Neide Cesar Vargas¹
Lucas de Carvalho Sancho²
A discussão sobre o déficit zero remonta às pressões recentes na cúpula do Governo Lula. Por um lado, o ministro da Fazenda Fernando Haddad, comprometido com o Novo Arcabouço Fiscal (NAF). Por outro lado, o ministro da Casa Civil Rui Costa, coordenador do novo Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), defensor do aumento do déficit em 2024, com manifestação pública inicialmente corroborada pelo presidente. Diante da saraivada de críticas da imprensa brasileira, uma reunião no Palácio do Planalto com economistas do círculo presidencial³ convenceu Lula a manter o compromisso com a meta de déficit zero preestabelecida. Todavia, os dados fiscais disponíveis levam o mercado financeiro e seus prepostos junto à imprensa brasileira a desacreditar esse compromisso. Desde a transição de governo, em fins de 2022, o esforço de Lula tem sido o de garantir espaço para gastos sociais e para investimento. Da costura da Emenda Constitucional 126 à posterior aprovação de um novo teto de gastos, a estratégia tem sido a de dar algum espaço aos gastos, mas sem abandonar a lógica de consolidação fiscal. Uma missão quase impossível, pois as necessidades são imensas e a rigidez de gastos ainda permanece significativa.
A intenção do governo é de fazer uma forte consolidação fiscal baseada no aumento da receita tributária, com déficit primário de 0,5% do PIB em 2023, zero em 2024, superávit primário de 0,5% em 2025 e de 1% em 2026. Ela se assenta numa interpretação que visa a uma redução estrutural da taxa de juros, para gerar crescimento Déficit zero e a armadilha da política fiscal neoliberal econômico puxado principalmente pelo setor privado. Essa é a forma hegemônica de entender a política fiscal na atualidade, que serve aos interesses do mercado financeiro e tem grande parte da imprensa brasileira como sua caixa de ressonância. Dois pilares sustentam tal interpretação. A defesa de que, através da obtenção de superávits primários, haveria aumento da poupança pública e, supostamente, queda da taxa de juros. E a busca de credibilidade na gestão do governo, orientada para manter uma trajetória sustentável para o crescimento da dívida pública e cujo fruto seria induzir o investimento privado e também a redução da taxa de juros.
Uma análise da conjuntura de 2023 já indica a dificuldade da estratégia, profundamente dependente do crescimento das receitas tributárias. Neste ano, a expectativa do NAF era que o déficit primário do governo central fosse de 0,5% do PIB, mas o resultado até outubro de 2023 já alcançou 0,71% do PIB. O crescimento das receitas administradas pela Receita Federal foi pífio e a via fácil de gerar superávit fiscal por meio de receitas extraordinárias, interrompida. Tal via, amplamente utilizada por Bolsonaro, resultou no desmonte do Estado, pois se vincula às concessões, privatizações, leilões e antecipação de dividendos. Ao mesmo tempo, o gasto cresceu, principalmente com o Bolsa Família, a suplementação das despesas de custeio com saúde e educação e o parcelamento do pagamento dos precatórios aprovado no governo Bolsonaro.
O Brasil se inseriu de forma mais orgânica nas reformas e política econômica neoliberais desde o Governo FHC. Mas foi a partir de 1999 que houve uma adesão completa à concepção neoliberal de política econômica, sintetizada no Novo Consenso Macroeconômico (NCM). Segundo ela, a política macroeconômica ótima deve seguir um regime de metas de inflação, visando a controlar o nível de preços através de uma política monetária independente; uma política fiscal subordinada à política monetária, por meio de superávits fiscais e uma trajetória sustentável da dívida pública. Ambas as políticas deveriam ser guiadas por regras legais, reduzindo a discricionariedade do governo e promovendo credibilidade ante os agentes econômicos. O objetivo dessa política é reduzir a atuação do Estado na economia, em tese garantindo segurança e previsibilidade no longo prazo para o aumento do investimento privado, e, portanto, produzir estabilidade macroeconômica. Agregada a uma política cambial flexível, tem sido denominada no Brasil de tripé macroeconômico.
No decorrer de 1999 e 2022, diferentes etapas caracterizaram a condução da política fiscal, da construção legal e institucional de um regime fiscal assentado na sustentabilidade financeira da dívida (1999-2002), à ampliação das metas de superávit primário, seguida, a partir de 2007, por certa flexibilização fiscal (2003-2010). Houve o aprofundamento da flexibilização desse regime fiscal acompanhado da deterioração fiscal (2011-2014) e, por fim, forte reversão neoliberal (2015-2022), intensificada no Governo Bolsonaro.
Um desdobramento dessa concepção de política fiscal foi a introdução de regras fiscais no Brasil, as quais gradualmente encapsularam a política fiscal numa lógica de Direito Privado e de orçamento familiar, restringindo os graus de liberdade orçamentária do governo, exigindo compressão dos gastos não financeiros e continuada ampliação da carga tributária.
A primeira regra fiscal de peso, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), estabelecida em 2000, normatizou os três níveis de governo, bem como os três poderes. Seu impacto foi o enquadramento dos governos no curto prazo visando a um ajuste fiscal continuado. Não houve ruptura, nos governos Lula e Dilma, frente a esse quadro normativo, apenas relativa flexibilização. Com a crise econômica e política de fins de 2014 e a generalização da concessão de desonerações fiscais, o governo federal perdeu espaço político para seguir elevando a carga tributária. Nesse sentido, a Emenda Constitucional nº 95 (EC 95/2016) evidenciou uma mudança qualitativa na gestão orçamentária federal, reorientado para um severo controle de gastos primários, congelados ao longo de vinte anos, corrigidos apenas pela inflação. Essa regra fiscal draconiana visava a ajustar de maneira estrutural e de longo prazo o orçamento público federal, compatibilizando- -o de forma cabal com a noção de sustentabilidade financeira da dívida. Tal medida estreitava a margem de manobra orçamentária federal frente aos ganhos cíclicos de receita, que passariam a ser reservados para o pagamento de juros.
Somada à Regra de Ouro, existente desde a Constituição de 1988, a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Emenda do Teto configuraram uma estrutura jurídica em padrões de ajuste estrito à normatividade neoliberal e em níveis mais restritivos do que o encontrado em outros países do mundo. Ela operava de maneira ainda mais deletéria num contexto de retração econômica, tendo em vista as maiores dificuldades de atender às suas exigências.
As regras foram seguidas desde o governo Temer, colocando o orçamento federal em situação de grave estrangulamento, gerando pressão para a reforma da previdência, em 2019, e a continuidade das privatizações. Além disso, trouxe para a pauta a desvinculação das receitas relativas aos gastos com educação e saúde. Em outras palavras, promoveu e ainda promove um enquadramento do orçamento federal à lógica da sustentabilidade, sem espaços relevantes para políticas públicas no campo social e mesmo econômico.
É sob esta armadura de regras fiscais, tanto herdada de governos anteriores quanto autoimposta pelo próprio Governo Lula, que tem se adotado um ajuste fiscal estrutural independente da alternância de poder.
É importante salientar que, apesar da lógica apresentada, o governo é um lugar de disputa e através da economia política é possível compreender o jogo de interesses por trás da escolha que ele vem fazendo. Primeiramente, Lula foi eleito com pouca margem eleitoral, num país politicamente dividido e polarizado, formando um governo de coalizão. Nesse sentido, um dos seus denominadores comuns tem sido a condução da política econômica em moldes ortodoxos. A política alinhada à sustentabilidade da dívida garante a rentabilidade dos títulos públicos em posse das instituições financeiras. A escolha do governo, portanto, não foi de enfrentamento, seguindo a via típica de conciliação de interesses de classes.
Efetivamente, os impactos sobre a economia de não zerar o déficit em 2024 não têm a dimensão que nos faz crer a imprensa, bem como a visão dominante de macroeconomia. Para a sociedade, não fazê-lo resulta em mais espaço para gastos sociais e promotores do crescimento econômico, extremamente necessários para alcançar equidade e o desenvolvimento econômico. A política fiscal neoliberal instaurada desde 1999 não assegura crescimento e renda e muito menos gastos sociais. Intencionando segui-las, o governo fica refém do investimento privado, num contexto como o atual, de taxa nula de crescimento do investimento (FBKF). Alterar esse quadro se contrapõe aos interesses dos grandes oligopólios e do setor rentista da economia, fortemente representado no Congresso, que não toleram incertezas sobre a capacidade do Estado honrar a dívida pública e com isso garantir a sua renda mínima. Além desse aspecto, a armadilha das regras fiscais gera baixa margem para o governo praticar uma política fiscal voltada para a maioria, aprisionando governo, economia e sociedade aos ditames do mercado financeiro⁴.