Maioria das pesquisas sobre decolonização no ensino superior vem de ex-colônias

Foto do mural "Presencia de América Latina", do artista mexicano Jorge González Camarena, localizado na Universidade de Concepción, no Chile. Foto: Farisori/CC
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– Por Mikaella Mozer* –

Das pesquisas que buscam entender o processo de decolonização no ensino superior, 52% vêm do continente africano. Em conjunto com a Ásia e a Oceania, a porcentagem sobe para 65%. Em relação à origem dos autores, 47,4% são da África do Sul, que é seguida pelos Estados Unidos, com 12,4%, e pelo Reino Unido, com 8,3%. 

Esses dados são frutos de pesquisa realizada no âmbito do Programa Institucional de Internacionalização da Ufes (PrInt-Ufes), pelo Programa de Pós-Graduação de Educação (PPGE), pelo Programa de Pós-Graduação em Política Social (PPGPS) e por pesquisadores da África do Sul, da Nigéria e da Itália, atuantes na Universidade de Coventry, na Inglaterra, com o intuito de conhecer e analisar quem faz e de onde vêm os estudos focados em decolonização no campo acadêmico. O estudo foi publicado no Globalization, Education and Societies Journal, periódico considerado pelo Scopus como Q1, classificação mais alta dada a 25% das revistas científicas com maior impacto em sua área de atuação.

O processo da pesquisa é resultado do período em que Rafael Teixeira, professor do PPGPS, atuou como professor visitante júnior na Coventry University com a bolsa PrInt da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), que visa à colaboração entre universidades brasileiras e estrangeiras em pesquisas, conferências e intercâmbios de pesquisadores.

Apesar de o resultado apontar que a maioria dos trabalhos sobre decolonização no ensino superior vem de ex-colônias, a pesquisa mostra que a maior parte das publicações foi feita em periódicos europeus, sendo 45 britânicos, seis suíços e seis holandeses; e estadunidenses (21 revistas). No total, as publicações nessas regiões dominaram 81,25% dos periódicos. O corpo editorial segue a mesma linha, com 61,45% de presença de estadunidenses e britânicos. Na base de dados SCImago, 55% dos periódicos são do Reino Unido e dos Estados Unidos. Segundo a pesquisa, isso demonstra a invisibilidade da ciência periférica ao público internacional.

Para chegar nesse resultado, os pesquisadores analisaram 134 artigos escritos de 1985 a 2020 e publicados em 96 periódicos diferentes, encontrados no banco de dados Scopus e que continham as palavras-chave “decolonização”, suas variações linguísticas, e “ensino superior”, sendo todos eles publicados em língua inglesa. 

Currículo

O currículo, tópico que representa 19,4% dos artigos analisados, é considerado uma parte central da discussão sobre a decolonização no ensino superior por ser, de acordo com os pesquisadores, um tema estratégico, pois envolve um campo de disputas. Por um lado, é pelo currículo que se reconhece  o processo de opressão e, por isso, é proposta uma reforma curricular; por outro lado, ele é um dispositivo reduzido meramente a um esquematismo prescritivo.

O levantamento afirma que pensar a decolonização a partir de uma reforma curricular envolve a afirmação de que outros conhecimentos são produzidos e precisam ser legitimados nas universidades como forma de romper as várias formas de opressão. Um exemplo, dentre muitos dados na pesquisa, é o da África do Sul, onde os artigos discutem sobre uma reforma baseada no Ubuntu-Currere; a inclusão dos conhecimentos indígenas africanos no ensino superior como meio descolonizador.

“Por não ser um campo de conhecimentos neutro ou desinteressado, como nos diz Apple, mas um mecanismo de poder, é necessário questionar o porquê desses conhecimentos (europeus) serem importantes e não outros. Quem decide quais conhecimentos devem fazer parte do currículo ou ser deixados de fora? Que relações de poder estão envolvidas no processo de selecionar o que é considerado importante e o que não é? Devemos entender que, por envolver um campo de disputas, o currículo tem relação com um projeto político de produção e disseminação de conhecimentos”, diz a pesquisadora Tânia Delboni, do PPGE.

Outras temáticas

Os protestos estudantis também são fortes catalisadores nesse processo. O #Fee Must Fall (As Taxas Devem Cair) na África, em 2015, é o que mais aparece nos artigos. Esse movimento estudantil criticou os aumentos das mensalidades nas universidades desses países e incentivou as pesquisas destinadas à decolonização no meio educacional. Existiam poucos feitos em 2009, que se multiplicaram a partir de 2015 com os protestos. De acordo com o professor Rafael Teixeira, a situação incentivou as pessoas a pesquisar sobre esse tópico ao perceberem que, além das taxas dificultarem o acesso ao ensino, os conteúdos dados são colonizados, o que suprime os conhecimentos africanos em diversas áreas da educação.

“Para as universidades europeias, a diversidade e a decolonização de seus estudos são feitas por meio da inclusão de não europeus na bibliografia (escritos ou traduzidos para a língua inglesa), algo que, para nós, países colonizados, sabemos que vai além disso. A partir dessa percepção, meus colegas e eu resolvemos aprofundar nisso, buscando e entendendo as diferentes perspectivas teóricas e também trazendo um conjunto de menções que transcendam o uso da palavra ‘decolonização’”, conta Teixeira.

As vozes do gênero feminino, conforme a pesquisa evidenciou, precisam de mais atenção. Isso porque, ainda que as mulheres representem 51% dos autores dos artigos encontrados, não há muitos estudos baseados na discussão de gênero no processo de decolonização, principalmente no tema de educação.

Ademais, a educação foi a área de maior debate, seguido pela questão étnico-racial. Foram encontrados também conteúdos sobre Engenharia (Tecnologia), Saúde, Direito, Artes, Linguística, Teologia, Ciências da Informação e Comunicação.

A diversidade de vozes e visões dentro da pesquisa, para a coordenadora do estudo, Maria Lúcia Garcia, mostra a importância do processo de internacionalização, principalmente nesse caso: “Nessa pesquisa temos a participação de três pesquisadores brasileiros, um italiano e três de países africanos. Com isso, conseguimos ver diferenças; ter esse contato é enriquecedor para a construção de novas parcerias e adensamento do objetivo em tela”, conclui. A pesquisadora aponta a necessidade de um levantamento sobre essa temática com artigos em idiomas que não sejam o inglês para se ter uma dimensão ainda mais abrangente do conteúdo.

* Bolsista de Comunicação em projeto de pesquisa

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