Subgrupo de Empregos e Salários¹
A cada dia que passa, as consequências econômicas resultantes da interrupção dos fluxos de renda em virtude do isolamento social reforçam as contradições da sociedade brasileira, agravando os dramas sociais[2]. Entre estes dramas estão as desigualdades estruturais entre homens e mulheres e entre brancos e negros, no mercado de trabalho brasileiro, como reflexo de sua constituição sobre bases escravista e patriarcal. Na medida em que a crise atual atinge o mercado de trabalho, é frente a esta realidade estrutural que ela o faz, atingindo os diversos grupos de trabalhadores e trabalhadoras de formas e intensidades diferentes. Apresentar esta face desigual do mercado de trabalho brasileiro e apontar como ela se relaciona com a crise atual, voltando o olhar para aqueles mais vulneráveis, seja pela natureza de sua ocupação, seja pela precariedade de sua situação econômica, são os objetivos deste texto.
Como afirma Achille Mbembe[3], é da lógica do capitalismo operar segundo um cálculo que seleciona aqueles que podem ser descartados, tendo em vista que o próprio sistema “é baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver e de morrer”. O neoliberalismo, que o autor prefere qualificar de “necroliberalismo”, acirra ainda mais esta lógica, na qual “alguns valem mais do que outros”. A questão é que dentre as vidas consideradas de menor valor sempre prevalecem as mesmas raças, as mesmas classes sociais e os mesmos gêneros[4]. Tendo em vista que a crise atual nos encontra como somos, suas consequências refletem e aprofundam o processo histórico de naturalização do papel subordinado da mulher e dos negros em uma sociedade injusta e desigual.
As assimetrias do mercado de trabalho brasileiro se evidenciam nos rendimentos médios, nas taxas de desocupação e de subutilização da força de trabalho, bem como no grau de formalização das relações trabalhistas. Por qualquer indicador que se investigue, mulheres e negros estão mais sujeitos à condição de precariedade. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), no último trimestre de 2019, a taxa de desemprego foi de 11%. As dificuldades em alcançar uma nova ocupação, no entanto, não se distribuem simetricamente entre homens e mulheres, brancos e negros. Conforme se vê na tabela abaixo, são as mulheres negras as mais atingidas pelo desemprego (15,6%). Este número é mais que o dobro da taxa de homens brancos que procuraram uma ocupação no mesmo período e não encontraram (7,4%).
Tabela 1: Taxa de desocupação e de subutilização (2019).
* Categorias preta e parda da variável de cor/raça do IBGE;
** Desocupação, subocupação e força de trabalho potencial;
Fonte: PNAD Contínua. Elaboração com base nos dados coletados pelo CESIT/Unicamp.
Com base nos números da subutilização da força de trabalho, as mulheres negras aparecem, mais uma vez, como o grupo mais vulnerável (33,2%, no último trimestre de 2019). Isso significa que o contingente de desocupados, subocupados e de força de trabalho potencial[5] é maior, em termos proporcionais, entre as mulheres negras. Considerando os dados do último trimestre de 2019 com recorte de sexo, são cerca de 6,2 milhões de mulheres desocupadas, 3,6 subocupadas e 4,5 milhões de trabalhadoras na força de trabalho potencial. Em todos estes casos, o contingente de mulheres ultrapassa, em termos absolutos, o de homens. No corte por raça/cor, trata-se de 7,5 milhões de negros desocupados, 4,5 milhões subocupados e 5,5 milhões na força de trabalho potencial. Em todos os casos, o contingente de negros ultrapassa, em termos absolutos, o de brancos.
Outro indicador que evidencia a desigualdade no mercado de trabalho brasileiro é a informalidade. Embora o alto índice de trabalho informal seja um problema histórico do mercado de trabalho brasileiro, atingindo tanto homens e mulheres, como negros e brancos, ele prepondera entre a população negra.
As trabalhadoras domésticas
O impacto é significativo sobre as mulheres negras, sobretudo em virtude do trabalho doméstico, já que elas representam cerca de 60% do total de trabalhadores nesta ocupação, conforme dados para o ano de 2019. Ao mesmo tempo, mais de 75% das mulheres negras que realizam trabalhos domésticos remunerados não possuem carteira de trabalho assinada, ou seja, são trabalhadoras que muitas vezes possuem jornadas de trabalho longas com baixa remuneração (cerca de R$ 800,00 em média, conforme dados de 2019). Levando em consideração apenas o corte por sexo, as domésticas são 90% dos trabalhadores nessa ocupação, sendo que mais de 70% encontra-se na informalidade, como mostra o gráfico abaixo.
Gráfico 1: Percentual de trabalhadoras domésticas e nível de informalidade sobre o total da ocupação (2019)
Fonte: PNAD Contínua. Elaboração própria.
O peso dos trabalhadores domésticos no mercado de trabalho no Brasil fica claro quando se percebe que no último trimestre de 2019, 6,6 milhões de trabalhadores estavam ocupados em alguma forma de trabalho doméstico remunerado, destes a maior parte era mulher e negra. Estes números, que levam o Brasil a ter a maior população de trabalhadores domésticos do mundo[6], refletem uma cisão social reproduzida a partir da escravidão. Em sociedades escravistas, toda forma de trabalho físico, inclusive o doméstico, é tida como imprópria para as elites brancas. Por esta razão, tornou-se comum a existência de batalhões de escravos domésticos primeiro nas Casas Grandes e, depois, nos sobrados urbanos. Com o fim da escravidão, esta mesma lógica foi sustentada, tendo como alicerce um enorme contingente de trabalhadores desocupados, o que permitia a manutenção das domésticas a um baixo custo. Os salários baixíssimos e condições de trabalho em extrema precariedade são os elementos que permitem que até hoje a contratação de empregadas fixas ou diaristas seja tão comum no Brasil, mesmo entre cidadãos das classes médias.
Por outro lado, para um enorme contingente de trabalhadores, com pouca ou nenhuma escolaridade e difícil acesso a outras formas de ocupação, o trabalho doméstico aparece como a única possibilidade de remuneração. Este elemento fica claro no estudo realizado pelos economistas Virginia Rolla Donosco e Carlos Henrique Horn[7] que mostra como a desestruturação do nível de atividade econômica e do mercado de trabalho após a recessão iniciada em 2015 converge com um aumento do número de empregadas domésticas, sobretudo aquelas que não possuem carteira assinada. Os autores apontam que esse é um movimento que vai na via contrária ao que estava acontecendo no período precedente com acentuada redução do total de empregadas domésticas, demonstrando que o trabalho doméstico é uma alternativa concreta e em alguns casos única em tempos de crise.
O exemplo das trabalhadoras domésticas evidencia como os problemas conjunturais vão se sobrepondo a uma estrutura historicamente assimétrica, reforçando essas desigualdades. É por isso que a precariedade estrutural da posição destas trabalhadoras no mercado de trabalho, que já vinha se agravando desde 2015, tende a ser aprofundada no atual contexto, seja pela perda de renda no caso daquelas que perderam suas ocupações, seja pela exposição à doença no caso das que seguem trabalhando[8].
Outro aspecto do trabalho doméstico é percebido nos casos em que as tarefas da manutenção da casa são realizadas pela própria família. Nestes casos, comuns dentre as famílias mais pobres, as horas de trabalho dedicadas, essencialmente pelas mulheres, ao preparo da alimentação, cuidados com a casa, cuidado das crianças e idosos da família não são remuneradas. Em diversos casos essas longas jornadas de trabalho reprodutivo somam-se às horas de trabalho remunerado levando a que a sobrecarga de trabalho entre as mulheres apareça como uma das principais dificuldades da manutenção das mulheres no mercado de trabalho. Não é possível entender esse fenômeno sem remeter à divisão sexual de trabalho, um conceito que expressa essa diferenciação entre o que é considerado socialmente como trabalho “de homem” e trabalho “de mulher”. O atual contexto de isolamento tem escancarado este problema já que, ao inviabilizar a contratação de trabalhadores domésticos, trouxe uma sobrecarga ainda maior às mulheres que antes podiam delegar essas tarefas a outras.
A interface entre as desigualdades estruturais e a crise do coronavírus também se expressa nos chamados trabalhadores essenciais[9], sobretudo nas ocupações atreladas ao “cuidado”. É certo que todos os trabalhadores essenciais estão mais expostos ao vírus, pois acabam colocando em risco sua saúde, em maior ou menor medida, por lidarem diretamente com muitas pessoas todos os dias. No caso dos profissionais de saúde, essa exposição é ainda maior. A morte de 110[10] enfermeiros (as) até 21 de maio mostra o lado mais chocante desta exposição. Este número está muito acima do número de profissionais de saúde mortos em outros países com mais óbitos que o Brasil[11].
As profissionais do setor de saúde
Os dados mostram que a maioria desses profissionais mortos são mulheres[12] (não há menção sobre a raça/cor) em conformidade com o perfil desta categoria. Os dados da PNAD Contínua de 2019 mostram que as mulheres são 86% das técnicas de enfermagem e 83% das enfermeiras com nível superior. Os brancos são maioria entre os enfermeiros com nível superior, enquanto entre os profissionais de enfermagem de nível técnico, o predomínio é de negros, com 57,2% frente a 42,8% de brancos. Entre os médicos é substantivo o predomínio dos brancos (81,5%), sendo a divisão por sexo mais equilibrada (52,2% de homens e 47,8% de mulheres). Em geral os profissionais da área de saúde apresentam alta taxa de formalização nas relações de trabalho. Em relação à remuneração, se destaca a renda média dos médicos que no final de 2019 chegava a R$ 15.726,80, enquanto a de enfermeiros correspondia a R$ 4.605,20 e a dos técnicos em enfermagem à R$ 2.109,70. A renda média da população ocupada no mesmo período era de R$ 2.340,00.
Estes números refletem as características estruturais da sociedade brasileira cuja natureza mostra como as desigualdades de classe, gênero e raça estão profundamente entrelaçadas. É possível perceber o predomínio de mulheres em atividades ligadas ao cuidado. Essa atribuição de papéis diferenciados coloca as mulheres sempre na condição inferior, a exemplo do trabalho vinculado às atividades de cuidado ao qual é atribuído menor valor social e monetário. No exercício da medicina, mais bem remunerado, prevalece homens brancos, enquanto entre os técnicos de enfermagem, cuja remuneração média corresponde a 13% da renda dos médicos, prevalecem mulheres negras.
Para além das desigualdades estruturais, o cenário da pandemia trouxe uma piora da condição de trabalho destes profissionais. É o caso de enfermeiras que relatam que diante da escassez de equipamentos de proteção, usam fraldas durante o trabalho de modo a não precisarem se desparamentar dos equipamentos de segurança cada vez que necessitam ir ao banheiro. Os relatos de jornadas extenuantes, de picos de estresse e de contato direto com a morte ilustram as páginas de jornais desde o início do agravamento da crise sanitária no Brasil[13].
Os entregadores à domicílio
Os profissionais da saúde, pela natureza da profissão, são os mais vulneráveis ao vírus, mas não são os únicos. O caso dos entregadores à domicílio tem tido destaque pelo aumento do uso deste serviço em meio a pandemia. Nesta categoria, em que prevalecem homens com baixa remuneração e sem direitos trabalhistas, as condições de trabalho têm piorado nos últimos meses. Os trabalhadores relatam que apesar de estarem trabalhando mais durante a pandemia, tiveram uma redução significativa do salário e não receberam equipamentos de proteção das empresas[14].
Não se sabe quantos trabalhadores estão nessa condição, seja como motofretistas, bike boys e motoristas ligados ao transporte de pessoas. Estudos indicam que quatro milhões de pessoas trabalham para essas plataformas no Brasil[15]. O crescimento dos serviços providos por aplicativos de celular de transporte de pessoas por carro particular e de entregas por meio de motocicletas ajuda a explicar a forte elevação do emprego informal e das ocupações por conta própria nos últimos anos. Por meio da PNAD Contínua é possível visualizar o perfil dos trabalhadores ocupados como condutores de automóveis e condutores de motocicleta, dentre os quais certamente se encontram grande parte dos profissionais aqui mencionados. No caso dos condutores de motocicleta, 97,2% são homens e 67,9% negros. O percentual de informais é muito alto (77,6%). Entre os condutores de automóveis, a informalidade atinge 71,9% dos ocupados.
Como o perfil dos trabalhadores da saúde e dos transportes demonstra, a precarização do trabalho é um fenômeno que atinge a homens e mulheres em diferentes medidas a depender do tipo da ocupação. Em todos os casos os negros e negras são os profissionais mais expostos, com ocupações mais precárias e de menor rendimento. Tal fenômeno é consequência da construção desigual do mercado de trabalho brasileiro. Neste caso, se percebe a reprodução ao longo do tempo tanto dos padrões de comportamento de uma sociedade patriarcal, quanto dos reflexos dos mais de 300 anos de escravidão.
Diante do que foi apresentado, fica claro como as históricas desigualdades da sociedade brasileira interferem e são intensificadas na crise atual. O mercado de trabalho no Brasil, reproduzindo a lógica patriarcal e racista, opera um sistema de exclusão e invisibilização de alguns trabalhadores que os efeitos da pandemia escancaram. Outra vez, como em todos os momentos de crise aguda, o cerceamento do direito à vida de mulheres e negros, grupos historicamente marginalizados, só se aprofunda.
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