ENTREVISTA LUDMILA COSTHEK ABÍLIO

Ludmila Costhek Abílio: Formada em ciências sociais pela USP, doutora em ciências sociais pela Unicamp, atualmente é pesquisadora do CESIT-IE/Unicamp. Realiza seu segundo pós-doutorado em economia, dedicando-se junto a outros pesquisadores aos estudos e à consolidação da uberização como um campo de pesquisa no Brasil. 
Por Ana Paula Colombi e Rafael Moraes.
 

Pesquisadora do CESIT-IE/Unicamp, Ludmila Costhek Abílio chama atenção, na entrevista a seguir, para a condição precária dos trabalhadores uberizados em plena pandemia. Chamando-os de trabalhadores just in time, Ludmila problematiza as novidades dessa forma de trabalho, desconstrói a ideia de “empreendedorismo” que paira sobre essas ocupações e revela que a uberização está generalizando o modo do viver periférico. 

1. Nos últimos anos muito se tem falado em “trabalhadores uberizados”. No que consiste este tipo de ocupação e em que ela se diferencia das formas tradicionais? No contexto da crise atual qual a situação destes trabalhadores?

A uberização trata de um novo tipo de informalização do trabalho. Neste sentido, ela se refere ao mesmo tempo a ocupações específicas do mundo do trabalho contemporâneo, tais como o motorista da Uber, o entregador do Ifood. etc… Mais centralmente trata-se de uma tendência que hoje atravessa as relações de trabalho em uma perspectiva global: um novo tipo de organização, gerenciamento e controle do trabalho, que subordina uma multidão de trabalhadores informais, desprovidos de direitos e proteções associados ao trabalho, e que arcam com riscos e custos da sua atividade. Podemos dizer que é um novo tipo de informalização devido aos meios técnico-políticos que operam aí, ou seja, a possibilidade de controlar, sob novas formas, todo o processo de trabalho, incluindo até mesmo a transferência subordinada de decisões sobre o trabalho para o próprio trabalhador, que passa a ser inteiramente responsável por sua sobrevivência. 

Podemos também chamá-los de trabalhadores just-in-time, ou seja, trabalhadores que são, então, reduzidos à pura força de trabalho a ser utilizada de acordo com a demanda. Estão disponíveis ao trabalho, mas não têm qualquer garantia sobre sua própria remuneração, tempo de trabalho necessário para sua reprodução, etc. A grave situação destes trabalhadores durante a crise fica muito evidente. Trata-se de não ter nada que garanta sua própria reprodução além do ganho cotidiano advindo do trabalho. Entretanto, esse ganho também não está garantido, independentemente do quanto esse trabalhador se engaje. A pandemia deixa então evidente não só a precariedade da vida do trabalhador uberizado – que não é só dele mas de grande parte dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros, que vivem no limite da sobrevivência – mas também essas formas atuais de subordinação, controle e exploração. Por exemplo, em recente pesquisa coletiva realizada no âmbito da REMIR, constatamos que apesar de os trabalhadores entregadores desempenharem um serviço essencial à população, as empresas de entrega estão aumentando significativamente seus lucros e faturamento em plena crise, enquanto os rendimentos dos trabalhadores estão sendo reduzidos. Isso, em plena pandemia! 

2. As noções de empreendedorismo, autonomia e liberdade estão associadas ao trabalhador multiplataforma. Isso corresponde com a realidade? As consequências da crise do Covid-19 estão contribuindo para desmistificar esses aspectos perante à sociedade? 

A noção de autonomia e liberdade hoje são pilares para que não se reconheça a subordinação destes trabalhadores e as responsabilidades da empresa. Entretanto, chamá-los de pilares já é um erro pois não são eles que estruturam essas relações. Em realidade, eles sintetizam a legitimação da transferência de riscos e custos para os trabalhadores, além do que venho definindo como autogerenciamento do trabalhador. Ou seja, esse permanece subordinado, não tem o menor poder de negociação sobre sua remuneração, sua carga de trabalho, seu tempo de trabalho. Entretanto, para ele é transferido parte do gerenciamento sobre o trabalho. Podemos entender esse gerenciamento de si também como estratégias de sobrevivência, que garantam sua permanência nessa atividade. Por exemplo, quando olhamos para entregadores ou motoristas uberizados, as supostas liberdade e autonomia se referem basicamente a estratégias que são traçadas pelo trabalhador – tais como definir o melhor período do dia para trabalhar, local de trabalho, tipo de veículo, forma de aquisição (alugado, financiado) etc. Todas estas decisões hoje são processadas e gerenciadas, ou seja, são dados administráveis no imenso cadastro de trabalhadores just-in-time. Tornam-se então elemento controlado da gestão. É aí que começamos a nos deparar com termos como gamificação do trabalho, que expressam essa administração informal e permanente sobre a vida dos trabalhadores. Por exemplo: está chovendo, o entregador tem a autonomia de não colocar sua vida em risco fazendo entrega com a moto, mas ele também pode decidir por tentar ganhar a bonificação que vem justamente quando começa a chover…

Juntam-se a estas noções a de empreendedorismo. Ou seja, você nem mesmo é um trabalhador, mas um chefe de si próprio, que se for forte, criativo, engajado, proativo, sobreviverá no mundo cão da concorrência. A noção de empreendedorismo traz consigo a normalização do risco, mas com um pequeno detalhe: é o risco para o detentor da força de trabalho e não do capital! Traz também a normalização de que o trabalhador – livre como um pássaro, como dizia Marx – sobrevive arriscadamente solitário na sua própria gestão, sem poder contar com qualquer rede de proteção social. Ser empreendedor é estar lançado à própria sorte em um mundo que não oferece qualquer garantia ou proteção; no caso da uberização, é não contar nem mesmo com a segurança sobre qual será a sua remuneração após 12 horas de trabalho. 

3. Você defende a tese de que a “viração” é um aspecto constitutivo da sociedade brasileira e da forma como a classe trabalhadora historicamente travou e trava a luta pela sobrevivência no país. No que se constitui o ato da “viração”? Se ele é constitutivo do mercado de trabalho brasileiro, o que há de novo nas formas atuais de precarização do trabalho? 

Essa questão nos possibilita olhar para nossas categorias de análise e nos interrogarmos sobre o quanto estamos conseguindo expressar a realidade do viver dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros. O primeiro cuidado que temos de ter é o de não associar a viração com o “viver de bicos”. A viração aqui opera como uma espécie de desafio e desestabilização de dualidades que estruturam nossas análises. Ela trata do trânsito entre trabalho formal e informal que vai costurando a vida dos trabalhadores, do engajamento em empreendimentos familiares, do envolvimento com trabalhos que mal são reconhecidos enquanto tais. Estamos em realidade descrevendo as tais estratégias de sobrevivência, que envolvem um autogerenciamento e o engajamento incerto e permanente nas oportunidades instáveis e precárias que vão garantindo o viver. É só olharmos com atenção para a trajetória de um motoboy: distante da figura do “jovem cachorro loko”, em realidade, costuma ser um “pai de família” de quarenta anos, que é motoboy há vinte. Um exemplo, o trabalhador já foi metalúrgico, técnico em telefonia, representante comercial, entre outras ocupações. Hoje é motoboy e, como ele mesmo se denomina, “sacoleiro”, ao mesmo tempo, combinando as entregas com compra e venda de produtos. Isto não é a exceção, é a regra do viver no Brasil. Uma identidade profissional estável, assim como uma trajetória que se orientaria pelo horizonte do trabalho formal são elementos que guiam muito das categorias de análise, mas estão distantes desta realidade. 

Agora, isso não quer dizer que não há nenhuma novidade, pelo contrário, é preciso compreender como estes modos de vida – que constituem a especificidade do desenvolvimento capitalista periférico – vão se atualizando e se transformando. A uberização traz algo de muito novo: este modo de vida periférico é agora subsumido de forma centralizada, monopolizada, gerenciada, administrada. Ou seja, esse modo do viver periférico está sendo incorporado como elemento central destas novas formas de controle e organização do trabalho, podemos ainda aventar que este modo está se generalizando. 

4. A reforma trabalhista, o aumento da informalidade e da exploração do trabalho têm desafiado a capacidade de representação do movimento sindical. Como isso se reflete, na sua opinião, nas formas de resistência desses “trabalhadores uberizados”, sobretudo diante da perda de espaço das organizações sindicais tradicionais? Como a crise atual tende a afetar este cenário? 

A reforma trabalhista mira com muita precisão e brutalidade as forças sociais do trabalho, abrindo ainda a porteira para uma série de medidas que seguem sendo desenhadas e implementadas (em plena pandemia!). Os trabalhadores uberizados, na condição desta multidão de trabalhadores informais, de saída aparecem fragmentados, individualizados, “empreendedores”, etc, distantes enfim, de organizações coletivas do trabalho. Mas o movimento é dialético, pois esse processo de informalização-monopolização também vai constituindo uma multidão que pode se reconhecer e se organizar enquanto tal. Aí são centenas de milhares, milhões de trabalhadores versus uma empresa. Começamos a ver greves mundiais, latino-americanas, entre outras, de categorias de trabalhadores uberizados. No caso da crise atual, se sobressaem os entregadores. Eles sabem que são informalmente transformados em categoria essencial para o isolamento. Ao mesmo tempo, enfrentam o rebaixamento do valor de seu trabalho (novamente, em plena pandemia!). Começamos a ver as manifestações em diferentes cidades do Brasil e também em diversos países do mundo. 

Mas veja que dilema para o trabalhador uberizado: o dia de manifestação é o dia em que ou ele não recebe nada ou que pode ter aumento nos ganhos devido a menor oferta de entregadores. A consolidação de estratégias de resistência e mobilização que consigam reconhecer esse viver cada dia mais arriscado é um desafio. 

 

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