Cine Metrópolis: 45 anos de muitas histórias

Dinâmica de grupo em reunião de cineclubes
Uma das muitas plenárias da federação de cineclubes, que decidiam as futuras atividades do grupo. Foto: Acervo/Tião Xará
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– Por Adriana Damasceno – 

Conheça a trajetória do cineclube que é referência no Espírito Santo e que se tornou uma das principais salas de cinema universitário do Brasil

Os meus três P’s: paixão, paciência e perseverança. Você tem que fazer isso se quer ser um cineasta”. A frase, atribuída ao cineasta e produtor norte-americano Robert Wise (1914-2005), reflete a história de criação do cineclube que se tornou o Cine Metrópolis. A história começa quando, em 1974, ano da reestruturação do movimento cineclubista em nível nacional, estudantes do então Centro de Estudos Gerais (CEG) da Ufes criaram o Cineclube Universitário Cláudio Bueno da Rocha. A ideia era reunir cinéfilos em um espaço que proporcionasse exibições e comentários de obras cinematográficas. Em 2019, ano em que a Ufes celebra seus 65 anos de existência, o Cine Metrópolis vai comemorar 45 anos de grandes histórias envolvendo paixão, paciência, perseverança e muito amor à sétima arte.

Quando foi criado, o Cineclube Universitário Cláudio Bueno da Rocha – nome dado em homenagem a um importante jornalista cultural de Vitória – tinha um forte perfil político, como toda atividade estudantil. O cineclubismo atuava como centro de resistência à censura e à ditadura, mantendo vínculo com movimentos operários, sociais, afirmativos e ambientais, além de abrigar artistas, músicos, poetas e filósofos. E o Cineclube Universitário funcionava como um ponto de encontro desses
segmentos.

Depois de funcionar por dois anos em uma sala do Centro de Estudos Gerais (CEG, atual Centro de Ciências Humanas e Naturais, CCHN), o cineclube ganhou um auditório em 1976, construído no prédio do Cemuni 6, no Centro de Artes, onde funcionou até 1994. A mudança proporcionou uma sala adequada para exibições e uma melhor organização do funcionamento. Com sala própria, os responsáveis pelo cineclube puderam estruturar mais objetivamente a programação e realizar eventos, como a Semana do Cinema Brasileiro.

Para aprimorar a atuação, em 1977, os dirigentes do cineclube procuraram a então Sub-Reitoria Comunitária da Ufes (atualmente denominada Pró-Reitoria de Extensão) e receberam apoio administrativo e financeiro, o que viabilizou a formação de um grupo de coordenação das atividades. Após participar das Jornadas Nacionais de Cineclubes, nos anos de 1977 e 1978, o grupo assumiu a missão de coordenar a realização da edição seguinte, a XIII Jornada Nacional, em Santa Teresa, interior do Espírito Santo. Esses passos contribuíram para projetar o Cineclube Universitário nos cenários estadual e nacional.

Apoio ao cineclubismo

Foi em 1979 que os estudantes Marcos Valério Guimarães e Sebastião Ribeiro Filho (conhecido como Tião Xará) juntaram-se ao grupo. Nessa época, o Cineclube Universitário Cláudio Bueno da Rocha sediou, por duas vezes, a presidência do Conselho Nacional dos Cineclubes, além de ser o organizador da Federação de Cineclubes do Espírito Santo, criada em 1981. “A Federação funcionava na Ufes e tinha total apoio da Universidade, o que contribuiu para o sucesso das atividades cineclubistas na Grande Vitória e no interior do estado”, conta Tião Xará, que foi o primeiro presidente da entidade, entre 1981 e 1983, e membro da diretoria do Conselho Nacional de Cineclubes, de 1982 a 1984.

Com o auxílio da Ufes, o Cineclube Universitário tinha como custear o aluguel dos filmes e a manutenção dos equipamentos para transmissão. “Contávamos também com o apoio do pessoal do Espaço Universitário (atual Galeria de Arte Espaço Universitário – Gaeu), que fez a programação visual de vários cartazes de eventos, como as mostras do Cinema Brasileiro, do Cinema Russo e do Cinema Espanhol”, lembra Xará.

Paixão e resistência

O Cineclube Universitário utilizava uma tecnologia de projeção de películas em 16 milímetros, o que, naquele momento, atendia a toda a estrutura de cinema e publicidade. No fim da década de 1970 e início da década de 1980, o país passou por um período de mudanças político-sociais (saindo do regime da ditadura militar), além de modificações tecnológicas, que afetaram o Cineclube Universitário. Com o enfraquecimento da estrutura de copiagem, a ameaça de desativação do único laboratório de cinema do Brasil a produzir cópias em 16 milímetros e a falta de financiamento público para manter a estrutura vigente, em meados de 1980 os cineclubes brasileiros passaram por um período muito complexo de adaptação, inclusive com o fechamento de várias unidades.

Em 1985, a crise tecnológica dos 16 milímetros atingiu o ápice e os cineclubistas adotaram o que Marcos Valério define como “estratégia de resistência e guerrilha”: “Além de lidar com a questão da escassez das cópias, a gente passa a quase virar uma ‘sessão da tarde’; éramos obrigados a ficar repetindo indefinidamente os mesmos filmes, pois não tínhamos títulos novos. Mas a gente não parava, era uma paixão nossa de cineclubista não deixar aquilo morrer”.

Em 1991, por meio de patrocínio conseguido junto a empresas de Vitória, o Cineclube Universitário teve seu auditório reformado e o equipamento para o som foi construído. Além disso, a sala ganhou arquitetura sonora e um projetor foi montado.

Em 10 de janeiro de 1992, o Cineclube Universitário fez sua primeira projeção em 35 milímetros, exibindo o drama The Commitments – Loucos pela Fama, e a inauguração foi… um desastre! Devido a problemas no equipamento, não foi possível completar a exibição. “Era o último dia da gestão do reitor Rômulo Penina e, devido à correria, a gente não tinha feito nenhum teste com o projetor”, lembra Marcos. A inauguração foi concretizada de forma simbólica e, a partir daquele dia, o cinema exibia os filmes aos pedaços, com dois equipamentos, devido à necessidade de ficar trocando os rolos para não interromper as sessões. O público entendia as falhas, já que, por um longo período, o Cineclube Universitário se manteve como uma das únicas salas de cinema funcionando em Vitória. Dez dias depois, o Cineclube finalmente funcionou perfeitamente. Foi o nascimento do cinema em seu novo formato, com exibição de filmes do mundo inteiro, além de abertura para realização de eventos culturais. Uma verdadeira sala de arte, que mantinha sua tradição de pensar o cinema como cultura, arte e política.

Diversidade, liberdade, inteligência, sensibilidade

A queda do Muro de Berlim, em 1989, que simbolizou o fim do regime socialista soviético, trouxe, segundo Guimarães, um frenesi de vitória do capitalismo. Foi também nesse momento que surgiram os computadores de uso pessoal e os videocassetes, que, aliados a fatores como a violência urbana, fortaleceram o consumo de obras audiovisuais dentro de casa. “O cineclube perdeu um pouco o espaço de lugar da memória do cinema, da atualização, do estudo, pois a fita levava o filme para a
residência das pessoas”, analisa.

Tantas mudanças trouxeram um novo tempo para o movimento cineclubista. O grupo, então, decidiu que era o momento de adequar o nome do cinema a essa nova realidade. “Testamos as coisas mais absurdas, como Cineclube Fractais, expressão matemática que sugere uma linha de ordem dentro do caos”, conta Marcos Valério Guimarães. Após cerca de três meses de “acaloradas discussões”, segundo ele, foi escolhido o nome Metrópolis, uma referência ao longa-metragem alemão homônimo, obra-prima do cineasta Fritz Lang, lançado em 1927.

O filme mudo homenageado, de ficção científica, aborda uma sociedade na qual a Nova Ordem Mundial foi concretizada, em que uma elite selecionada vive no luxo, enquanto uma massa desumanizada de trabalhadores vive em um inferno monitorado. “Eu continuo acreditando que o mundo é muito mais do que isso e o nome Cine Metrópolis traz esse conceito de que a gente deve prestar atenção na diversidade, na liberdade, na inteligência, na sensibilidade”, defende.

O artista gráfico Hélio Coelho foi convidado a produzir a logomarca do novo espaço e criou fontes próprias para o Metrópolis, que reproduziam as silhuetas dos prédios de uma metrópole contornando o círculo de um boneco. “Era algo que ilustrava a pessoa voltando para o mundo com a informação do filme, com a oxigenação, o atravessamento que o cinema proporciona ao ser humano”, explica Guimarães.

O Cine Metrópolis mantinha, a essa altura, uma relação mais profissional com as distribuidoras, repassando parte dos lucros para o pagamento dos títulos. A média de exibição era de três a quatro sessões por dia de filmes brasileiros, europeus e argentinos, num circuito alternativo. O cinema trabalhava ainda outros aspectos da cultura, apostando em poesia, literatura, música e filmes antigos – algumas vezes com trilha sonora executada ao vivo. As estratégias geravam renda e certa autonomia para, por exemplo, reformar a plateia do auditório, que ganhou inclinação.

O sucesso do Metrópolis foi enorme e ele se tornou um intenso ponto de relação com a cidade. Com isso, a administração da Ufes decidiu ampliar o espaço do cinema e, em julho de 1994, durante as celebrações do aniversário de 40 anos da Universidade, foi construído o Centro de Vivências do campus de Goiabeiras, que incluiria o prédio onde o Metrópolis está localizado hoje. Com essa mudança de ambientação, a sala passou de 99 assentos para os atuais 240. Marcos Valério esteve à frente da sala, como coordenador, por 16 anos, de 1979 a 1995. “Quis manter a ideia na sua concepção original e acredito  que o Metrópolis cumpriu com os objetivos propostos nessa interface universidade sociedade, na discussão e na formação do cinema. O cinema está aí, faz um belo trabalho e continua seu ativismo cinematográfico, o que é algo fantástico”, comemora.

Era digital

Em setembro de 1997, problemas estruturais levaram à interrupção das atividades do Cine Metrópolis. O então coordenador Fernando Alves Neto lidava com máquinas antigas, falta de manutenção estrutural e escassez de novas películas em 35 milímetros, em um período em que se iniciava a era digital do cinema. A falta de variedade de títulos resultou em uma queda vertiginosa da bilheteria, o que prejudicava o custeio da sala e o pagamento dos terceirizados, levando ao endividamento do cinema.

Em fevereiro de 1998, Adriani Raimondi assumiu a coordenação da sala e deu início a um projeto de buscar parcerias para reabrir o cinema. “O público sentiu muita falta do Metrópolis, até porque estamos falando de um tempo em que Vitória contava com apenas três salas em funcionamento e a maioria das pessoas só tinha acesso a filmes por meio do cinema”, diz. Raimondi, que conseguiu verba para a reforma dos projetores e para aquisição de um novo sistema de som. Em agosto do mesmo ano, o Cine Metrópolis foi reaberto ao público com a exibição do filme Policarpo Quaresma, estrelado pelo ator Paulo José. A cada filme exibido, a bilheteria crescia e quase todo o montante arrecadado era alocado para o pagamento das dívidas, o que foi finalizado num período de dois anos.

Após um período de estabilidade, surgiu novo impasse: a progressiva transição dos filmes em película de 35 milímetros para as plataformas digitais. Já se tornava difícil encontrar filmes adequados à tecnologia disponível no Cine Metrópolis, que, além dos problemas de equipamentos, passava novamente por problemas estruturais na parte elétrica e hidráulica.

Em meados de 2013, Rogério Borges assume a Secretaria de Cultura da Ufes, trazendo novamente Fernando Alves Neto para a coordenação do Cine Metrópolis a partir do início de 2014. “Coloquei a modernização do Metrópolis como o grande desafio da minha gestão e comecei a pensar em como manter o cinema funcionando, mesmo de forma não desejável no que diz respeito a equipamento e sonoplastia”, lembra Borges, que mantém uma ligação sentimental com o cinema: “No início dos anos 1980, eu era um músico atuante no cenário cultural capixaba e era na salinha do Cineclube Cláudio Bueno da Rocha que, na hora do almoço, nós, artistas, nos apresentávamos. Eu vi nascer essa história”.

A ideia do secretário de Cultura era promover uma reocupação do espaço. Para isso, buscou parceria com o curso de Cinema e Audiovisual da Ufes e o professor Fábio Camarneiro criou a disciplina optativa História do Cinema Brasileiro, que era ministrada dentro do Cine Metrópolis. Posteriormente, outros professores e alunos juntaram-se ao projeto e diversos cineclubes da Grande Vitória foram convidados a promover seus eventos na sala, numa tentativa de recolocar o cinema no lugar de grande protagonista fora do eixo comercial.

Por nove meses, entre 2016 e 2017, o Cine Metrópolis ficou fechado para obras, realizadas com recurso conseguido junto à Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura. Já sob a gestão do atual coordenador do cinema, Aníbal Souza, foram reformados a parte elétrica, o equipamento de som e o forro, que foi adequado às normas técnicas das salas de cinemas mais modernas do Brasil. Depois de reaberto em março de 2017, o cinema tem sido usado para lançamentos de obras audiovisuais de alunos, de cineclubes e de outros realizadores. As atividades com foco na exibição de filmes correspondem a 80% do total, mas a sala também recebe palestras e pequenos grupos musicais. “A todo palestrante que pretende usar o cinema é solicitado que exiba filmes relacionados ao tema proposto, para que a sala continue a tradição de ser um espaço ligado ao audiovisual”, explica o secretário.

Público consolidado

Durante seus quase 45 anos de história, o Cine Metrópolis se consolidou como uma sala alternativa, focada em obras que estão à margem do circuito comercial. “O cinema da Ufes mantém o perfil de priorizar filmes do curso, dos alunos e o cinema brasileiro de produção independente. Isso é muito importante porque eu não vejo, em Vitória, lugar nenhum para assistir a filmes alternativos nacionais. As grandes redes optam por passar filmes de maior impacto de bilheteria, normalmente comédias”, analisa o professor Fábio Camarneiro, que explica que o público do cinema tem crescido numericamente devido à procura por esse tipo de filme. “Por isso é tão importante que um cinema como o Metrópolis tenha essa cara alternativa. Ser sala de rua, dentro de uma universidade pública e desvinculada da ideia de compra que tem o shopping, é uma característica muito positiva do Cine Metrópolis”, completa.

Além de sediar grandes mostras e festivais de cinema pioneiros no Espírito Santo, como o Vitória Cine Vídeo (desde 1994) e a Mostra Produção Independente da Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas do Espírito Santo (ABD Capixaba, desde 2005), o Cine Metrópolis faz parte do projeto Cinemas em Rede, circuito nacional promovido por uma parceria entre a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP) e o Ministério da Cultura (MinC), que interliga 12 salas alternativas de cinema (das quais 10 são universitárias) espalhadas pelo Brasil para compartilhamento de filmes brasileiros de relevância artística e cultural.

Para o futuro, Rogério Borges planeja a reforma das cadeiras e a aquisição de um novo projetor Digital Cinema Package (DCP), que está se tornando o padrão de distribuição e exibição do cinema digital no mundo. A projeção em DCP tende a ser tecnicamente mais perfeita que a película de 35 milímetros que ainda está em funcionamento no Metrópolis, apesar de o cinema já usar, também, equipamentos digitais com projeção em alta definição.

O Cine Metrópolis da Ufes é hoje um espaço para exibição de filmes, além de palestras e debates acerca de projetos audiovisuais. Foto: Adryelisson Maduro/Ufes

Ambiente universitário favoreceu o cineclubismo

A “era de ouro” do movimento cineclubista brasileiro foi o período compreendido entre o final da década de 1950 e a primeira metade da década de 1980. Os cineclubes nasceram em meio ao processo de legitimação cultural do cinema, em resposta à necessidade que a nascente indústria cinematográfica comercial não atendia. São associações sem fins lucrativos, com estrutura democrática e com compromisso ético que surgiram do agrupamento de pessoas interessadas em assistir e discutir filmes, tornando-se centros de debates tanto sobre as obras cinematográficas como a respeito da conjuntura político-social do país.

Organizados em instituições representativas, como federações nacionais e estaduais, e reunidos em torno de um conselho nacional, os cineclubes assumiram variados perfis, conforme os espaços em que se estabeleceram – salas próprias de cinema ou locais adaptados, como salas de aula – caso da fase inicial do Cineclube Cláudio Bueno da Rocha, na Ufes. Como ponto em comum, havia a defesa de bandeiras como a liberdade de imprensa, o fim da censura e da ditadura militar e a restauração da democracia. Muitos cinemas universitários nasceram como cineclubes, aproveitando o ambiente acadêmico, que pressupõe a existência de reflexão, diálogo, ação e provocação. “O cineclube nasce a partir desse espaço, mas precisa de muito trabalho, muita gente envolvida, muita dedicação. As pessoas fazem por paixão”, explica Camarneiro.

Tião Xará (o segundo, da esquerda para a direita) em encontro com representantes nacionais dos cineclubes. Fonte: Acervo/Tião Xará

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