DESCONSTRUINDO FALSAS VERDADES EM TEMPOS DE PANDEMIA – PARTE 1

Vinícius Vieira Pereira Prof.
Departamento de Economia da UFES 
Tutor do Programa Pet Economia/UFES

Nos trágicos dias em que vivemos, algumas ideias vêm se difundindo de modo generalizado e precisam ser atacadas. Entre elas, destacaremos três. A primeira, que surge diante da certeza do caráter transitório da crise, é a de que, passada a turbulência momentânea, retornaremos à normalidade da vida pré-crise, o que pressupõe idéia de uma sociedade natural, aceitável, exemplar, equilibrada, desejável, que serve de modelo, sem defeitos ou problemas, para ficarmos apenas nesses poucos significados do verbete normal. Uma segunda mensagem, geralmente tomada como ponto de partida nas análises sobre a crise econômica causada pela Covid-19, é a de que esta crise é externa, ou exógena à sociedade capitalista e, portanto, não foi gestada internamente pelas nossas ações e pela forma como vivemos, produzimos e nos reproduzimos neste grande sistema social, mas sim, causada por um elemento estranho a ele, um vírus. E a terceira é a que insiste na tese de que a Covid-19 é uma doença democrática e que atinge, ricos e pobres. As três receberão, aqui, uma análise crítica, pois precisam ser desconstruídas.

Para atingirmos nosso objetivo, construiremos o presente argumento em uma série de três textos, que serão publicadas sequencialmente neste blog. Nesta primeira parte, a tarefa será a de questionar o argumento do retorno à “vida normal”. Como escrito em algum muro de algum país europeu, não se pode voltar à normalidade, pois ela era, em si, parte do problema. Assim, começaremos apresentando um contraponto, de imediato, qual seja, a ideia de que a vida conduzida pela lógica do capital não era normal, natural, equilibrada ou aceitável antes da Covid-19. Os problemas e os defeitos da vida na sociedade capitalista pré-crise deveriam constituir-se motivos suficientes para não a tratarmos como modelo idealizado, mas sim, buscarmos formas de suplantá-la, se pretendermos uma existência longa e humanitária para a nossa espécie no planeta Terra. 

Não podemos considerar “normal” uma sociedade marcada pela extrema desigualdade entre as pessoas e os povos, por uma concentração da riqueza sem paralelos na história humana[1], e que, só em nosso país, atingiu números alarmantes[2]; não devemos tomar como modelo uma sociabilidade pautada na exploração insensível do homem e da natureza pelo próprio homem[3]; uma existência que se sustenta na destruição dos biomas da Terra em nome da geração de empregos e da maior lucratividade dos negócios; uma sociedade que utiliza o conhecimento e o progresso tecnológico com o fito exclusivo da busca pelo lucro sem se importar com o abandono, a exclusão e a miséria em que vive metade da população mundial, segundo dados da ONU[4]; uma forma de vida que, baseada na concorrência e na competição entre os indivíduos, tornou-se incompatível com a coexistência de sentimentos humanitários como a solidariedade, a amizade e a fraternidade; um sistema que produz lixo e poluição atmosférica numa escala incompatível com a capacidade de escoamento desses rejeitos e com a saúde dos organismos vivos[5]. Para não nos alongarmos muito, uma sociedade pautada no fetichismo do dinheiro, onde as mercadorias se tornam entidades sobre-humanas que justificam qualquer sacrifício em nome de sua obtenção, uma sociabilidade dominada pela estética das formas aparentes e motivada por uma compulsão insaciável ao consumo.

Esta sociedade “normal” em que vivemos produz violência, exclusão e miséria na mesma proporção em que aumenta a população desabrigada, abandonada, faminta e encarcerada. Produz pequenas ilhas de riqueza num extenso oceano de pobreza em proporções insustentáveis para as nossas cidades[6]; dissemina o ódio contra as populações migratórias nas regiões de destino condenando-as a um retorno a lugar nenhum; uma sociedade que se sustenta na deterioração da saúde física e mental de crianças, jovens, adultos e velhos, cada vez mais dependentes de drogas lícitas e ilícitas ou apanhadas pela epidemia de suicídios[7] e no acirramento das relações econômicas, políticas e diplomáticas entre as nações que as coloca na iminência de uma guerra derradeira; enfim, um mundo distópico, cruel, cujo cenário de destruição e morte se naturaliza ainda mais se consideramos natural o seu retorno. 

Longe de qualquer abstração, este cenário trágico acima narrado é a nossa realidade concreta, pois, é neste mundo “normal”, que legitima a desigualdade e naturaliza a morte, que construímos nossas perspectivas e projetos de futuro. A maior prova de que o caminho que trilhamos de mãos dadas com o capitalismo não é normal vem dos próprios capitalistas, ou pelo menos, de um seleto grupo deles, entre os quais se conta o 1% dos mais ricos do mundo.  Apostando na tragédia como certeza de um futuro próximo, alguns dos mais destacados empreendedores bilionários do Vale do Silício, como Peter Theil e Sam Altman, entre outros super-ricos, a exemplo de Bill Gates, compraram propriedades e bunkers, esconderijos nucleares, na Nova Zelândia, refúgio considerado seguro para essa pequena elite se proteger do momento em que o sistema entrará em colapso e eclodirá, alternativa tida como certa por eles[8]. Segundo alguns desses gênios da tecnologia de ponta, a superpopulação, a mudança climática, a recorrência de pandemias, a extrema desigualdade e a violência, as migrações em massa, o esgotamento de recursos naturais, as fomes e o pânico levarão a população mundial a viver, na pele, uma realidade comparável a um episódio de Mad Max[9]. Indispostos a buscarem soluções para tornarem esse mundo melhor, os empreendedores de sucesso, como os fundadores de empresas como Reddit, Linkedin e PayPal, convenceram-se de que o governo norte-americano e as estruturas que o sustentam não conseguirão protegê-los e, desse modo, é necessário transcender completamente a condição humana. Enquanto tentam tornar possível a vida em outros planetas, a substituição de humanos por robôs e a reversão dos processos de envelhecimento[10], estocam comida, armas, munições e se equipam com motos e carros futuristas para defenderem a si próprios, suas famílias e seus patrimônios da revolta final, ou grande apocalipse do capital[11]

Ora, se diante de um cenário desolador causado por uma pandemia mortal, sonhamos com uma normalidade igualmente trágica, na qual o estado de barbárie domina a vida social, a pergunta que nos resta fazer é se um retorno à normalidade deve servir de guia neste contexto de crise. A busca por novas alternativas de sociabilidade deve entrar na pauta das discussões políticas e acadêmicas entre as mais urgentes na contemporaneidade. Diferentes ideias sobre o assunto têm sido expostas de modo cada vez mais frequente na imprensa e nos debates políticos. Dentre estas, destacaremos três, apresentando, em seguida, uma análise crítica da proposta. Em comum, elas guardam a necessidade de superar o neoliberalismo. Porém, uma delas, trabalha com o firme propósito de superação do capitalismo. 

A primeira, e mais repetida nos canais de mídia cujos editoriais mantêm o mínimo teor crítico, é a que sugere o abandono do capitalismo neoliberal e o retorno ao capitalismo do Estado de Bem-estar Social, ou Welfare State, modelo econômico que marcou a era pós-Segunda Guerra, pautado nas políticas econômicas de cunho keynesiano. Para os defensores dessa tese, o estado voltaria a assumir a proeminência nas decisões de produção e renda, criando mecanismos de proteção social, planejando e tomando decisões econômicas ao invés de deixar que o mercado sinalize,por meio do lucro, o que é necessário às pessoas[12]. Naquele momento da história, a posição assumida por uma estrutura estatal robusta resultou nos chamados trinta anos de glória do capitalismo no ocidente, ainda que pairasse sobre nossas cabeças uma guerra fria, e outras tantas quentes, levadas à cabo por nosso grande tutor, os EUA, que se preocupava incansavelmente em proteger o mundo contra a ameaça socialista que vinha do leste. Para levar à cabo tal projeto, os governos se endividaram e uma estrutura de financiamento de dívidas públicas se ergueu, permitindo aos bancos e financeiras de todos os cantos do mundo surfarem alegremente ao longo das últimas cinco décadas. O resultado positivo para as classes trabalhadoras surgiu através da rede de proteção social construída, baseada nos sistemas de seguridade social, o que significou acesso aos seguros desemprego, aos planos públicos de aposentadoria, pensão e auxílios emergenciais, aos benefícios de assistência social, à saúde pública, entre outros. Para a população, era o estado protetor. Para o capital privado, era o estado que chegava em boa hora, pois, garantia a sua valorização, financiando a infraestrutura necessária à produção e oferecendo os bens e serviços sociais essenciais ao funcionamento do mercado. Metaforicamente, pode-se afirmar que o estado reduzia o fogo sob a panela de pressão social, em momento tão dramático para os povos ocidentais recém-saídos de uma crise econômica sem precedentes e de uma guerra mundial devastadora. Havia, pela frente, um mundo a ser reconstruído.

No entanto, tal proposta precisa ser debatida, afinal, urge saber se as condições históricas presentes àquele momento do desenvolvimento do capitalismo estariam disponíveis nos dias de hoje. Num exercício de história sincrônica, comecemos com o modelo produtivo em voga nas indústrias, e os tamanhos das plantas produtivas e da classe trabalhadora formal, assim como a força dos sindicatos; as linhas de bens de consumo de massa requeridas pela população e produzidas pelas fábricas, o nível da produtividade do trabalho e a remuneração correspondente, bem como a capacidade desta de responder com consumo efetivo aos estímulos potenciais da oferta; os níveis de concentração e centralização do capital nos diferentes setores da economia; a predominância de uma ideologia política social-democrata, fundamental para a construção da estrutura nada mínima do estado e da rede de proteção social instalada; o nível de endividamento dos estados e a política de administração da dívida pública; o padrão cultural capaz de assegurar a reprodução da estrutura de consumo erguida; as relações internacionais e o respeito aos mecanismos supranacionais que sustentam a hegemonia de poder; a vigência de sistemas cambiais compatíveis com um projeto dessa natureza; a existência, ou não, de um modelo de sociabilidade alternativo concorrente com o capitalismo, como era, naquele momento da história, o que se pautava na proposta socialista/comunista, do qual a URSS era seu maior representante; a disponibilidade de recursos naturais e o nível de esgotamento da natureza. 

Enfim, aqueles que creem nessa alternativa como retorno pós-crise do coronavírus devem analisar todas as questões que passam necessariamente pela forma e estrutura do estado, do específico momento histórico da luta de classes e pelo grau de destruição da vida no planeta, pois somente assim poderemos idealizar horizontes factíveis. E vale lembrar que, no atual momento em que vivemos, as políticas que defendem um estado mínimo dominam a esfera política e ideológica. E, de acordo com Noam Chomsky, sociólogo e linguista norte-americano, para quem o neoliberalismo é o “capitalismo sem luvas”[13], o martelo neoliberal, aquele que determina a justiça nas democracias capitalistas contemporâneas, decreta que os governos não podem e nem devem agir, pois eles são o problema e não a solução[14].

Uma segunda opção para um não retorno às condições pré-crise, porém mantendo-se também a base ideológica do capitalismo como cerne da organização social, e que tem ocupado lugar de destaque na imprensa atual, é a descrita a partir do pensamento de Kate Raworth, economista e professora da Universidade de Oxford, em seu livro cujo título em português é Economia donut: uma alternativa ao crescimento a qualquer custo. Sobre a ideia central da autora, o colunista do The Guardian, George Monbiot, descreveu como sendo uma alternativa inovadora para o crescimento econômico[15]. Contrapondo-se à continuidade da lógica de expansão econômica baseada no neoliberalismo, o modelo de Raworth toma como metáfora uma rosquinha doce, um donut, daqueles que policiais comem dentro dos carros em filmes de origem anglo-saxã, a partir do qual, desenha os limites mínimo e máximo de consumo e bem-estar das populações nas cidades do futuro alternativo que sua tese supõe. O anel interior do donut representa o mínimo de alimento, moradia, água tratada, energia, educação, higiene, cuidados de saúde e bem-estar, igualdade de gênero, renda e voz política que todos os cidadãos devem ter para lhes garantir uma qualidade de vida tida como “boa” na visão da autora. O anel externo representa o limite máximo aceitável de consumo e renda dos indivíduos, limite este definido pelos cientistas a partir das condições de exploração e de danos causados ao clima, solo da terra, oceanos, camada de ozônio, à água pura e à biodiversidade. Qualquer posição que ultrapassasse tais limites não seria permitida pelos governos. Se, aquém do limite mínimo, cairíamos no buraco da rosquinha, o que indicaria uma situação socioeconômica incapaz de assegurar as condições mínimas de sobrevivência aos indivíduos que ali se situassem. Tal condição não seria aceita, a partir do que entraria em cena mecanismos de planejamento estatal para mitigar os problemas surgidos. Se, além da circunferência do donut, a posição seria igualmente rejeitada e impedida pelos governos por representar um nível de consumo que não respeitaria os limites da natureza, podendo ferir de morte o planeta Terra.

Pois bem, esse modelo donut foi recentemente abraçado pela prefeita da capital da Holanda, Marieke van Doorninck, que pretende levá-lo adiante, como plataforma política, aplicando-o experimentalmente à cidade de Amsterdã. Ela se justifica afirmando ser essencial pensar, agora, no pós-crise da Covid-19, mas sem recorrer aos mesmos mecanismos fáceis de outrora. Segundo ela, emprego, clima, renda e saúde são aspectos que devem ser tratados conjuntamente e com os quais temos de nos preocupar. Ela acredita que há uma estrutura ao nosso redor que nos habilita a tentar essa estratégia de construir uma economia que se preocupe com moradias e cuidados comunitários. E o momento clama por isso, afirma a deputada prefeita.

Ora, cabe discutir sobre os pressupostos que ancorariam uma proposta desse porte. Construções civis sustentáveis, produção de alimentos orgânicos ou com menos agrotóxicos, recusa de utilização de materiais e produtos oriundos de combustíveis fósseis bem como originados a partir de uma elevada exploração do trabalho seriam, de fato, muito bem-vindos ao mundo de hoje, não há quem negue. Necessidade de regulação e regulamentação dos espaços urbanos e planejamento da produção não são constatações novas e tratam-se de temas há muito debatidos seja por keynesianos, regulacionistas, institucionalistas, entre outras correntes que também perpassam subsidiariamente o assunto. Mas, toda e qualquer estratégia nesse sentido necessita, assim como a proposta anteriormente debatida, de um forte aparato estatal, do tipo que as políticas neoliberais já trataram de aniquilar nos últimos cinquenta anos. Recuperá-lo custará vontade política, recursos públicos e um tipo de globalização integradora e participativa que, para usar os termos da escola regulacionista, seja capaz de estimular o desenvolvimento a partir da criação de um conjunto harmônico entre as formas estruturais e o regime de acumulação. 

Ora, esse caminho não faz parte dos planos de crescimento do capital, nem de seus grandes arautos, a elite política e economicamente dominante. Até mesmo o questionável equilíbrio internacional de poder hoje mantido graças à produção e ao consumo de petróleo torna-se um grave empecilho para a proposta de mudança da matriz energética do planeta, uma das teses de apoio do modelo donut, na busca por uma forma menos poluente de geração de energia. Além do que, ainda que houvesse vontade política, cabe perguntar de onde viriam os recursos para garantir essa presença ativa dos mecanismos do estado, haja vista os limites impostos pelo mercado às dívidas públicas nacionais e às políticas discricionárias dos governos democraticamente eleitos nas últimas décadas.

Se se pretende discursar em favor de reformas tributárias que imponham uma tabela progressiva de impostos e a taxação de grandes fortunas e heranças, voltaríamos ao mesmo argumento já sugerido por Thomas Piketty[16], ideia que não angariou aliados de peso, não teve forças para sair do espaço acadêmico e mostrou-se inofensiva. Prova disso foi a repercussão midiática, digna de bestseller, que os principais canais da imprensa dominante no mundo deram ao autor e ao seu trabalho. E, de resposta ainda mais difícil: como impedir, ou mesmo controlar o consumo individual num modo de produção em que os lucros do capital, principal sinalizador da economia, disso dependem? Não nos esqueçamos de que o sentido maior da acumulação de capital repousa na aposta sobre o consumo ilimitado de mercadorias e serviços, crença maior que esta sociedade “livre” sempre cultuou.

Para encerrar, tratemos de uma terceira alternativa, em parte já em curso, porém em comunidades modelos, surgida no Brasil, a partir do Movimento dos Trabalhadores sem Terra. Organizado como um movimento político de amplitude nacional e ancorado em uma estratégia de socialização de setores estratégicos da economia, esse movimento defende uma política social que se baseia na aposta da superação do capitalismo e da construção de uma via democrática de socialismo. Apesar da estratégia já estar em curso na sociedade real, capitalista, ela ainda está limitada aos núcleos de povoamento constituídos por trabalhadores rurais, ou camponeses, conquistados via reforma agrária, os assentamentos. 

Defendendo a repartição planejada da terra, a partir do assentamento de famílias em lotes de tamanho pré-definido e cujas medidas mudam conforme a região, o tipo de produto predominante e a fertilidade do solo, a propriedade do solo por parte das famílias assentadas nos lotes, segundo a página do próprio movimento, é “apenas o primeiro passo rumo à reforma agrária”[17]. Nesse modelo de sociedade, após receberem o lote para nele trabalharem, as famílias continuam a participar do movimento. Todos os assentados e aqueles que estão acampados à espera de um lote de terra para também poderem trabalhar organizam-se numa estrutura participativa e democrática para tomar as decisões pertinentes à comunidade, tais como, necessidades de saneamento, cuidados com saúde, atendimento médico, energia, acesso à cultura e lazer. A mesma estrutura se repete em nível regional, estadual e nacional dentro do movimento. 

A soberania alimentar é o principal pilar da produção material nesse modelo, como assegura o líder nacional do MST, João Pedro Stédile[18]. Soberania que, segundo os ideais do movimento, deveria guiar não apenas a produção dentro dessas comunidades, mas no país como um todo, como a política agrária necessária para garantir bem-estar ao povo brasileiro, algo que o sistema baseado na concentração capitalista da terra, os grandes latifúndios monocultores, não consegue fazê-lo. Defendendo sempre que possível a agroecologia e as formas sustentáveis de produção alimentar e industrial, bem como de construção civil, a monocultura é desestimulada.

Em busca da construção de uma forma diferente de pensar a sociedade humana, uma nova ideologia é erguida, baseada na solidariedade entre os indivíduos e os povos, na produção comunitária, na preservação do meio ambiente, na desconstrução de preconceitos de gênero, religião e cor da pele. Por isso, todos desempenham atividades domésticas, políticas, educacionais, agrícolas e industriais. O sucesso conquistado pelo MST em seus assentamentos levou os norte-americanos, James Petras e Henry Veltmeyer, na obra, GlobalizationUnmasked: imperialism in te 21st century, a tratá-lo como um movimento sócio-político que se apresenta como resposta concreta ao imperialismo capitalista norte-americano no século XXI[19]. Os autores consideram essa alternativa de sociedade como uma possibilidade factível, uma vez que surge das lutas populares de massas sob liderança socialista ou, no mínimo, anti-neoliberal/anti-imperialista, com capacidade de se disseminar pelo planeta. Segundo eles, neste início de milênio, os povos do mundo devem buscar se opor à ambição imperialista e deixar de lado a noção de que o triunfo do modelo capitalista euro-americano é irreversível e inquestionável. 

No entanto, esta alternativa também se choca com uma série de antagonistas na sociedade burguesa, afinal, tais modelos societais convivem, no Brasil, com um adversário de enorme peso econômico e político, o agronegócio, baseado no grande latifúndio monocultor para exportação. Em um país onde grande parte da pauta exportadora se concentra na produção e exportação de commodities, com destaque para os alimentos e matérias primas agrícolas, propriedades baseadas na agricultura familiar com produção voltada para o mercado interno tornam-se quase que enclaves dentro de uma economia que cada dia mais está “voltada para fora”. A capacidade de expansão do modelo proposto pelo MST depende da continuidade do processo de reforma agrária, da entrega dos títulos definitivos como garantia do direito à terra, para que os assentados tenham segurança jurídica para trabalharem e produzirem nesses lotes. Depende, ainda, da elaboração de políticas agrícolas que garantam condições do assentado ter acesso ao crédito, bem como de uma infraestrutura que lhe garanta sementes, máquinas, implementos agrícolas e assistência técnica. 

Mas, tais medidas não encontram apoio de governos neoliberais nem de parlamentos hostis a tal demanda. Para se ter uma ideia da dificuldade dessa expansão, o primeiro governo Lula elevou consideravelmente o número de famílias assentadas, de 40 mil em 2003, para 140 mil famílias assentadas em 2006. No entanto, já no segundo mandato do mesmo presidente houve uma queda vertiginosa nesse número, caindo para pouco mais de 60 mil famílias já em 2007, 40 mil em 2010, 20 mil em 2011, o qual permaneceu praticamente imutável durante os governos Dilma[20], isso para falarmos apenas dos governos que, pressupõe-se, compartilhem do interesse em ampliar o projeto de reforma agrária no país, uma vez que o MST foi uma das bases de apoio aos governos do PT. 

Além disso, há também outras contradições cujas origens são internas ao próprio movimento. Começando pela fuga de jovens do campo para cidade, como afirmam Oliveira, Rabello e Feliciano[21], o que tem se mostrado como uma preocupação de vários coordenadores do movimento, que apontam a melhoria do acesso à educação em todos os níveis e a garantia de renda por meio de projetos de agroindústria e agroecologia como possíveis soluções para tais problemas. Citando Stédile, os autores afirmam que, somente assim, o jovem poderá permanecer no campo, tendo as mesmas condições ou até melhores, do que se migrasse para as periferias das cidades, onde só vai encontrar violência, pobreza e discriminação. Em segundo lugar, mas nem por isso menos importantes, existem dilemas políticos e ideológicos a serem sanados, os quais envolvem o acesso à terra, como discutido por Eliel Machado[22], para quem o campesinato pobre, base social dos sem-terra, e não a classe operária urbana, teria assumido, no Brasil, o protagonismo na luta contra o neoliberalismo e como reivindicadora do socialismo. Assim, caberá responder à difícil questão de como reivindicar meios de produção e lutar pelo socialismo simultaneamente.  

Ainda sobre o dilema da propriedade privada da terra, outro debate que se levanta no seio do MST é o que se refere ao título que ligaria o camponês à terra por ele cultivada após o assentamento, matéria fundamental não apenas para se discutir a relação de posse ou propriedade dos meios de produção, mas também por colocar em questão qual seria a melhor opção para a agricultura familiar e para a soberania alimentar. Após o assentamento, a família deve receber a Concessão de Direito Real de Uso – CDRU, ou o Título de Domínio – TD? Os que defendem a primeira hipótese apelam para o argumento de que os TD’s podem se tornar um problema, pois os assentamentos regularizados por documentos dessa natureza ficam vulneráveis a serem comprados novamente por grandes proprietários de terras, que geralmente o fazem a preços irrisórios, aproveitando-se da condição precária do assentado que se vê abandonado à própria sorte sem apoio de uma política agrária para prosseguir com o empreendimento.  Isso significaria um rápido retorno ao latifúndio, mas, agora, por meio da compra legal das terras[23]. Os que defendem os títulos definitivos apostam na segurança jurídica que os mesmos conferem à propriedade, além da garantia de permanência perene nas terras sem o risco de uma mudança na estrutura do movimento.

Enfim, muito há que se debater, mas as dificuldades encontradas não podem enterrar as alternativas e as perspectivas de mudanças.  O intuito deste texto foi o de evidenciar, em meio à catástrofe imposta pela Covid-19, a existência de uma preocupação da sociedade com o futuro que nos espera. Muitos são os contrários à continuidade do modelo pautado no capitalismo neoliberal, assim como o conhecemos hoje, o qual se mostrou completamente incompetente frente à pandemia que agora assola e devasta vidas e famílias em todo o planeta. Tal modelo de organização social tornou-se indefensável e escancarou o abandono da sociedade por parte dos governos que, dirigidos pelo grande capital, imprimiram uma lógica dualista de riqueza e miséria, sucesso e exclusão. Uma lógica pautada na normalidade da competição e do utilitarismo, que exalta o egoísmo e que tem como resposta a barbárie, a tragédia e a destruição.

Na segunda parte deste artigo, trataremos de analisar criticamente outro argumento bastante difundido atualmente, o de que a causa da pandemia deve ser buscada fora da esfera econômica, ou material, da sociedade, afinal, trata-se de um problema biológico que afeta a saúde dos indivíduos. Implícito a este argumento, está a falsa premissa de que o mundo ia bem, a economia também, até que… de repente…surgiu um vírus![24]

 Até a próxima semana…

NOTAS


[1] Relatório Oxfan aponta: 62 pessoas possuem riqueza equivalente a de metade do mundo. Disponível em: https://oxfam.org.br/publicacao/62-pessoas-possuem-o-equivalente-a-metade-do-mundo/
[2] Brasil alcança recorde de 13,5 milhões de miseráveis aponta IBGE. Disponível em: https://economia. estadao.com.br/noticias/geral,brasil-alcanca-recorde-de-13-5-milhoes-de-miseraveis-aponta-ibge,70003 077918
[3] Números do IBGE mostram crescimento da exploração do trabalhador. Disponível em: https://www. causaoperaria.org.br/acervo/blog/2017/10/01/numeros-do-ibge-mostram-crescimento-da-exploracao-do-trabalhador/#.XqdWGchKjIU; A natureza, sua destruição e o capitalismo: https://www.marxist.com/a-natureza-sua-destruicao-e-o-capitalismo.htm
[4] Banco Mundial: quase metade da população mundial vive abaixo da linha da pobreza. Disponível em: https://nacoesunidas.org/banco-mundial-quase-metade-da-populacao-global-vive-abaixo-da-linha-da-pobreza/
[5] Padrões de consumo global devem mudar para que o planeta sobreviva. Disponível em: https://www. correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2019/03/04/internas_economia,740974/padroes-de-consumo-global-devem-mudar-para-que-o-planeta-sobreviva.shtml
[6] Cattani, A. D. Riqueza e desigualdades.Caderno CRH/UFBA. v. 22. n. 57. Salvador: UFBA, 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-49792009000300009
[7] Taxa de suicídio nos EUA dispara nos últimos 15 anos. Disponívelem:https://exame.abril.com.br/ mundo/taxa-de-suicidios-nos-eua-dispara-24-nos-ultimos-15-anos/; Mortalidade por suicídio de adolescentes no Brasil: tendência temporal de crescimento entre 2000 e 2015.Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0047-2085201900010 0001&tlng=pt; Consumo de drogas psicoativas dispara no mundo. Disponível em:https://setorsaude.com.br/consumo-de-drogas-psicoativas-dispara-no-mundo/
[8] Rich tecnocrats planning doomsday escape to New Zeland bunkers. Disponível em: https://pt.technocracy.news/rich-technocrats-planning-doomsday-escape-to-new-zealand-bunkers/
[9] Assim o 1% mais rico se prepara para o apocalipse climático. Disponível em:http://www.ihu.unis inos.br/78-noticias/591892-assim-o-1-se-prepara-para-o-apocalipse -climatico;
[10] Os ultra-ricos preparam um mundo pós humano. Disponível em:  https://outraspalavras.net/sem-categoria/os-ultra-ricos-preparam-um-mundo-pos-humano/;
[11] Refúgio para o fim do mundo. Disponível em:https://www.istoedinheiro.com.br/ refugio-para-o-fim-do-mundo/
[12] Coronavírus mostra a importância do estado de bem-estar social. Disponível em: https://www.carta capital.com.br/economia/coronavirus-mostra-a-importancia-do-estado-de-bem-estar-social/
[13] Chomsky, Noam, O lucro ou as pessoas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002
[14] Disponível em: http://www.cubadebate.cu/especiales/2020/04/22/noam-chomsky-el-unico-pais-que-ha-demostrado-un-internacionalismo-genuino-ha-sido-cuba/#.XqMrQ8hKjIV
[15] Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2020/apr/08/amsterdam-doughnut-model-mend-post-coronavirus-economy
[16] Sobre o autor e sua tese sobre a desigualdade bem como as formas por ele apontadas para mitigá-la, recomendamos A economia da desigualdade (1997), O capital no século XXI (2013), e Capital e ideologia (2019).
[17] Página oficial do MST na internet. Disponível em: https://mst.org.br/quem-somos/
[18] Brasil precisa recuperar ideia de soberania alimentar. Disponível em: https://tutameia.jor.br/sobera nia-alimentar-e-resposta-a-crise/
[19] Petras, J.; Veltmeyer, H. Globalization unmasked: imperialism in te 21st century. Canada: FenwoodPublishing; UK: Zed Books, 2001.
[20] Assentamentos Rurais: reforma agrária em dados. Disponível em: http://www.reformaagrariaem dados.org.br/realidade/2-assentamentos-rurais
[21] Oliveira,L.; Rabello, D.;Feliciano C.A. Permanecer ou sair do campo? um dilema da juventude camponesa. Disponível em: https://revista.fct.unesp.br/index.php/pegada/article/view/3032
[22] Machado, E. MST: dilemas políticos e ideológicos do acesso à terra.Disponível em: http://ken.pucsp.br/pontoevirgula/article/download/14321/10469.
[23] Disponível em: https://www.justificando.com/2019/04/17/assentamentos-rurais-qual-a-melhor-opcao-para-a-agricultura-familiar-a-expedicao-do-cdru-ou-o-td/
[24] Agradeço às fundamentais contribuições dos professores Ana Paula Fregnani Colombi, Gustavo Moura de Cavalcanti Mello, Henrique Pereira Braga e Rafael Moraes, integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisa em Conjuntura, do Departamento de Economia da UFES para a construção deste texto, não sem antes isentá-los de quaisquer erros que, porventura, o autor tenha cometido.

 

 

 

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