Brincadeira de lutinha levada a sério

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– Por Camila Fregona

Pesquisa revela como os elementos lúdico-agressivos contribuem para o desenvolvimento da criança

O brincar da criança pode parecer simples, mas representa uma de suas principais formas de expressividade. Por meio de jogos e brincadeiras, ela interage com o meio físico e social, constrói e internaliza conhecimentos e produz cultura. E também cria e afirma o seu modo peculiar de ser e estar no mundo. “Quando brincam, as crianças constroem, por meio de sua cultura de pares, diferentes modos de jogar e de brincar, que nem sempre são compreendidos por um observador externo, mas que conferem a elas coesão e sentido. Por meio do jogo e da brincadeira, a criança cria pontes entre a fantasia e a realidade, interage e se constitui socialmente”, explica a pesquisadora e professora de Educação Física Raquel Firmino Magalhães Barbosa.

Ao ingressar no mestrado, Raquel iniciou um estudo para conhecer o imaginário infantil sob as influências da mídia televisiva na cultura lúdica contemporânea. Naquele momento, a pesquisa revelou que o componente da ludicidade, da luta e da agressividade se faziam presentes na maioria das brincadeiras observadas e registradas com as crianças. Elas surgiam de forma espontânea e intensamente associada aos desenhos animados. No doutorado, concluído na Ufes em 2018, a professora aprofundou esses estudos e construiu a tese sobre o que definiu como hibridismo brincante.

A criança, ao brincar, combina fantasias, linguagens e comportamentos. Independentemente do tipo de brincadeira, uma característica comum é a ligação entre o mundo real e o da fantasia. Observando esses aspectos, a pesquisadora considerou a condição de hibridismo da brincadeira. Ela conta que “O hibridismo brincante é compreendido por entrecruzamentos de ações e de aspectos simbólicos que podem surgir da junção de comportamentos distintos durante o jogo. Neste estudo, o que ficou evidenciado nas brincadeiras infantis foi a articulação entre três rubricas: da ludicidade, da agressividade e do nonsense”.

Mundo real e fantasia se unem por meio da brincadeira. Foto: Lidia Neves/Ufes

As três características fundamentaram o conceito do hibridismo brincante, que compreende o homo ludens como o ser da ludicidade e da fantasia, o homo violens como o ser da agressividade e do poder e o homo demens como o ser do nonsense, da desrazão e da  incoerência.

Segundo a autora, entre as possibilidades do hibridismo brincante, destacam-se as brincadeiras lúdico-agressivas. “Elas se caracterizam por alguma disputa ou confronto de natureza simbólica e corporal, evidenciando a prevalência de elementos lúdicos juntamente com a busca de excitação, de poder, de agressividade, de combate, de nonsense e de transformação. Esse tipo de brincadeira mostrou que pode ser uma maneira de as crianças se expressarem ludicamente e ressignificarem a cultura de que fazem parte”, explica.

Brincadeiras coibidas

As brincadeiras de “lutinha” ou a imaginação de histórias com super-heróis, monstros, armas, batalhas e textos envolventes podem ocorrer na escola, sobretudo na educação infantil, etapa da educação básica na qual a pesquisa foi realizada. De acordo com a professora, isso ocorre pelo fato de as crianças estarem descobrindo o mundo, a si mesmas e quem está à sua volta. Anunciam, em seus gestos e relações, uma linguagem brincante repleta de desejos e de imaginações transgressoras.

No entanto, Raquel ressalta que, na maioria das vezes, as brincadeiras lúdico-agressivas são coibidas no contexto escolar, sob o argumento de que geram violência e indisciplina. Para ir de encontro a essa ideia, fundamentada na visão do adulto, as crianças usam táticas com o objetivo de manipular e alterar a disciplina imposta. “Ao produzir suas brincadeiras lúdico-agressivas, as crianças transformam aquilo que é danoso e destrutivo em algo bom e prazeroso, porque nesse momento elas estão usufruindo da vida, apresentam um descompromisso com o resultado. É aí que está a graça do jogo”, aponta.

Para Raquel Barbosa, há crianças, infâncias e brincadeiras na escola que não devem ser marginalizadas. Desse modo, as brincadeiras lúdico-agressivas poderiam ser vistas e compreendidas como uma vontade de brincar de forma mais corporal e enérgica, buscando desmistificar o que se encontra na superfície desses jogos. “É necessário reforçar a necessidade de (re) construir um olhar sensível, que se caracterize por ser curioso, isso é, um olhar que busca ver além do que o jogo pode aparentar, abrindo espaços para novas descobertas e para o que ele pode revelar”.

Brincadeiras articulam ludicidade, agressividade e nonsense, aponta Raquel Barbosa em seu mestrado. Foto: Acervo pessoal

Pesquisa de campo

Para compreender esse fenômeno, Raquel estudou sobre o hibridismo brincante ao longo de quatro anos, entre 2014 e 2018. Em 2015, realizou a pesquisa de campo em um Centro Municipal de Educação Infantil de Vitória, no Espírito Santo, com 60 crianças de 4 a 5 anos e com uma equipe composta por professores e por funcionários administrativos. “O estudo teve uma abordagem etnográfica. Devido a isso, foi necessária que eu, como pesquisadora, estabelecesse uma interação com os sujeitos pesquisados, que envolveu a imersão, a convivência, a observação, a produção de dados brincantes e de imagens que nasciam dessas relações no cotidiano com as crianças”, fundamenta.

De acordo com a autora, o objetivo foi apresentar outra lógica de compreender as interações brincantes entre as crianças, construindo a possibilidade de a brincadeira se desenvolver em um contexto turbulento, desde que houvesse ludicidade. Tal olhar diferenciado mostrou a importância dessas brincadeiras no extravasamento das emoções, na apropriação e na (re)significação da realidade e na produção de sentidos nas interações, proporcionando uma leitura mais sensível para as manifestações da cultura infantil.

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Aprendizado

Após a análise de cerca de 1.500 dados coletados, a pesquisa mostrou que o corpo, o movimento, as interações sociais e as (re)invenções infantis são elementos centrais nas brincadeiras lúdico-agressivas. O estudo também evidenciou que o recreio é o ambiente onde as crianças (re) constroem brincadeiras relacionadas ao que elas vivenciam em seu cotidiano, incluindo o conteúdo que veem na tevê. Cinco variações de brincadeiras lúdico-agressivas foram identificadas (ver quadro).

Para Raquel, esses tipos de brincadeiras representam um antídoto para a violência. “Brincar com comportamentos agressivos é uma forma de evitar essa atitude, como pensa o estudioso da mídia infantil Gerard Jones.” O jogo e a brincadeira que incluem a agressividade podem ser utilizados pela equipe da educação infantil como “objeto de aprendizado”, apropriando-se do capital lúdico infantil e da produção cultural da criança e valorizando-os. Contudo, Raquel Barbosa alerta que esse processo não deve desconsiderar o cotidiano da escola, o papel do professor na mediação pedagógica e o equilíbrio entre trabalho e jogo, uma vez que ambos são igualmente importantes para a vida. “Diferente de pensar o jogo como meio, com seu ‘didatismo’, pela intenção exclusiva do adulto em estimular certas aprendizagens nas crianças, as brincadeiras lúdico-agressivas poderiam se tornar um grande potencializador do trabalho docente nos espaços-tempos da Educação Física na educação infantil”, exemplifica.

Com base nas estratégias de ensino de conhecer as culturas infantis, de proporcionar espaço para a construção coletiva da aula com as crianças e de mediação de práticas articuladas às experiências desses alunos, pode ser possível oportunizar ambientes inovadores, criativos e significativos de socialização e de protagonismo para as crianças na educação infantil.

Vários tipos de brincadeiras abordam a agressividade. Foto: Lidia Neves/Ufes

Variações de brincadeiras lúdico-agressivas

Disputas agonísticas: caracterizadas pela competitividade lúdica, são identificadas nas corridas, nos piques e na brincadeira de polícia e ladrão.

Confrontos de luta: há constante superação e demonstração de força e hedonismo; são constatadas em brincadeiras com socos, chutes, empurrões e puxões, em brincadeiras de agarrar e de medir forças, e em imitações de armas e de elementos da capoeira.

Brincadeiras com objetos: uso de objetos na brincadeira ou na composição do cenário brincante, tal como itens de plástico, casinha, muro, folhas e galhos de árvores.

Desenhos animados: simulação ou apropriação de personagens e de enredos, como representações de heróis e de vilões de filmes, de personagens de desenho animado e de monstros.

Brincadeiras historiadas: teatro que dissimula ou reinventa as realidades vivenciadas, como observado na presença de temas violentos, na imitação de animais e nas histórias de mãe e filha.

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