Artigo: O estudo do golpe nas universidades federais

Na foto, Dilma discursa contra o impeachment no senado
Dilma Rousseff faz discurso de defesa contra o impeachment no Senado Federal em agosto de 2016. Foto: Roberto Stuckert Filho/PR
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– Por Maurício Abdalla, professor do Departamento de Filosofia da Ufes –

Quando a universidade se debruça sobre um tema não significa que ela detém a verdade completa sobre ele ou mesmo que chegue a resultados que são obrigatoriamente aceitáveis e incontestáveis. Porém, a academia se caracteriza por submeter o objeto de seu estudo a um rigor metodológico e à análise de profissionais com formação, capacitados e concursados para o exercício da função. Por isso, as universidades públicas ainda são as principais referências de pesquisa no país e estão à frente de todas as demais em qualidade de ensino.

No decorrer deste ano de 2018, várias universidades colocaram o tema “O golpe de 2016” como objeto de reflexão e ensino. Isso ocorreu porque o assunto é digno de ser abordado de maneira científica, metódica e sistemática. Não deve haver tema proibido para o estudo nas universidades no século XXI. O que deve ser observado não é o objeto de estudo, mas os métodos, o tipo de abordagem, a consistência teórica do tratamento dado e a capacitação dos que se propõem a estudá-lo.

Vários professores da Ufes resolveram também analisar criticamente, sob diversos aspectos e com o instrumental teórico e analítico de que a universidade dispõe, a narrativa de “impeachment constitucional”. Seu problema de investigação era se  justificativa da constitucionalidade da destituição do governo eleito fazia realmente sentido e o que isso significava para a vida da República.

São fatos políticos dignos de estudo e pesquisa (para a ciência política, direito, filosofia social e política, sociologia, psicologia social, linguística, etc.) as motivações declaradas dos deputados federais na votação da admissibilidade do impedimento. O objeto da acusação simplesmente desapareceu sob os votos dados em nome da família, de Deus, das igrejas, do filho, da esposa, etc. Qual a constitucionalidade de um processo que se desvia do objeto da acusação para punir o acusado em nome de coisas abstratas?

Fenômeno mais intrigante se deu no Senado Federal, responsável pela destituição definitiva da presidente eleita. Alguns senadores admitiram ter votado a favor do impedimento sem crime de responsabilidade, conforme os seguintes exemplos:

“Rose de Freitas [senadora do PMDB-ES] já adiantou o voto favorável ao impedimento da presidente Dilma Rousseff, mas não devido às chamadas pedaladas fiscais. Neste caso, Rose não vê crime de responsabilidade, mas defende
a saída de Dilma do Poder” (A Gazeta, 22/04/2016) “Senador vota pelo impeachment, mas diz que não há crime de Dilma. Em vídeo, Acir Gurgacz [senador do PDT-RO] diz que não vê crime de responsabilidade no caso. ‘Falta governabilidade para a presidente voltar a governar’, justificou.” (Portal G1, 31/08/2016)
“[…] Telmário [Mota, senador do PTB-RR] afirma que Dilma não cometeu crime e que o impeachment foi aprovado por causa da perda de apoio político da petista. ‘Considero que a presidente Dilma não foi afastada pela pratica de crime algum, mas sim por posturas políticas adotadas, que não foram capazes de conquistar uma base de apoio congressual minimamente favorável ao seu governo’, diz o texto assinado pelo senador”. (Portal Uol, 31/08/2016)

Ora, se não estamos no parlamentarismo, a aprovação da destituição da presidente legitimamente sufragada em uma eleição legal sem que houvesse crime de responsabilidade é uma manobra de tomada do poder por meios não legais. Mais ainda se, de fato, para o Parlamento, as “pedaladas” se tornam crime de responsabilidade passível de cassação de mandato, por que não se criou uma cascata de cassações de governadores que praticam o mesmo ato com frequência?

Para esse tipo de destituição de um mandatário eleito (independente da avaliação que se faça de seu governo) não há outro nome na literatura a não ser “golpe de Estado”. Um golpe não se caracteriza pelo meio utilizado para ser colocado em prática (se usa o Exército, o Judiciário ou o Parlamento). O que o define é o fato de grupos minoritários se apropriarem do poder sem respeitar a decisão da maioria e os mecanismos institucionais e jurídicos que garantem o Estado de Direito.

A maquiagem de constitucionalidade e de processo social endógeno dada ao golpe tem sido a
nova estratégia de intervenção das potências do Ocidente (lideradas pelos EUA) na política de países que estão sob seu interesse – como revela a história recente de países como a Geórgia, Síria, Egito, Jordânia, Honduras, Paraguai, Venezuela, Bolívia, etc. O termo que vem sendo utilizado para defini-la é “golpe suave”, uma estratégia sistematizada, estudada e publicada e, cada vez com mais frequência, aplicada em vários países do mundo.

A estratégia de tomada não-violenta de poder foi elaborada pelo filósofo e cientista político estadunidense Gene Sharp (1928-2018). Devido à utilização das ideias de Sharp pelos EUA e potências do Ocidente (aliados às elites locais) para destituição não-violenta de governos estrangeiros, criou-se o conceito de “golpe suave” (soft coup).

Sharp reconhece, por meio de carta aberta de 2007 (publicada no site do Instituto Albert Einstein – www.aeinstein.org), o uso de sua estratégia por militares, políticos e organismos de inteligência, mas defende-se da acusação de propor esse uso.

A ação não violenta é uma técnica para a condução de conflitos, assim como a guerra militar, o governo parlamentar e guerra de guerrilhas. Essa técnica usa métodos psicológicos, sociais, econômicos e políticos. Essa técnica tem sido usada para uma variedade de objetivos, tanto “bons” quanto “ruins”. Foi usada tanto para mudar governos quanto para apoiar governos contra ataques. […] “Golpe suave” relaciona esse tipo de ação aos golpes antidemocráticos de grupos militares, políticos ou de inteligência, que são muito diferentes. Os golpes são uma das principais formas pelas quais as ditaduras são estabelecidas (grifos meus).

A expressão “golpe suave” (com variações como “golpe branco”, “golpe brando”, “golpe silencioso”, etc.) foi incorporada ao vocabulário das Ciências Políticas. Sua utilização visa modificar e ampliar o conceito de “golpe de estado”, incorporando a estratégia não-violenta– estudada e desenvolvida por Sharp – na ideia de tomada “repentina” e “inesperada” do poder sem a legitimidade popular, que define o conceito de golpe.

Estudar essa nova estratégia de destituição de governos no mundo contemporâneo é condição fundamental para o entendimento de geopolítica, geoeconomia e das novas configurações do poder no mundo globalizado. Por isso, deve ser estudada de maneira acadêmica, ou seja, de forma metódica e sistemática nos ambientes universitários e ser também tratada como objeto de ensino em diferentes campos do saber. Entender sua aplicação no Brasil é condição para se entender o próprio país.

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