– Por Jorge Medina –
Embora haja avanços no Brasil em relação às políticas sociais para a população LGBTTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), ainda são muitos os desafios e obstáculos que essa comunidade enfrenta na sociedade, principalmente no combate à discriminação e à violência. Para Viviana Corrêa, mulher transexual, técnica-administrativa da Ufes, os preconceitos quanto à sexualidade estão relacionados à falta de conhecimento sobre os estudos de gêneros e à falta de entendimento a respeito da diferença entre identidade de gênero e orientação sexual.
Conforme dados da ONG International Transgender Europe, o Brasil é o país onde mais se mata travestis e transexuais. Em 2017, por exemplo, 179 pessoas trans foram assassinadas no País. Além disso, o preconceito, a exclusão social, a dificuldade de acesso aos postos de trabalho e a violação de direitos de forma geral são preocupantes, principalmente entre as pessoas trans e travestis. Entender o porquê da discriminação e da agressividade que sofrem a comunidade LGBTTT é uma tarefa complexa.
O professor Alexsandro Rodrigues, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Sexualidades (GEPS) e do Núcleo de Pesquisa em Sexualidade (NEPS/Ufes), destaca que a sexualidade é uma questão que desperta muito interesse, pois faz parte dos sujeitos que a constituem, não é algo que possa se desligar ou algo de que alguém possa se distanciar. Está relacionada às sensações, aos prazeres e às emoções, independentemente da identidade sexual dos indivíduos.
Viviana Corrêa, mulher transexual, técnica-administrativa da Ufes no cargo de secretária executiva do Departamento de Cidadania e Direitos Humanos da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis e Cidadania (Proaeci), ressalta que os preconceitos quanto à sexualidade estão relacionados à falta de conhecimento sobre os estudos de gêneros. Para ela, primeiramente, as pessoas ainda não conseguem entender a diferença entre identidade de gênero e orientação sexual. “A identidade de gênero de uma pessoa é um sentimento e uma vivência profunda do próprio gênero, normalmente consistente com o sexo que lhe foi atribuído no momento do nascimento. É uma questão pessoal, uma relação com você mesmo. Já a orientação sexual é a atração física ou emocional que uma pessoa sente em relação a outra. É o afeto com o próximo, com o outro”, completa.
No caso de Viviana, ainda criança ocorreu a percepção de que o gênero que lhe foi designado ao nascer não a representava. As pessoas a viam como menino, mas ela se sentia uma menina. Sua infância foi bem conturbada. Era castigada por seu comportamento, por sua postura e por suas atitudes, que eram incompatíveis, socialmente, com o que se espera de uma pessoa do sexo masculino. Não conseguindo corresponder às expectativas e cobranças alheias, ela preferiu se isolar e viver em seu próprio mundo.
Viviana conta que a transição de menino para menina só aconteceu próximo aos 30 anos de idade, quando entrou na Ufes. Para ela, a mudança não é fácil e assusta as pessoas, pois há uma quebra do padrão imposto pela sociedade, e muitas não sabem lidar com a situação e se afastam. “Talvez por isso minha transição veio a acontecer tardiamente. Quando chegou o momento, foi algo muito libertador e de angústia ao mesmo tempo, por não ter feito isso antes”, admite.
Além da questão de gênero em si, Viviana, que também é ativista em movimentos sociais, acredita que outros fatores contribuem para intensificar ou atenuar a discriminação e a exclusão social contra as pessoas transexuais. “Não sofro tanto preconceito como as demais pessoas trans. Acredito que seja pela minha postura e pela minha situação social. Tenho acesso a estudos, um emprego estável, e socialmente sou considerada como branca. Todas essas questões amenizam a discriminação”, salienta.
Viviana fala fluentemente três idiomas, morou na Alemanha por três anos, é professora de Inglês e Alemão no Núcleo de Línguas da Ufes e tem pós-graduação em Língua Alemã pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Apesar do acesso à educação formal de qualidade, a técnica-administrativa da Ufes ressalta a importância de ter sido aprovada no concurso público da Universidade, em 2013. “Mesmo tendo competência para exercer uma profissão, pessoas trans são, frequentemente, recusadas por sua identidade de gênero. Dessa forma, muitas delas só veem uma opção de sobrevivência: se prostituir”, diz Viviana. Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), mais de 90% de travestis e transexuais vivem da prostituição.
Preconceito
A secretária executiva Viviana Corrêa enfatiza que existem preconceitos e discriminações de maneiras diferenciadas. “A discriminação com as pessoas trans é maior do que com os gays. Os preconceitos relacionados às pessoas trans estão relacionados com à desumanização, fetichização e objetificação. Existem pessoas que não se aproximam da gente, não falam com a gente, agem de formas diferentes. Às vezes, existe respeito, mas percebemos um preconceito de maneira velada”, observa Viviana.
Viviana explica ainda que muitos pensam que a transexualidade é a homossexualidade em estágio avançado. “Temos de falar sobre gênero e diversidade sempre. Fazer com que as pessoas percebam que nós existimos, senão elas ficam alienadas e com uma visão atrofiada. Sabemos que mudar a maneira de pensar das pessoas não é algo fácil, não é tranquilo. Algumas questões só mudam com gerações. Nós estamos vivendo o que os gays viveram nos anos 1960 e 1970. Mas temos que ter visibilidade e acabar com os tabus e os estereótipos construídos em torno de nós”, destaca.
Para desmistificar um pouco essas questões, a Ufes promove vários eventos educativos como o Dia Nacional da Visibilidade Trans, que é organizado desde 2004 e objetiva defender os direitos humanos e o respeito à identidade de gênero.
Outro ponto levantado por Viviana, que, segundo ela, reforça o preconceito contra as mulheres trans, é a ideia ainda presente na sociedade brasileira de que o sexo feminino é inferior ao masculino: “Sendo assim, para quem é preconceituoso, é ultrajante aceitar que uma pessoa designada homem quando nasce se “rebaixe” e queira levar a vida como uma mulher. Para aqueles que se identificam como sexo forte, é inaceitável que um homem se identifique com o sexo que eles acham inferior ao seu. Isso fere o machismo de uma maneira muito forte e reforça ainda mais a violência contra as pessoas trans”.
Ela explica ainda que, em uma sociedade que estabelece e mantém categorias fechadas e alienantes, fugir à regra é uma afronta. “Quanto mais você sai de um padrão estabelecido social e culturalmente, mais preconceito você sofre”, observa.
Para Viviana, a consequência máxima dessa discriminação, o assassinato de pessoas trans, tende a aumentar neste ano. “Temos a impressão de que o número de assassinados será maior. O levante do conservadorismo está cada vez mais alto no País. Isso é observado principalmente nas redes sociais, os comentários relacionados aos gêneros estão cada vez mais agressivos e depreciativos. Estamos vivendo em um momento complicado e de retrocesso em nossa sociedade. Estamos vivendo a mesma situação que os gays viviam anteriormente”, pontua.
Acolhimento
Como ação no enfrentamento à violência, exclusão social e violação de direitos das pessoas trans e travestis, o Departamento de Psicologia da Ufes, coordenado pela professora Andrea dos Santos Nascimento, criou o Grupo de Acolhimento para Pessoas Transexuais e Travestis.
“O objetivo foi abrir um espaço dentro da Universidade para que pessoas trans e travestis pudessem falar sobre suas vidas, seus medos e suas inquietações de forma aberta e sem preconceitos. Um espaço para cuidarem de sua saúde mental, proporcionando um porto seguro para que essa população pudesse revelar seus anseios e suas conquistas o mais inteiramente possível. Foi um momento de profundas e importantes trocas. Oferecemos a possibilidade de aceitação e compreensão sem nenhum pré-julgamento moral”, explica Andrea, doutora em Psicologia.
O grupo foi criado em 2004, junto ao Sistema Conselhos de Psicologia. “Comecei a dar os primeiros passos na militância pela diversidade sexual e de gênero. Nos grupos de militância, a maior reclamação da população LGBTTT era quanto à ausência do atendimento psicológico feito por profissionais preparados. Em outros momentos, a reclamação era de que a psicologia não sabia o que fazer com os pacientes trans e travestis, que a proposta era sempre de usá-los(as) para fins de pesquisa e levantamento de dados. Dessa forma, em 2017, colocamos em prática o primeiro Grupo de Acolhimento para pessoas trans e travestis, dentro da Universidade e de forma gratuita. Hoje, contamos com 12 profissionais”, afirma.
A importância desse tipo de ação é ressaltada ainda por dados que apontam para a vulnerabilidade psicoemocional da comunidade LGBTTT. O suicídio, por exemplo, é quatro vezes maior nesse grupo do que em heterossexuais, sendo que essas pessoas são três vezes mais propensas a desenvolver algum tipo de transtorno psicológico, como a depressão, por exemplo.
Avanços
Apesar dos preconceitos e da falta de informações sobre a transexualidade, a servidora da Ufes e ativista em movimentos sociais Viviana Corrêa destaca alguns avanços. O principal, para ela, é o direito de existir. “Nos anos 1980 e 1990, a população trans vivia em guetos. Acredito que essa violência de hoje é porque ousamos sair dos guetos e ocuparmos os mesmos locais das pessoas cisgêneras. Elas não estavam esperando que fossem dividir os mesmos espaços conosco”, salienta.
Outro ponto destacado como conquista são as políticas do Sistema Único de Saúde (SUS), do Ministério da Saúde, que visam a ações para evitar a discriminação contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais nos espaços e no atendimento dos serviços públicos de saúde. Também há o Projeto de Lei João Nery (PL 5002/2013), que tramita na Câmara dos Deputados desde 2013, e busca garantir à população trans o reconhecimento a sua identidade de gênero. A lei busca permitir que qualquer pessoa acima de 18 anos apresente em cartório um pedido de retificação registral da certidão de nascimento e novas emissões de documentos, com o nome e gênero pelo qual quer ser tratado.
Outra conquista é o nome social, que é a identificação pela qual as pessoas trans, transexuais, travestis ou qualquer outro gênero preferem ser chamadas no dia a dia, em contraste ao seu nome oficialmente registrado em certidão de nascimento. Em 2014, o Conselho Universitário da Ufes aprovou o uso de nome social para estudantes e servidores da Universidade. Estes passaram, então, a ter o direito de requerer o uso e a inclusão nos registros acadêmicos de seu nome social, sempre que o nome civil não refletir sua identidade de gênero ou implicar algum tipo de constrangimento.
O objetivo é conceder aos estudantes travestis e transexuais o direito de utilizar o nome social, sem mencionar o nome civil, durante a frequência de classe, em solenidades, colação de grau, defesa de monografias e em outras situações da vida acadêmica. Histórico escolar, certificados, certidões, diplomas, atas e demais documentos relativos à conclusão do curso e colação de grau serão emitidos com o nome civil, acompanhado do nome social.
Saiba mais: Hucam é referência em cirurgia de transgenitalização
O Hospital Universitário Cassiano Antonio Moraes (Hucam) é referência no tratamento de disforia de gênero para transexuais e transgêneros no Estado do Espírito Santo. Em 1998, realizou a primeira cirurgia de transgenitalização no Estado, conhecida como cirurgia de mudança de sexo. Foi o segundo hospital público brasileiro a fazer a cirurgia e se tornou referência mundial.
Em 2013, uma equipe coordenada pelo professor de Medicina da Ufes Jhonson Joaquim Gouvêa desenvolveu uma técnica inédita
nas cirurgias de redesignação sexual, com preservação dos corpos cavernosos.
Atualmente, o Hucam oferece para a comunidade um Ambulatório de Diversidade de Gênero, o único existente no Estado. A portaria de credenciamento foi publicada no dia 2 de março de 2018. O ambulatório é formado por uma equipe multidisciplinar que inclui urologista, endocrinologista, psiquiatra, ginecologista, infectologista, cirurgião plástico, enfermeiro, psicólogo, assistente social e fonoaudiólogo. Os pacientes são acompanhados em suas dimensões psíquica, social e médico-biológica.
Coordenado pela professora e enfermeira Léia Damasceno Brotto, que é chefe da Divisão de Gestão do Cuidado, o ambulatório atende em média 10 pacientes por mês. Para realizar a cirurgia de transgenitalização os pacientes têm que ter mais de 21 anos, além de passar por uma rigorosa avaliação com a equipe multiprofissional, que dura em média dois anos. A cirurgia, que é gratuita, dura em média quatro horas. O Hucam já realizou 76 cirurgias de transgenitalização.
Faça um comentário