A crise generalizada aberta pela pandemia do COVID-19 encontra um Brasil em situação delicada. Combinada com um cenário pré-existente de baixo crescimento econômico, de elevado desemprego e informalidade, de extrema desigualdade social, de pobreza endêmica e de precariedade nas condições de vida e de moradia de vastas parcelas da população, bem como de serviços sociais degradados, tal pandemia desafia o país a abandonar os preceitos da austeridade fiscal e lançar mão de uma ação coordenada por parte dos governantes e da população, sob pena de a situação de vulnerabilidade e insegurança social ser levada ao limite.
Diante da combinação entre instabilidade político-institucional e a crise do COVID-19 foi forjada uma falsa polêmica entre morrer de fome ou morrer contaminado pelo vírus, numa oposição superficial e simplista entre economia e saúde. Essa dicotomia é falsa e está assentada na ideia de que não há alternativa de geração de renda diante do confinamento em massa. Ela leva a um debate sem sentido no qual as responsabilidades da falsa decisão entre ficar em casa sem renda ou se contaminar são individualizadas, como se as consequências da crise fossem privadas e não sociais.
Em todo o mundo, a percepção generalizada dos cientistas de que o isolamento em massa consiste em um imperativo sanitário vem sendo seguida por governos dos mais diversos matizes. Mesmo administrações mais conservadoras têm adotado medidas enérgicas de manutenção do emprego, recomposição da renda dos trabalhadores e ampliação dos benefícios sociais para trabalhadores informais. Essas iniciativas indicam que existe uma alternativa e ela consiste no enfrentamento coletivo e não individualizado do problema, o que passa por uma atuação ativa do Estado no alargamento das proteções legais e garantia à vida, recompondo algum senso de comunidade, perdido pela ruptura dos laços de solidariedade com o amadurecimento do capitalismo.
Infelizmente, não é essa a direção das tímidas medidas que vêm sendo tomadas pelo governo brasileiro, como a que liberou 1,2 trilhões de reais para o sistema financeiro nacional. Embora seja uma medida para garantir a solvência do sistema financeiro nacional e, assim, procurar manter os canais de crédito abertos sobretudo aos empresários e, em menor medida, aos trabalhadores, a crise de 2008 mostrou que, em circunstâncias dramáticas, os bancos asseguram suas posições de solvência, enquanto os demais setores da economia quebram. Contudo, não parece ser isso o que tem ocorrido. Ademais, ainda que o circuito do crédito seja mantido, não há garantia que os tomadores desses recursos conseguirão recuperar as condições econômicas para arcarem com o pagamento destas dívidas sem ampliar com isto sua vulnerabilidade.
Para os trabalhadores e os pequenos empresários, estas soluções, em linha com os interesses empresariais, apenas agravam as incertezas quanto à renda e ao emprego, conforme pode ser observado também no caso da Medida Provisória 927/2020 que, dentre outras deliberações, permitia a suspensão do trabalho por quatro meses independente do pagamento de salários. Esse artigo fora revogado, pela Medida Provisória seguinte, 928/2020. Entretanto, foram mantidas as demais disposições que: autorizam a redução salarial em até 25% independente da redução da jornada e a antecipação de férias de forma unilateral pelo empregador, liberam os empregadores das exigências relativas às normas de saúde e segurança no trabalho e, dentre outras medidas, suspende a exigibilidade do recolhimento do FGTS pelos empregadores, referente às competências de março, abril e maio de 2020. Além de subestimar a gravidade da crise, essa Medida Provisória vai na direção de radicalizar a “reforma trabalhista”, jogando o ônus da crise econômica nas costas dos trabalhadores.
O que se avizinha é uma crise sistêmica que mostra, uma vez mais, a incapacidade do mercado em dar respostas à altura dos problemas, dos quais se destacam as ameaças de desabastecimento alimentar, o acesso restrito ao sistema de saúde e a interrupção do fluxo de renda para amplas parcelas da população. A ação direta do Estado é imprescindível para atenuar o colapso econômico durante o isolamento domiciliar, bem como lançar medidas de injeção de recursos públicos direcionadas para o planejamento econômico, acenando para o momento posterior à pandemia.
É importante frisar, contudo, que não se trata de solicitar a entrada do Estado neste momento de crise, como uma espécie de “salva-vidas” da economia e da sociedade, em vias de sufocar-se. Defende-se outra abordagem da crise em curso. Neste sentido, a decisão de transferir recursos por meio de uma renda básica de R$600,00 pelos próximos três meses, a começar em 16 de abril, é de suma importância, mas não parece suficiente. Ao mesmo tempo, a própria dificuldade de execução dessa medida ainda tímida indica como a mobilização dos parcos aparatos de planejamento econômico restantes no Estado brasileiro, produto de décadas de equívocos na condução da política econômica nacional, não será uma tarefa fácil. Daqui para frente, é fundamental que se construam mecanismos de controle social da produção econômica, assegurando as condições materiais para uma sociedade livre e coesa. As decisões de produção e alocação de recursos não podem continuar guiando-se por interesses exclusivamente mercadológicos. Em lugar da produção aleatória, faz-se imperativo, ao menos enquanto durar a pandemia do COVID-19, a tomada de medidas urgentes e vigorosas. Dentre as quais destacamos:
- i) estabelecer o planejamento da produção e da distribuição de leitos, materiais hospitalares, e outros meios necessários ao combate da pandemia;
- ii) organizar o abastecimento da oferta de gêneros alimentícios, inclusive por meio da distribuição emergencial de gêneros básicos as pessoas em condição de maior vulnerabilidade;
- iii) garantir condições de moradia para pessoas sem casa própria, subsidiando aluguéis e vedando despejos judiciais enquanto durar a pandemia;
- iv) organizar a produção e distribuição de equipamentos de proteção individual e de material de higiene pessoal;
- v) garantir a renda dos trabalhadores formais por meio de legislação que garanta a estabilidade do emprego e de suporte creditício às empresas, sobretudo as de pequeno porte;
- vi) garantia de renda aos desempregados, microempreendedores, dos trabalhadores informais, em plataformas digitais e dos terceirizados por meio de aporte do Estado;
- vii) ampliar e incrementar os mecanismos de transferência de renda para as parcelas mais pauperizadas da população;
- viii) garantir as condições de vida, saúde e trabalho aos trabalhadores e trabalhadoras de setores essenciais; dentre outras medidas.
Certamente nenhuma destas medidas alcançará solucionar o problema, cujos efeitos estão fora de qualquer possibilidade de previsão. Seu objetivo consiste apenas em buscar minorar o sofrimento dos setores mais vulneráveis da população, garantindo condições mínimas para que todos possam seguir as recomendações científicas e permanecerem em suas casas. Para além dessas medidas urgentes, esse cenário dramático também nos convoca a questionar a própria forma em que a sociedade se encontra organizada, e a agir para transformá-la, enquanto há tempo. Não é possível continuarmos a naturalizar uma sociedade que tem como princípio ordenador máximo a busca por lucros, que se baseia em crescente desigualdade, que relega grande parte da população a condições miseráveis de existência, que degrada o meio ambiente, que nos coloca em competição permanente e tende a destruir qualquer laço de solidariedade entre as pessoas, que coloca a “saúde da economia” acima da saúde das pessoas, e concebe a mera manutenção de um sistema de saúde universal e de qualidade como um “custo” intolerável.