nas (e a partir das) intersecções entre as linguagens. A complexidade dos projetos criativos demanda cada vez mais a diversidade de interfaces Não se trata, portanto, de pensar uma “e-cultura” nos termos de um “tirateima”, das vantagens e desvantagens entre produtos digitais e impressos, chamando a atenção para seus perfis técnicos. Esse debate é inócuo porque permite eximir-se da reflexão sobre o processo de hibridização das mídias”.

LT.: Antes de encerrarmos, gostaria de perguntar ao Sr. Eco, afinal, o que é um bustrofédon?

UE.: Vá pesquisar na internet.

GB.: kkkkkkkkkkkkkkkk!

ARL.: Muito obrigado a todos pela audiência, ficamos por aqui com o nosso Embates Literários, lembrando de agradecer aos nossos patrocinadores, o curso de Arte e Mídias Contemporâneas, do Programa de Pós-Graduação da UFES, o canal ARTE/PÓS/MÍDIA, do professor Daniel Hora. Eu sou Ana Rita Lustosa.

LT.: E eu sou Luciano Tasso. Boa noite e até a próxima!


Créditos

BEIGUELMAN, Giselle. O livro depois do livro. São Paulo: Peirópolis, 2003.

ECO, Umberto; CARRIÈRE, Jean-Claude. Não contem com o fim do livro. Trad. André Telles. São Paulo: Record, 2010

PIAGET, J. A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação.Trad. Alvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.

VYGOTSKY, LevSemionovitch. Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

Sobre o Projeto Embates Literários

Embates Literários é uma ficção construída a partir dos textos de Gisele Beiguelman e Umberto Eco presentes nos livros citados, aos quais podemos atribuir apenas a autoria das palavras em itálico entre aspas. Excertos foram retirados dos textos, deslocados e aglutinados para comporem uma única frase. As imagens foram retiradas de vídeos disponíveis na internet ou da simples pesquisa de palavras como “plateia aplaudindo”. A organização dos textos e disposição das imagens são de inteira responsabilidade dos autores deste projeto: Ana Rita Lustosa e Luciano Tasso.

Vitória, 2020 – ano do coronavírus.