Há 15 anos, estudo com participação da Ufes motivou a criação da Lei Seca

Universidade participou do estudo que levou à política de tolerância zero de álcool para condutores. Foto: Polícia Civil/ES
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– Por Adriana Damasceno –

A Lei Seca (nº 11.705, promulgada em 2008) completa 15 anos no dia 19 de junho e foi baseada em uma pesquisa capitaneada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em parceria com a Ufes. O estudo, realizado entre 2008 e 2012, concluiu que acidentes de trânsito de maior gravidade possuem relação importante com o consumo de álcool pelos motoristas e que, portanto, o limite de alcoolemia para condutores deve ser zero. A pesquisa levantou dados referentes ao comportamento dos condutores em relação a beber e dirigir em quatro cidades da região Sudeste, utilizando-se dos então desconhecidos bafômetros. Em Vitória, os dados foram coletados com apoio do Departamento de Ciências Fisiológicas da Ufes.

Neste Maio Amarelo, mês de conscientização sobre a importância de atitudes positivas no trânsito para a redução de acidentes, o autor do estudo, o professor do Departamento de Clínica Médica da Ufes Valdir Campos, lembra como surgiu a ideia de conduzir a pesquisa que utilizou metodologia inovadora no Brasil: “Desde minha formação como psiquiatra, nasceu o interesse por entender os fenômenos relacionados ao consumo de álcool e suas consequências físicas, psicológicas e sociais. Em 2005, tomei conhecimento de um trabalho pioneiro sobre políticas públicas desenvolvido em Diadema [na Grande São Paulo] e não tive dúvidas de que essa seria a pesquisa que eu sempre sonhara em fazer”.

O estudo foi realizado durante o doutorado de Campos na Unifesp, que originou o trabalho intitulado Políticas do álcool para a redução de acidentes de trânsito, sob orientação do professor Ronaldo Laranjeira, que é referência na temática da dependência química.

Pioneirismo

Até meados da década de 2000, existiam poucos dados nacionais a respeito dos padrões de comportamento em relação ao ato de beber e dirigir. O estudo conduzido por Campos foi um dos primeiros a apresentar dados sobre estes hábitos em grandes capitais do Brasil, obtidos por meio da metodologia até então inédita do uso de bafômetros em postos de checagem de sobriedade.

O teste do bafômetro identificou que mais de um terço dos participantes da pesquisa dirigia com níveis de alcoolemia iguais ou acima do limite legal da época, de 0,6 grama por litro (g/l), segundo o Código de Trânsito de 1997. “Esses achados indicavam um índice de cinco a seis vezes mais alto que os encontrados em pesquisas semelhantes realizadas em outros países”, salienta.

Pesquisa levou a uma conscientização sobre os riscos de beber e dirigir. Foto: Tânia Rêgo/ABr EBC

Em 2005, Campos assumiu o comando do trabalho realizado em Diadema e, na sequência, ampliou a pesquisa para as capitais Belo Horizonte, São Paulo e Vitória, além de dez outras regiões de Minas Gerais. Em Vitória, a pesquisa foi supervisionada pela médica e professora Ester Nakamura-Palacios, do Departamento de Ciências Fisiológicas da Ufes (que se aposentou em dezembro de 2020). Ela que seguia, com sua equipe, as instruções metodológicas definidas por Campos e Laranjeira.

“Nós aqui tínhamos a vantagem de já haver as ações do Batalhão de Polícia de Trânsito, que nos informava quando e onde as blitz seriam realizadas. Assim, nossa equipe de pesquisa ficava a uma certa distância e os policiais direcionavam os motoristas até nós, para que realizássemos a pesquisa. Foi uma colaboração muito importante”, lembra Nakamura-Palacios.

Campos enviou os bafômetros importados e demais acessórios para Vitória, para manter a uniformidade entre os equipamentos utilizados em todas as cidades participantes do estudo. “Hoje as medidas são feitas com aparelhos mais modernos e temos visto um aumento das detecções, apesar da tolerância zero”, ressalta Nakamura-Palacios.

“Em poucos minutos, [o álcool no sangue] atinge o sistema nervoso central e reduz a atenção, a acuidade visual e a coordenação motora.” – Professor Valdir Campos

Funções cognitivas

O diferencial do trabalho realizado na capital capixaba foi a adição de uma avaliação cognitiva breve, que acabou constituindo a tese de doutorado Beber e dirigir: uma avaliação neuropsicológica das funções executivas no uso agudo do álcool, defendida em 2009 pela psicóloga Simone Domingues no Programa de Pós-Graduação em Ciências Fisiológicas na Ufes. O estudo, que teve supervisão de Nakamura-Palacios e Laranjeira, mostrou como o álcool, mesmo em doses baixas, pode prejudicar as funções cognitivas fundamentais na realização de ações que exigem atenção, concentração, planejamento futuro de ações, flexibilidade mental e função motora. 

Campos destacou a relação existente entre alguns destes efeitos da alcoolemia e o desempenho do condutor. Segundo ele, a partir de 0,2 g/l de concentração de álcool no sangue (o que corresponde, por exemplo, ao consumo de um copo de cerveja) uma pessoa já pode apresentar prejuízos na direção (como nos atos de frear, mudar de faixa e no julgamento de velocidade), a depender de fatores como gênero, peso corporal, alimento ingerido junto com a bebida e temperatura. A partir de doses mais altas (acima de 0,3 g/l), os tempos de reação são mais longos, as reações motrizes ficam problemáticas e a pessoa passa por um estado de euforia. 

O pesquisador explica que o risco de beber e em seguida dirigir ocorre porque o álcool é rapidamente absorvido pelo aparelho gastrointestinal e se dissemina por todo o organismo. “Em poucos minutos, atinge o sistema nervoso central e reduz a atenção, a acuidade visual e a coordenação motora. Ainda compromete o senso crítico do condutor e seu tempo de reação e distância”, detalha Campos, lembrando que o uso de bafômetros na pesquisa motivou a construção da política pública com limite zero para quem fosse dirigir. 

Tolerância zero

Campos recorda que, inicialmente, a pesquisa motivou a população a pensar no interesse comum em relação ao consumo de álcool e suas consequências: “A maioria dos condutores se mostrava consciente sobre os riscos do uso de álcool e direção e favorável ao uso do bafômetro”. Como resultado dessa conscientização, observou-se a diminuição nos índices de acidentes e mortes no trânsito em todo o país. 

Os dados da tese, associando álcool e direção, e a intensificação do debate público sobre o tema, motivaram a modificação da lei de trânsito e o limite de alcoolemia para dirigir passou a ser zero, conforme propôs a pesquisa. A Lei Seca estabeleceu, ainda, punições mais severas para os índices de álcool mais elevados e os casos mais graves.

Na avaliação de Campos, a Lei Seca é uma das poucas medidas de prevenção ao consumo de álcool que realmente funciona no país e, nos últimos 15 anos, houve não só uma melhora na conscientização da população, mas também um aperfeiçoamento da fiscalização. Por outro lado, o professor acredita que a diminuição das campanhas de prevenção observada no período seja um ponto negativo. Para ele, o objetivo da fiscalização do consumo de álcool e direção deve ser a conscientização quanto a acidentes de trânsito, especialmente durante grandes eventos nacionais, como o carnaval, quando o consumo de álcool tem um aumento considerável.

“Toda a pesquisa teve como objetivo final a proposição de alguma medida que fosse benéfica para o ser humano. Acredito que foi um pequeno passo para o direcionamento de políticas para o álcool e direção no país, mas um grande esforço da minha parte em contribuir, como cidadão, para o bem de todos nós”, conclui.

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