PANDEMIA E PRECARIEDADE: A NATURALIZAÇÃO DOS DRAMAS SOCIAIS

SUBGRUPO EMPREGOS E SALÁRIOS [1]

Nas últimas semanas, a crise sanitária aberta pela disseminação do COVID-19 reeditou um temporário consenso entre economistas em torno da defesa do aumento do gasto público. No Brasil não é diferente, ortodoxos e heterodoxos ressuscitam o velho keynesianismo e defendem o aumento temporário do déficit público para salvar vidas e evitar um colapso econômico. A despeito do posterior dissenso que se abrirá tão logo o debate sobre a velocidade do ajuste fiscal pós-crise voltar ao centro da agenda, neste momento, o que volta à cena é o protagonismo da atuação estatal, elemento fundamental para garantir os aportes necessários ao sistema de saúde e o fluxo de renda na economia. A gravidade da crise, no entanto, e o teor dos esforços que se vêm exigindo dos Estados Nacionais indicam que um efêmero consenso keynesiano, nos moldes da resposta à crise de 2008, não será suficiente.  

Neste cenário, em que são legitimadas ações estatais típicas de contextos de guerra, as posições do governo brasileiro se mostram descabidas, tanto pelo sentido quanto pela excessiva parcimônia nas ações. Tais medidas e posicionamentos que discutiremos mais detidamente abaixo, na verdade refletem a versão mais escancarada da sociabilidade neoliberal, expondo milhares de indivíduos aos riscos incalculáveis que a atual pandemia vem produzindo. 

Neste sentido, em 18 de março, quando alguns estados já recomendavam o isolamento social, o governo federal sinalizou com a concessão de uma renda básica de R$ 200,00 aos trabalhadores informais. Após discussão no Parlamento, seu valor foi ampliado para R$ 600,00, incluindo o direito às mulheres chefes de família de R$ 1.200,00. Não bastasse as enormes dificuldades reais e artificiais para operacionalizar a entrega do recurso às famílias, seu valor é insuficiente, tendo em vista que levará a uma pauperização ainda maior dos trabalhadores informais. A perda de renda destes trabalhadores fica evidenciada quando a renda básica estabelecida pelo governo é contraposta aos rendimentos médios destes trabalhadores antes da crise. De acordo com a PNAD Contínua, o segmento com a menor renda média entre os informais são as trabalhadoras domésticas sem carteira assinada, que receberam em média R$ 763,00 mensais no quarto trimestre de 2019. Os trabalhadores do setor privado sem registro recebiam, no mesmo período, em média R$ 1.442,00 por mês e os trabalhadores por conta própria tiveram um rendimento médio mensal de R$ 1.711,00. De maneira geral, em termos percentuais, as perdas podem variar de 21% a quase 65% dos rendimentos médios. Essa redução direta na renda não apenas inviabiliza a condição destes trabalhadores seguirem as recomendações de isolamento social, como tende a reduzir o poder de consumo dessa parcela da população, agravando a crise econômica durante e após o período da pandemia.

Se a política estatal voltada para os trabalhadores informais é insuficiente, as soluções apresentadas para manutenção dos empregos formais tendem a ampliar ainda mais o problema. As medidas provisórias 927/2020 e 936/2020, publicadas em 22 de março e 1º de abril, são claramente orientadas pelos interesses empresariais, reafirmando a disposição do governo em dobrar a aposta nas soluções pró-mercado. Neste sentido, elas seguem a mesma premissa da reforma trabalhista e nivelam por baixo as necessidades dos trabalhadores brasileiros. 

Mesmo com a revogação do artigo 18 da MP 927, que autorizava a suspensão do contrato de trabalho por quatro meses independente do pagamento de salários, foi mantida a lógica de alargar o poder dos empregadores determinarem os termos do contrato de trabalho, com uma aproximação direta entre ambas as partes. Essa medida autoriza a redução da jornada em até 25% com correspondente redução salarial; amplia possibilidades do uso do teletrabalho; autoriza o banco de horas, negociado individual ou coletivamente, com compensação em até dezoito meses, bem como a antecipação das férias (sem assegurar a antecipação do adicional) e a concessão de férias coletivas, de forma unilateral, a ser comunicada em apenas até 48 horas de antecedência; suspende o pagamento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) entre abril e junho, sem correção monetária após o período; libera os empregadores das exigências quanto às normas de saúde e segurança no trabalho e não reconhece o adoecimento no trabalho como doença ocupacional, salvo se comprovado o nexo causal, justo quando há maior risco de contágio[2].

Atendendo à mesma lógica, a MP 936, lança o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda. Ela introduz a recomposição salarial compensatória da redução da jornada de trabalho com correspondente redução salarial, tendo como referência o valor do seguro desemprego e não a folha de pagamentos. A recomposição é insuficiente pois não evitará uma contração significativa da renda dos trabalhadores, implicando em retração da massa salarial[3]

O momento requer que se amplie a legislação para proteger os trabalhadores, e não para esvaziar direitos em nome de uma suposta manutenção do emprego. A crença na flexibilização da lei, entretanto, invalida o debate em torno de medidas emergenciais e eficazes para enfrentar a crise. É isso que a aprovação da MP 905, também chamada de “MP do Contrato verde e amarelo”, na Câmara dos Deputados em 14 de abril demonstra. Essa medida, que foi encaminhada pelo governo em novembro de 2019, expira no próximo dia 20/04, se não for aprovada no Senado e sancionada pelo presidente antes desta data. Ela reduz encargos para patrões que contratarem jovens de 18 a 29 anos, no primeiro emprego, e para pessoas acima de 55 anos que estavam fora do mercado formal. A medida rebaixa o patamar de direitos (como a redução da multa do FGTS em caso de demissão de 40% para 20% e a ausência de contribuição patronal ao INSS) em nome da criação de vagas que pagam até R$ 1.567,50. Mesmo que se ignore a crítica à ideia de que retirar direitos cria empregos, o momento não exige que se legisle sobre formas mais flexíveis de contratar, mas sobre formas de impedir que se dispense trabalhadores. 

A lógica neoliberal das medidas anunciadas pelo governo se evidencia na estratégia de apostar em mais flexibilização para tentar enfrentar a crise. Estratégia essa que não vinha dando certo, nem mesmo, no momento anterior à pandemia. Ao contrário, o que o governo está vislumbrando para atenuar os efeitos da crise são medidas incompatíveis com a precária realidade do mercado de trabalho brasileiro, marcada por grande contingente de trabalhadores informais, alta rotatividade e baixos salários. 

Nem mesmo o crescimento econômico do início da primeira década do século XXI foi capaz de reverter as características históricas do mercado de trabalho. Apesar do crescimento econômico ocorrido até 2015 ter contribuído para a queda do desemprego e aumento dos postos de trabalho formais, o grande contingente de trabalhadores informais e as múltiplas situações de heterogeneidade da situação de trabalho dentro da relação formal impuseram a lógica de manutenção da condição de precariedade. O aumento exponencial do contingente de trabalhadores terceirizados e microempreendedores individuais são exemplos nessa direção. 

Entretanto, o quadro hoje é ainda mais dramático. Desde 2015, a desestruturação do mercado de trabalho brasileiro tem se aprofundado rapidamente, o que indica que a crise aberta pelo Covid-19 só veio acentuar uma situação já devastadora. A partir desse ano, a recessão trouxe consequências, elevando o número de pessoas desempregadas e ocupadas em posições precárias. Mesmo com o tímido crescimento do Produto Interno Bruto depois de 2016, a economia não foi capaz de gerar os postos de trabalho que foram perdidos. Os dados mais recentes da taxa de desocupação, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que ela se encontra em 11% da força de trabalho, o que representa 11,6 milhões de pessoas que buscam por uma ocupação no país e não encontram. Nos anos recentes, o maior número da série histórica foi alcançado em 2017, com 13,7% representando cerca de 13 milhões de pessoas, como se vê no gráfico abaixo. Mesmo esta suave tendência de redução da desocupação desde 2017 se deve menos ao crescimento econômico apresentado no período do que à elevação do índice de informalidade no país, o que na verdade mostra uma perda massiva da qualidade dos empregos. 

Taxa de desocupação trimestral (%)

           

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Elaboração própria.

Apresentada como prerrogativa para reverter esse quadro de desemprego e crescente informalidade, a Reforma Trabalhista foi aprovada em novembro de 2017, ainda no governo de Michel Temer. Entretanto, de lá para cá, o que se tem visto é um avanço da precarização do trabalho, com esvaziamento do patamar de proteção e com a elevação da população que se encontra subocupada e na informalidade. 

No gráfico abaixo, tem-se que a população subutilizada, isto é, aqueles que estão desocupados, subocupados ou na força de trabalho potencial, apresenta uma tendência de crescimento desde a aprovação da reforma. No último trimestre de 2019, a taxa fechou em 23%, sendo o menor resultado para o ano, mas que representa, ainda, mais de 20 milhões de pessoas. Esse dado nos ajuda a entender como se comporta o mercado de trabalho, uma vez que traz evidências do avanço da precarização. No último trimestre de 2019, a taxa de subocupação por insuficiência de horas trabalhadas foi 7,9%, um número que representa quase 7,5 milhões de pessoas que gostariam de aumentar sua jornada de trabalho e, assim, obter uma renda melhor. 

Taxa de subutilização da força de trabalho (%)

       

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Elaboração própria.

Com base nestes números não parece haver argumentos para que o governo continue apostando na flexibilização como estratégia para a manutenção de empregos, uma vez que a mesma não surtiu os efeitos esperados nem mesmo nas condições anteriores à presente crise. Como dito, no momento anterior à pandemia, a estabilidade na tendência de queda da taxa de desocupação foi proporcionada pela elevação do número de trabalhadores informais, isto é, aqueles indivíduos que não possuem um vínculo empregatício, carteira de trabalho assinada, nem qualquer empreendimento formalizado. Hoje mais de 40 milhões estão nessa situação e, portanto, encontram-se desprotegidos socialmente. Como já foi mencionado acima, o tímido apoio financeiro de R$ 600,00 por três meses não conseguirá resolver a situação destas pessoas, permitindo que se amplie sua vulnerabilidade.

Números de trabalhadores informais (2018-2019)

         

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Elaboração própria. Trabalhadores informais corresponde a soma dos trabalhadores do setor público sem carteira assinada, do setor privado sem carteira assinada, domésticos sem carteira assinada, por conta própria e trabalhador auxiliar familiar.

A lógica neoliberal de reprodução da sociedade e de sua sociabilidade, personificada de forma ainda mais clara no atual governo, se materializa no mercado de trabalho através dessa precarização das relações laborais. Seu núcleo está na concepção de que a sociedade é constituída por indivíduos, cuja sobrevivência deve ser garantida por seus próprios meios. Dentro desta lógica, qualquer interferência externa ou coletivista tende a desarranjar o sistema econômico e torná-lo menos eficiente. Neste sentido é que instituições de representação trabalhistas, como os sindicatos, já vinham sendo fragilizadas por reformas como a de 2017. A própria MP 936, citada anteriormente, que dentre outras coisas, possibilita as ações diretas do empregador para com o trabalhador sem obrigar o intermédio de entidades representativas, segue nesta lógica. 

Nesse sentido, é evidente que quem sofrerá mais com a atual crise é justamente essa parcela da população que depende de uma renda variável e que não está amplamente coberta por uma tela de proteção social, como os trabalhadores por conta própria e microempreendedores individuais (MEI). Esta parcela da população não se tornou vulnerável com a crise, pois a precariedade de sua condição já existia, com a diferença de que ela aparecia na forma de dramas pessoais, que eram aparentemente diluídos pelo contexto de sucessos e fracassos, tão exaltado pela lógica neoliberal. O efeito mais imediato da crise no mercado de trabalho é escancarar esta vulnerabilidade, como se do dia para a noite todos passassem a depender de um aparato social mínimo para sua sobrevivência. 

O vultoso número de trabalhadores por conta própria, 24 milhões de brasileiros, de acordo com os dados da PNAD-Contínua, referente ao último semestre de 2019, torna a situação insustentável. Esses trabalhadores recebiam em média pouco mais de R$ 1.700,00. São em geral autônomos que fazem bicos, motoristas e entregadores de aplicativos de delivery, vendedores ambulantes, prestadores de serviços, dentre outros, que, neste momento, veem as possibilidades de ganho de renda severamente reduzidas devido à pandemia. Ou, por outro lado, a eles não é garantido o direito ao isolamento, pois sem renda precisam trabalhar e se expor ao risco.  

Trabalhadores por conta própria (2018-2019)

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Elaboração própria.

Diante do dramático quadro apresentado, fica evidenciado como a precariedade do mercado de trabalho brasileiro vai muito além do contexto da crise provocada pela pandemia do coronavírus, em decorrência da ausência de proteção social para quase metade da população ocupada e do aumento da desproteção de outra parte dela. Como visto esta situação tende a se acentuar com a atual crise, pois o número de pessoas desocupadas irá aumentar substancialmente, já que tanto aqueles que estão em empregos formais, quanto os informais poderão perder seus postos de trabalho e com isso suas principais fontes de renda. 

Nesse sentido, é possível afirmar que a atual crise levará problemas sociais crônicos ao extremo, dentre outras coisas, justamente por conta das políticas de austeridade fiscal que brecaram o investimento público e as possibilidades de crescimento e desenvolvimento econômico. 

Não é viável, entretanto, aceitar a solução passiva de uma intervenção estatal pontual, quase cirúrgica, como sendo capaz de resolver os problemas para que voltemos à “normalidade” anterior ou mesmo retornar ao velho consenso keynesiano. A gravidade da crise e seus desdobramentos só podem ser entendidos em sua totalidade se conseguirmos perceber que o contexto anterior jamais foi de normalidade. O temor do caos social, do desamparo econômico, do desemprego, da falta de médicos e leitos, de mortes em massa não é uma novidade desta crise, mas sim a realidade cotidiana de milhares de pessoas. Neste sentido, a crise é apenas uma gota d’água, talvez a que faltava para percebermos a anormalidade do mundo em que vivíamos. Por isso, não basta nos contrapormos aos discursos daqueles que parecem naturalizar as mortes em nome da economia. Mais do que isso, é necessário trazer ao debate novos horizontes que nos permitam questionar o quanto nós, como sociedade, já naturalizamos tantos dramas sociais. 

NOTAS


[1] Contribuíram diretamente para a redação desta nota Ana Paula Colombi, Gisele Furieri, Otavio Luis Barbosa e Rafael Moraes.
[2] Ver Marcelo Manzano e Pietro Borsari. Acesso em 06/04/2020.
Disponível em:
https://fpabramo.org.br/2020/04/03/reducao-salarial-proposta-pelo-governo-empurrara-pais-para-a-depressao/ e Cecon (2020). Impactos da MP 936/2020 no rendimento dos trabalhadores e na massa salarial.
Disponível em:
http://www.eco.unicamp.br/index.php/noticias/2235-nota-cecon-impactos-da-mp-936-2020-no-rendimento-dos-trabalhadores-e-na-massa-salarial
[3] CESIT. Emprego, trabalho e renda para garantir o direito à vida. Acesso em 08/04/2020.
Disponível em:
http://www.cesit.net.br/wp-content/uploads/2020/04/Versa%CC%83o.final_.pdf
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