Violência contra a mulher: “você vai se arrepender de levantar a mão para mim”

Mulher faz gesto de "basta!" com a mão
Foto: Helio Marchioni
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– Por Lorraine Paixão –

Professoras da Ufes dedicam seus estudos à problemática da violência contra a mulher e como os padrões de gênero implicam uma hierarquia de poder. As pesquisas revelam que a vergonha, o medo e a dependência econômica são alguns dos fatores que muitas vezes impedem essas mulheres de fazerem a denúncia. Os estudos também apontam que um dos caminhos para combater essa violência está na mudança na formação do homem, isto é, em um novo modelo de masculinidade.

“Cadê meu celular?/ Eu vou ligar no 180 / Vou entregar teu nome/E explicar meu endereço. […] Eu solto o cachorro/e, apontando pra você/ eu grito: péguix/Eu quero ver você pular,/ você correr/na frente dos vizinhos, /cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim” (Elza Soares)

É com esses versos que a cantora Elza Soares denuncia, no samba “Maria da Vila Matilde (Porque se a da Penha é brava, imagina a da Vila Matilde!)”, que integra seu mais recente álbum “A Mulher do Fim do Mundo”, a cultura da violência contra a mulher no Brasil.

Anos atrás, a mesma Elza também sofreu violência doméstica. Ela apanhou diversas vezes de seu então marido, o jogador da seleção brasileira Mané Garrincha. Em uma ocasião, chegou a ter os dentes quebrados. Na época, sofreu calada. Agora, aos 87 anos, faz um clamor às  brasileiras para denunciarem qualquer indício dessa bruta conduta praticada por homens.

O 180, disque denúncia mencionado pela cantora, foi criado pela Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres em 2005 para servir de canal direto de denúncia e orientação sobre direitos e serviços públicos para a população feminina. Ele é a porta principal de acesso à Rede de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher que é composta ainda por: agentes governamentais e não governamentais formuladores, fiscalizadores e executores de políticas voltadas para as mulheres; serviços/programas voltados para a responsabilização dos agressores; universidades; órgãos federais, estaduais e municipais responsáveis pela garantia de direitos; e serviços especializados e não especializados de atendimento às mulheres em situação de violência.

Entre esses serviços oferecidos estão as Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM), unidades especializadas da Polícia Civil que realizam ações de prevenção, proteção e investigação dos crimes de violência doméstica e sexual contra as mulheres. No Espírito Santo, existem dez unidades localizadas nos municípios de Vitória, Serra, Vila Velha, Cariacica, Guarapari, Linhares, Cachoeiro de Itapemirim, Aracruz, Colatina e São Mateus.

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Além das DEAMs, no Estado existe ainda uma unidade de Plantão Especializado da Mulher com atendimento 24 horas, no bairro Ilha de Santa Maria, em Vitória, e mais seis Centros de Referência de Atendimento à Mulher. Todos esses locais de atendimento foram inaugurados recentemente.

São instituições que têm menos de três décadas de existência e são fruto de um período marcado pela intensificação da luta dos movimentos sociais por políticas públicas para mulheres e pela criação de leis como a Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006.

Padrões de gênero e a violência contra a mulher

A doutoranda e mestre em História Social das Relações Políticas, pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Mirela Marin Morgante apresenta em sua dissertação “Se você não for minha, não será de mais ninguém: a violência de gênero denunciada na DEAM/Vitória-ES” alguns dados relevantes de denúncias feitas entre os anos de 2002 a 2010 na Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher de Vitória.

Nesse mesmo período, o Espírito Santo registrou, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 1.525 homicídios de mulheres. Nenhum tipificado até então como feminicídio, isso, porque a Lei 13.104, que prevê o feminicídio, só foi sancionada em março de 2015. Mesmo com a lei ainda não sendo aplicada, a pequisadora  Mirela Marin Morgante analisou em sua pesquisa os Boletins de Ocorrências registrados nos casos em que os agressores denunciados tinham algum tipo de vínculo afetivo com a vítima da violência.

A pesquisadora compilou o total de 12.085 Boletins de Ocorrência (BO) registrados no período de janeiro de 2002 a dezembro de 2010 na DEAM/Vitória, sendo que, desse total, 7.914 foram de denúncias cujos agressores eram maridos ou ex-maridos, namorados ou ex-namorados, companheiros ou ex-companheiros das vítimas, ou seja, os agressores tinham vínculo afetivo com suas vítimas.

Para a professora do Departamento de Direito e presidente da Comissão Permanente de Direitos Humanos da Ufes, Brunela Vincenzi, há um ciclo reincidente de violência quando a vítima e o agressor são pessoas próximas. “A violência no ambiente de um relacionamento acaba se repetindo várias vezes, em razão do vínculo que une as pessoas e impede uma separação ou afastamento rápido”, afirma.

Com os dados levantados pela pesquisadora, revela-se que, naquele período, iam todos os dias à DEAM/Vitória cerca de três mulheres denunciarem a violência praticada por seus próprios companheiros, o que equivale a 989 denúncias ao ano.

Porém esses dados não refletem completamente a realidade. Ainda há mulheres que não denunciam as agressões por diferentes motivos, seja a dependência financeira, seja o receio com a separação, seja a vergonha, entre outros.

“Há muitas mulheres que sofrem violência e nem sequer denunciam. Verificamos que a maioria das mulheres que fez a denúncia nos boletins analisados era negra de regiões periféricas. No entanto, isso não quer dizer que elas sejam a maioria, é difícil saber. O que notamos é que muitas mulheres de classes média e alta têm receio de denunciar seus companheiros por conta da posição social da família e do marido, como foi o lamentável caso da médica assassinada Milena Gottardi”, comenta a pesquisadora, que relembra esse caso de feminicídio que chocou os capixabas em setembro de 2017.

Nos Boletins de Ocorrência analisados pela pesquisadora, três motivos foram muito mencionados pelas vítimas para encorajarem seus companheiros a serem violentos: sentimento de posse e domínio do companheiro sobre elas; questionamento, por parte delas, acerca do trabalho e da virilidade masculina; e o fato de as vítimas não quererem mais continuar o relacionamento.

Essas três características são consequências das relações de gênero forjadas pela sociedade patriarcal, que coloca o homem como sujeito soberano, viril e forte, e a mulher como sua propriedade, submissa e obediente, como ressalta a pesquisadora Mirela Marin Morgante. “Na sociedade patriarcal em que vivemos, os homens aprendem a ser agressivos desde a mais tenra idade. A agressividade é a forma com que os ensinam a resolver os problemas.

Além disso, a sociedade os ensina a serem possessivos com suas companheiras, a serem sexualmente ativos e a proverem a sua família. A identidade masculina se forma dessa maneira”, reflete a pesquisadora. “Precisamos criar um novo modelo de masculinidade, uma nova forma dos homens se sentirem reconhecidos socialmente que não seja por meio da violência e da posse sobre as mulheres”, pontua.

Resgate histórico: quem ama não mata

No início da década de 1980, os movimentos feministas concentraram os esforços de luta para a problemática da violência contra a mulher. Não à toa, é exatamente nesse período que é inaugurada no ano de 1985, em São Paulo, a primeira Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher do país, nesse mesmo ano foi inaugurada também a DEAM/Vitória/ES. É também nessa década que a mídia passou a dar visibilidade aos casos de violência doméstica e, portanto, levantar o debate entre a opinião pública acerca dessa questão.

Na dissertação de Mirela, há o resgate histórico de três casos de violência contra a mulher que repercutiram na mídia brasileira. O primeiro caso foi o de uma mulher pertencente à classe alta paulista que escreveu, em meados dos anos 1980, uma carta ao jornal local denunciando seu marido, um professor universitário renomado, de tê-la espancado. “À época essa denúncia, que teve repercussão nacional, colaborou para romper com o estigma de que a violência doméstica só acontecia com mulheres pobres, negras e com baixa escolaridade”, ressalta Mirela.

O assassino de Ângela Diniz afirmou ter matado por amor, o que deu origem ao slogan feminista: “Quem ama não mata”

O segundo crime que ganhou destaque na mídia e chocou a opinião pública foi o assassinato da socialite mineira Ângela Diniz pelo seu companheiro, Doca Street, em 1976, no Rio de Janeiro.

Apesar de ter gerado manifestações dos movimentos feministas que pediam a punição de Doca, o assassino de Ângela Diniz foi absolvido pelo júri sob o argumento de que a matou em “legítima defesa da honra”.

Após ser absolvido, o assassino ainda afirmou ter matado por amor, o que deu origem ao slogan feminista “Quem ama não mata” e provocou várias manifestações públicas de enfrentamento à violência contra a mulher.

O movimento feminista se fortaleceu e manteve firme a campanha de denúncia e enfrentamento à violência contra a mulher. A campanha teve grande repercussão pública, e as manifestações contra a absolvição do assassino Doca Street se avolumaram, fazendo com que, em 1981, Street participasse de um novo julgamento. Neste, ele foi condenado a 15 anos em regime fechado.

Na dissertação, a pesquisadora resgata ainda um terceiro caso de violência doméstica que também foi bastante exposto na mídia. Em março de 1981, a cantora Eliane de Grammont foi covardemente assassinada com cinco tiros disparados pelo ex-marido, o também cantor Lindomar Castilho. A cantora fazia uma apresentação no bar Belle Époque, em São Paulo, quando foi surpreendida pelo ex-marido, de quem havia se separado três meses antes de seu assassinato.

O crime gerou de imediato grande comoção, tanto por parte da mídia, como pelo movimento feminista paulista, que organizou na época um enorme ato público. As ativistas permaneceram mobilizadas durante todo o julgamento. “A visibilidade dada à violência contra a mulher era crescente e cada vez mais se almejava que essa questão se tornasse um problema social público, e não restrito à esfera privada”, afirma a pesquisadora.

Preso em flagrante, Castilho usou sem sucesso o argumento de “legítima defesa da honra”. No entanto, naquele momento histórico o movimento feminista estava mais forte e organizado. Com tamanha visibilidade dada ao caso e com a pressão das ativistas feministas nas manifestações de rua e nos espaços midiáticos, o assassino de Eliane Grammont foi condenado em 1984 a 12 anos de prisão – dos quais cumpriria somente cinco, favorecido pela liberdade condicional oferecida em 1989.

Desse modo, esses casos tornaram-se divisores de água no novo tratamento dado à questão da violência de gênero. Com a visibilidade dada a esses três bárbaros crimes em finais do século XX, mais mulheres passaram a denunciar as agressões sofridas dentro de casa, ocultada pelas paredes de suas residências e mantidas em silêncio em nome da “honra”.

“Naquele final de século, as agressões de caráter doméstico passaram a ser tratadas como um problema de saúde pública, que requer atenção especializada”, diz a pesquisadora. As denúncias, as manifestações, a visibilidade dada contribuíram  assim para que o Estado olhasse de verdade para a questão e elaborasse, de fato, políticas públicas específicas para a problemática da violência de gênero.

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