ESTADO E CRESCIMENTO: a recuperação em V, L e U

Fabrício Augusto de Oliveira¹

Uma das principais indagações que têm surgido na atual crise econômica causada pela pandemia diz respeito à forma como o Estado vai resolver o problema do elevado nível de endividamento que viu exacerbado com as políticas de expansão de seus gastos exigidas tanto para salvar vidas como empresas do tormento mundial causado pelo novo vírus.

Para o pensamento econômico dominante, se essas políticas foram mais do que necessárias para evitar o colapso do sistema e evitar o pior, mesmo por ser o único agente do sistema em condições de implementá-las para enfrentar a crise, a realidade pós-epidemia deverá se impor, exigindo ajustes severos em suas finanças para impedir que a instabilidade se instale no sistema, apenas substituindo a crise sanitária por outra crise também grave.

De acordo com as projeções do FMI, os orçamentos e as dívidas públicas, que já destoavam de todas as recomendações feitas pela teoria econômica ortodoxa mesmo antes da crise do coronavírus, devem apresentar-se preocupantemente elevadas ao final dessa pandemia.

No mundo, a relação dívida PIB pode chegar, conforme suas projeções, a 96% do PIB, nas economias desenvolvidas a 122,4%, enquanto a dos Estados Unidos deve conhecer um aumento de 20 pontos percentuais, indo para 131%.

Nas economias emergentes, projeta-se um crescimento de 53% para 62% e, na América Latina, de mais 7,5 pontos percentuais, com a mesma se elevando para 78%. No Brasil, essa relação subiria de 89,5%, na metodologia de cálculo dessa relação utilizada por essa instituição, para 98,2%. A grande pergunta que a teoria econômica vai ter de responder é a seguinte: o que fazer diante deste imbróglio? A este respeito, são três as alternativas que merecem ser examinadas.

A primeira, do pensamento econômico ortodoxo, é a de que o Estado deve retornar à sua condição de agente passivo e retomar o controle dos gastos e dar continuidade à redução de seu tamanho. Só com a sinalização de que se reconstruirão os pilares fiscais, os investidores se sentirão confiantes para retomar os investimentos e relançar a economia numa trajetória de crescimento. A recuperação se daria, de acordo com essa visão, na forma de V, tal como as projeções de crescimento para 2021 que foram feitas pelo FMI, ou seja, de que o crescimento retornará rapidamente e de forma acelerada após a pandemia.

Guiada mais pela fé e pela crença, essa alternativa desconhece a natureza dessa crise, os estragos que têm provocado – e que ainda poderá provocar – sobre a aparelhagem do funcionamento idealizado do sistema econômico, com a falência de muitas empresas, o enfraquecimento financeiro de outras, a queima de capital e o aniquilamento da demanda causada pela queda da renda e do emprego, dado o isolamento social, acreditando numa resposta rápida do capital privado, como sugeriu recentemente, no Brasil, o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Se for por este caminho, provavelmente a economia permanecerá por muito tempo no inferno do baixo crescimento e muitos países no da recessão, com a recuperação assumindo a forma de L, ou seja, com uma recessão prolongada, já que todos os motores do crescimento se encontram desligados, sem que haja uma força capaz de religá-los. Devido ao enfraquecimento e à queima de capital provocado pela crise, à fraqueza da demanda e às incertezas que continuam predominantes sobre a duração da epidemia e o futuro da economia, não há como despertar o animal spirit dos empresários para uma aventura dessa natureza.

A segunda, uma alternativa mais na vertente keynesiana, recuperada na forma da Moderna Teoria da Moeda e, na crise atual, defendida até mesmo por alguns economistas filiados à ortodoxia, de que o Estado, além de cumprir um papel-chave para enfrentar seus desafios, pode ser o único agente também em condições de reaquecer os motores do crescimento, por meio do aumento de seus gastos, mesmo que aumentando expressivamente seu endividamento.

Para essa corrente, não existem riscos do financiamento de seus gastos, mesmo que por meio da emissão de moeda, gerar inflação devido à elevada capacidade ociosa da economia e à fraqueza da demanda. À medida que essa capacidade ociosa for sendo ocupada e as pressões inflacionárias começarem a ser sentidas, a esterilização dos meios de pagamento com a venda de títulos públicos, à taxa de juros inferior ao do crescimento do PIB, juntamente com o aumento da arrecadação dele decorrente, pode muito bem colocar a relação dívida/PIB numa trajetória de declínio.

Se seguida, essa política pode abreviar consideravelmente a recessão, dependendo do tempo de duração da pandemia, e garantir uma recuperação na forma de U, ou seja, com uma recuperação mais rápida do que a situação que ocorreria com a primeira alternativa, considerando que a reorganização da produção e do mercado de trabalho demanda algum tempo e que o próprio Estado terá de lidar, por um período, com finanças mais combalidas.

A terceira, que não exclui a segunda, e que não é ventilada pelos governos e gestores de política econômica, especialmente no Brasil, é a que propõe lançar boa parte do ônus da crise sobre uma (pequena) fração da sociedade detentora da riqueza, que lhe garante apropriar-se de uma parcela expressiva da renda gerada.

Trabalho publicado na Plataforma de Política Social, com o título Tributar os ricos para enfrentar a crise, de autoria de instituições representantes do fisco, estima que a cobrança de impostos adicionais, alguns em caráter temporário, sobre a renda dos indivíduos, os lucros de alguns setores econômicos, os dividendos e as grandes fortunas, têm potencial para aumentar em R$ 270 bilhões a arrecadação. 

Embora a proposta tenha tido como objetivo apontar caminhos e fontes para a constituição de um Fundo de Emergência de R$ 100 bilhões para Estados e Municípios conseguirem dar respostas aos desafios colocados de reforço da capacidade e atendimento do SUS, sua importância é a de revelar, no quadro atual, onde esses recursos podem ser obtidos sem provocar grandes desarranjos para o sistema econômico do ponto vista macroeconômico, apenas deixando os ricos um pouco menos ricos.

Não se trata de nenhuma novidade histórica. Em situações semelhantes à que vivemos, como a da Grande Depressão da década de 1930 e da Segunda Guerra Mundial, os impostos sobre a renda e o patrimônio foram consideravelmente elevados para financiar os gastos ampliados do Estado e, ao contrário do que defendia o pensamento conservador, a economia não somente foi retirada do atoleiro em que se encontrava como inaugurou-se um período de crescimento econômico extraordinário, que se prolongou por cerca de trinta anos e, também importante, com maior harmonia social.

No entanto, a teimosia da ortodoxia em continuar a defender que a cobrança de impostos sobre o capital e os ricos termina sendo prejudicial para a economia e de que o Estado constitui uma fonte de instabilidade para o sistema, com teorias divorciadas do mundo real, mas recebendo o aplauso das classes dominantes por protegerem seus interesses, levou à reversão deste processo a partir da década de 1970, conduzindo novamente o mundo para uma trajetória de aumento persistente da desigualdade e da pobreza.

Se for este o caminho, o que infelizmente não parece nada provável, até mesmo pela escassez de propostas neste sentido, a recuperação na forma de U poderia até ser menos amarga e mais acelerada por que contaria com um Estado com finanças mais equilibradas e em melhores condições não somente de contribuir para continuar reerguendo a economia, mas também para diminuir os efeitos da hecatombe que se abateu sobre as camadas mais vulneráveis da população.


¹ Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma Política Social, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”.
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