Direitos humanos são “um coro universal”, diz professor Herkenhoff

Professor aposentado da Ufes em sua biblioteca
João Baptista Herkenhoff tem 50 livros publicados. Foto: Lidia Neves/Ufes
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– Por Ana Paula Vieira e Lidia Neves –

Declaração dos Direitos Humanos, que completa 70 anos, ampliou direitos em todo o planeta. Para o professor aposentado da Ufes João Baptista Herkenhoff, que é uma referência capixaba no assunto, as lutas por direitos se expressam em muitas vozes. Os 50 livros publicados por Herkenhoff se destacam nos estudos desta área. Diversos projetos de pesquisa e extensão se debruçam sobre o tema

Em 10 de dezembro de 2018, a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 70 anos. Considerada o documento fundamental dos Direitos Humanos, a Declaração foi proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, como um aceno de esperança contra tamanha brutalidade. Apesar de não ter havido outra guerra daquelas proporções desde então, batalhas contra a fome, a violência, a desigualdade e o preconceito continuam diariamente para muitas pessoas. Também persiste a luta por dignidade, justiça e direitos. Como diz o primeiro artigo da Declaração: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”.

No Espírito Santo, um professor da Ufes foi pioneiro dessa luta e referência acadêmica sobre o assunto: João Baptista Herkenhoff. Hoje aposentado, iniciou a docência no Departamento de Direito em 1975, época em que já abordava o tema na disciplina “Fundamentos do Direito”, mesmo antes de o termo “direitos humanos” se consolidar e de o conteúdo da Declaração reverberar pelas Constituições ao redor do mundo.

Sua atuação não se limitava à docência e à pesquisa; ingressou em 1966 como juiz de direito no Tribunal de Justiça em Vila Velha. Algumas de suas decisões ficaram conhecidas nacionalmente, como a libertação de Edna, uma prostituta “condenada por um crime pequeno”, segundo Herkenhoff.

João Herkenhoff e seu primeiro livro, "Gênese dos Direitos Humanos"
As pesquisas em Direitos Humanos se intensificaram a partir do pós-doutorado na França. Foto: Lidia Neves/Ufes

A sentença dizia: “A acusada é multiplicadamente marginalizada: por ser mulher, numa sociedade machista; por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada pelos homens, mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo; por não ter saúde; por estar grávida, santificada pelo feto que tem dentro de si, mulher diante da qual este Juiz deveria se ajoelhar, numa homenagem à maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia. É uma dupla liberdade a que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo tão injusto com forças para lutar, sofrer e sobreviver”.

Emocionado, o professor conta à Revista Universidade que, mais tarde, na realização de uma pesquisa, procurou Edna, que lhe relatou sua promessa de nunca mais voltar à prostituição depois da saída da prisão. “Eu tenho alegria de contar isso, mas para isso tem que ter idealismo. Não só o juiz, todo mundo tem que ter. O idealismo é o sal da Terra, a coisa mais triste e absurda é um juiz que pensa apenas no salário”, comentou Herkenhoff.

Depois de aposentado do Tribunal, o professor passou a se dedicar exclusivamente à Ufes e, a partir daí, conta que a convivência com os ideais dos direitos humanos foi potencializada durante seu pós-doutorado, realizado na Universidade de Rouen, na França, nos anos de 1991 e 1992: “Lá eu tive convivência com grupos dos mais diversos, com árabes, judeus, refugiados políticos, pois a França sempre foi uma terra de abrigo, um país com toda uma tradição de abrigar os perseguidos.

Também convivi com grupos de igrejas – católica, luterana, presbiteriana –, e pessoas espíritas”, ressaltou. De volta ao Brasil, essa pesquisa resultou em três livros: “Gênese dos direitos humanos”, “Direitos humanos, a construção universal de uma utopia” e “Direitos humanos, uma ideia, muitas vozes”. Nessas obras, ele aborda a criação da matéria, com uma gênese bastante anterior à Declaração Universal de 1948. “Ainda que não tivesse esse nome, a luta pelos direitos humanos, por um mundo de convivência entre os povos, por um mundo sem preconceitos, por um mundo em que se abrigasse as pessoas, é uma luta antiga”, explicou.

“Quando o pedinte pede um pão, ele está dizendo: ‘eu sou gente, não posso morrer de fome’”

Nos dois livros seguintes, evoluiu por essa história: “Quando falo nos direitos humanos como a construção universal de uma utopia, não falo de utopia como um sonho impossível, mas como um ideal construído por vários povos”, analisa. No terceiro livro, ele trata das vozes que contribuíram para a consolidação dos direitos humanos: “São vozes das mais diversas raças, vozes dos pobres, não são as vozes dos ricos. É a voz do pedinte na rua. Quando ele pede um pão, ele está dizendo: ‘eu sou gente, eu não posso morrer de fome’. Esse pedido, a mão estendida, são afirmações de direitos humanos”, enfatiza o professor. A produção de Herkenhoff chegou a 50 livros, o que lhe rendeu mais de mil citações acadêmicas.

Presente e futuro

Em relação ao reconhecimento dos direitos, o professor vê pontos positivos e negativos. “Não sou pessimista para dizer que o mundo está perdido, porque há muita gente lutando por um mundo melhor, por justiça, por igualdade, por fraternidade, então há muita busca de direitos humanos, mas há também muita negação deles”. Entre as negações de direitos, ele cita a tortura, que considera “totalmente injustificável”. O artigo 5º da Declaração afirma que “ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”.

“Não pode haver tortura para descobrir crime, para isso tem que haver perícia, busca de testemunhas, ciência, esforço. Eu diria que a tortura é a maior negação de direitos humanos. A polícia precisa se modernizar, os crimes têm que ser descobertos, as pessoas que os cometem têm que ser julgadas, não torturadas”, defende Herkenhoff, que é contra a pena de morte.

O professor também destaca o problema da violência, que, em seu entendimento, tem causas e pode ser prevenido. “Primeiro, é preciso que a pessoa tenha uma família, então tem que haver a proteção da família. É uma obrigação do Estado dar amparo à família, de tal forma que a criança tenha um lar de fato e se desenvolva. Além disso, há várias coisas, como educação, escolas de boa qualidade, professores remunerados dignamente”, aponta. Ele também destaca o papel das igrejas, âmbito em que teve atuação marcante: Herkenhoff foi um dos fundadores e o primeiro presidente da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de Vitória, criada em 1978. “As igrejas podem contribuir para melhorar o mundo, não só a Igreja Católica, mas as igrejas de modo geral”, ressalta.

Sobre as perspectivas futuras, Herkenhoff lembra que a busca pelos direitos humanos é diária. “A luta continua, eu estou aqui lutando. Estou aqui falando, me emocionando com a justiça”, concluiu o professor de 82 anos, que não escondeu a voz embargada e os olhos marejados por várias vezes durante a entrevista. E relembrou, junto à esposa, Therezinha Gonçalves Pinto Herkenhoff, de uma trajetória com percalços sofridos – entre elas uma carta bomba e um telefonema para a escola do filho, ameaçando de sequestrá-lo. “A gente passou por muitos maus momentos por causa dos direitos humanos, porque muitas das ideias dele foram totalmente inovadoras aqui no Espírito Santo nas sentenças”, contou Therezinha. Ela também lembrou da atuação de Herkenhoff na Ufes: “Na época da ditadura, teve uma história célebre de uns meninos que iam a um congresso: o ônibus estava lá e o reitor não queria que fossem. Naquele dia, lá dentro do campus da Ufes, João fez um protesto”. O professor também comentou sobre sua suspeita de que havia pessoas infiltradas na Ufes: “Eu tinha certeza que minhas aulas estavam sendo gravadas”.

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Muitas vozes

Para expandir os direitos humanos, Herkenhoff defende que sejam ensinados para os estudantes de todas as áreas. “Eu acho que no curso de Direito tem que ser obrigatório, mas em todos os cursos deve haver o estudo dos Direitos Humanos. Para o médico, o engenheiro e os profissionais de modo geral, porque eles estão presentes em todas as atividades do ser humano.”

Daí a universalidade da Declaração: “São muitas vozes, dos sofredores, dos que estão nos hospitais; vozes que estão passando fome, vozes dos presos, enfim, muitas vozes que buscam os direitos humanos mesmo sem usar esse termo. Para se lutar pelos direitos humanos não é preciso falar o nome, eles estão acima das línguas. Uma ideia central, que é a iluminadora, a que fecunda e que é expressa por muitas vozes, um coro universal”, explicou Herkenhoff.

No aniversário de 70 anos da Declaração, ele continua integrando esse coro: “Continuo acreditando nessas coisas: no Direito, na justiça, num mundo de maior igualdade, acreditando que nós temos que suprimir a fome – a fome é a maior brutalidade”, afirmou o professor, que ainda escreve artigos para jornais e dá palestras.

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