Ensaio sobre a teoria econômica, o Estado e a política fiscal: uma breve síntese

Fabrício Augusto de Oliveira¹
Francisco Luiz C. Lopreato²

Resumo 

Este trabalho analisa como o Estado, a política fiscal e os impostos têm sido tratados na teoria econômica desde Adam  Smith até os dias atuais. Para tanto, percorre as várias etapas de desenvolvimento do pensamento econômico, à luz da  evolução e das transformações conhecidas pelo capitalismo, e como as ideias a respeito dessas questões foram se  alternando, ora condenando a atuação do Estado no campo econômico, ora defendendo-a, em função das crises e da  necessidade de reprodução do sistema. Sua conclusão é a de que, passado um longo período em tempos mais recentes,  em que predominaram as ideias neoliberais de ser a mesma altamente disfuncional para o sistema, a Grande Recessão  provocada pela crise de 2008, seguida das crises da dívida soberana europeia e do novo coronavírus, levou à reinclusão  tanto do Estado como da política fiscal na caixa de ferramentas consideradas necessárias para sua sobrevivência. 

Palavras-chave: Estado, Política fiscal, Teoria macroeconômica. 

Abstract 

This paper analyzes how the State, fiscal policy and taxes have been treated in economic theory since Adam Smith to  the present day. To this end, it goes through the various stages of the development of economic thought, in the light of  the evolution and transformations known by capitalism, and as the ideas about these issues were alternating,  condemning the State’s action in the economic field, or defending it, due to the crises and the need to reproduce the  system. Its conclusion is that, after a long period in more recent times, in which neoliberal ideas of being the same  highly dysfunctional for the system predominated, the Great Recession caused by the 2008 crisis, followed by the crises  of European sovereign debt and the new coronavirus, led to the reinclusion of both the State and fiscal policy in the  toolbox deemed necessary for its survival. 

Keywords: State, Fiscal policy, Macroeconomic theory. 
Códigos JEL: E, E6, H. 


NOTAS

[1] Professor da Escola do Legislativo do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: fabricioaugusto@hotmail.com
[2] Professor livre-docente, aposentado, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas  (Unicamp), Campinas, SP, Brasil. E-mail: lopreato@unicamp.br.
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Entre a Potência e a Existência: notas sobre representações cinematográficas da condição humana contemporânea


Yago Ramalho Silva[2]

No cerne das mudanças sociais, políticas e culturais advindas com o fim da era de ouro, visualiza-se uma transformação de forma gradual e de ordem estrutural, que se caracteriza por um processo de subjetivação mercadológica (DARDOT; LAVAL, 2016) e, mais recentemente, individualização autorresponsável e positiva (HAN, 2017), conceitos que serão esclarecidos posteriormente. De acordo com Hobsbawm (1995), o fim da era de ouro marca um período em que as pessoas perderam seus referenciais, mesmo com o surgimento de novos entendimentos e posturas quanto a antigos problemas. Com menor relevância na obra do autor é que aparece o cenário cultural, especialmente no âmbito da cultura popular, e como essas transformações refletiam e ainda refletem a psicologia própria do indivíduo “pós-era de ouro”. É a esta reflexão que este pequeno texto se dedica.

Nesse sentido, objetiva-se, no presente texto, discorrer sobre algumas instâncias dentro do cinema em que a presença de um personagem fragmentado e alienado lança luz sobre dilemas antigos; por extensão, a mesma discussão será carregada no horizonte temporal até o presente, com uma análise das obras e seus respectivos contextos. Em particular, os filmes “Taxi Driver” (1976), “Parasite” (2019) e “Joker” (2019) servem como norteadores centrais da discussão, com um plano de fundo teórico que traz argumentos apresentados por Byung Chul-Han em “Sociedade do Cansaço”. Além disso, convém salientar que o meio não é a mensagem, e que o mesmo exercício poderia ser feito com outras representações cinematográficas.

Desde há muito que a arte tem representado ânsias sociais, êxtases estéticos e dilemas pessoais. Dos registros do cotidiano de nossos ancestrais caçadores-coletores em Lascaux[3] às interpretações contemporâneas dos trabalhos de Schubert[4], pode-se localizar padrões, formas prontas, temas, paródias etc. em um profícuo diálogo entre autores, apreciadores, suas histórias e contextos. Nessa dinâmica, a tradição literária do século XIX é de interesse para o argumento que se segue, o que exige uma breve nota. O comentário social e político, embora já presente em obras ficcionais pretéritas, torna-se um tropo nesse período, graças ao trabalho de autores como Dickens[5], sempre a discutir a pobreza e a miséria do povo inglês de então. Com o tempo e o advento de tendências modernistas, simbolistas, dentre outras, tais interações temáticas tornam-se progressivamente mais complexas, sutis e psicológicas. Por exemplo, têm-se o terreno que daria origem às narrativas kafkaescas, a personagens apáticos como Bartleby, ou aos insights espirituais de Dostoiévski. Esse trato continuaria até a contemporaneidade, especialmente na literatura pós-moderna de cunho experimental.

            Aproximando essa tendência para a segunda metade do século XX e início do século XXI, é possível observar a já consagrada (e simples) tese de Ricardo Piglia[6] de que, conforme uma forma deixa de ser a grande contadora de histórias de seu tempo, abre-se um espaço para a inovação e o experimento. No caso do romance de ficção, é fácil identificar o cinema e a televisão como os grandes substitutos na imaginação popular. No entanto, o que acontece quando esse mesmo cinema passa a experimentar com sua própria forma? Começando com a Nouvelle Vague francesa nos anos 60, observa-se uma gradual preferência por metatextualidade, monólogos interiores, cortes abruptos, etc. É o surgimento de uma forma mais autoral e pessoal de se produzir filmes. Esse detalhe é essencial, pois permite inferir algumas considerações mais subjetivas sobre o período.

            É neste ponto no tempo que se insere uma das obras seminais de Martin Scorsese, “Taxi Driver”. Lançado em 1976, o filme neo-noir narra uma das mais incisivas representações de decadência espiritual e moral da sociedade após o fim da era de ouro do capitalismo. Pretende-se descrever essa condição e argumentar como ela reverbera na contemporaneidade, usando para tanto dois outros filmes: o sul-coreano Parasite e o americano Joker, ambos lançados em 2019, que também discutem, à sua maneira, temas próximos. No entanto, antes de adentrar nesse argumento e na descrição dessas três obras, vale uma breve nota sobre o que foi a Era de Ouro e como se deu seu declínio.

A Era de Ouro pode ser descrita como um período de intenso crescimento econômico e grandes transformações estruturais. As mudanças eram profundas em todos os sentidos: políticos, econômicos, sociais e culturais. Como bem coloca Hobsbawm (1995), têm-se de um lado a expansão da escolaridade, especialmente entre as mulheres, a morte do campesinato, uma explosão da produtividade; por outro lado, um maior senso de individualidade, novos padrões de comportamento, do primeiro disco de rock à politização de toda preocupação. Num certo sentido, o auge do sonho americano se expressando como o auge do individualismo:

A revolução cultural de fins de século XX pode assim ser mais bem entendida como o triunfo do indivíduo sobre a sociedade, ou melhor, o rompimento dos fios que antes ligavam os seres humanos em texturas sociais. Pois essas texturas consistiam não apenas nas relações de fato entre seres humanos e suas formas de organização, mas também nas relações de fato entre seres humanos e os padrões esperados de comportamento das pessoas umas com as outras. (HOBSBAWM, 1995, p. 328).

No entanto, o que não se esperava é que tudo isso fosse uma verdadeira bomba relógio. Já em 1973 o sistema começava a apresentar sinais de esgotamento, e velhos problemas passaram a fazer parte do cotidiano mais uma vez. Desemprego em massa (especialmente pela substituição do trabalho humano por máquinas), a desigualdade, a incerteza quanto ao futuro, entre tantos outros problemas, povoavam o imaginário popular – memórias ainda recentes da Grande Depressão sinalizavam que tudo aquilo talvez ainda pudesse ocorrer uma vez mais. Da ineficiência do Estado em suprimir os problemas até o surgimento de novas formas independentes e especializadas de fazer política, é inegável que todos esses processos reverberam em preocupações ainda atuais. 

Mas quem seriam essas pessoas sem referenciais, já tão individualizadas e, paradoxalmente, à mercê da própria impessoalidade? Scorsese talvez tenha respondido isso em 1976, com seu personagem Travis Bickle. Veterano da guerra do vietnã, desiludido, “God’s lonely man” e uma “walking contradiction”, o protagonista de Taxi Driver é um sujeito esquisito, não reage adequadamente ao seu entorno (seria Estresse Pós-Traumático (TEPT) ou alguma condição pretérita?), parece projetar sua frustração em ódio a grupos minoritários. Na verdade, mais que isso, ele é tão despido dos grandes dotes intelectuais de seus antecessores espirituais, os existencialistas europeus, que mal parece conseguir expressar o que sente de forma coesa, lógica e direta. Se Chul-Han (2017) fala de uma sociedade movida pelo slogan positivo yes, we can, Bickle preconiza o Anytime, Anywhere, uma alienação que impele à ação em qualquer contexto, ao trabalho sem direção.

Durante boa parte do filme só há Bickle e sua própria solidão: quando lhe dirigem a palavra, ele cala; quando ele fala, não há diálogo. Monólogos sem muito sentido são repetidos várias vezes (parecidos com as tentativas frustradas de Fabiano em Vidas Secas[7]), enquanto o protagonista se prepara, planeja e avança ideias ambíguas e certamente violentas. Nunca fica muito claro se o que o move é sua saúde mental deteriorada (note que ele mal consegue expressar que está deprimido, resumindo isso a ter “algumas ideias muito ruins na cabeça”), a solidão em si, a pobreza, ou o estado geral da Nova York na década de 70. Fato é que, quase em tom de homenagem, outro filme seria lançado em 2019 com premissa bem derivativa, embora menos ambígua: trata-se de Joker, do diretor Todd Phillips (e as semelhanças não são novidade para ninguém).

Situado na década de 80, ou seja, um pouco depois do período até então discutido, Joker apresenta os mesmos temas, de forma mais bruta e direta. Temos um homem e seu sentimento de inadequação, prestes a explodir em uma revolta interior e a cometer atos de extrema brutalidade. Mais interessante que as similaridades é notar que, a despeito de tratar de velhos problemas, o telespectador contemporâneo consegue compreender o personagem e sua dor, é capaz de traçar possíveis motivações para suas ações, e não raro até mesmo simpatizar. Arthur Fleck só queria provar para si mesmo que existia de fato, e encontra essa prova num cálculo mental que racionaliza o assassinato de pessoas vistas por ele como vis, por mais niilista e inconsequente que esses atos pareçam para ele mesmo: perdidas as amarras, já não se tem nada a perder. Se lembrarmos de Raskólnikov[8] a justificar seus planos de assassinato em cima de grandes figuras históricas, é possível fazer uma analogia em que essas figuras, na vida de Arthur, são aquelas que sempre o desprezaram por sua condição.

Do medo anterior ao lançamento de que talvez o personagem pudesse inspirar atentados (dizia-se até mesmo que se tratava de um filme irresponsável) a símbolo de revolta no Chile, o essencial é notar que toda essa problemática ainda persiste no tempo. E neste mesmo ano de 2019, outro filme viria a trabalhar essa problemática de forma quase invertida: trata-se de Parasita, do sul-coreano Bong Joon-Ho.

Aqui, a contradição é explorar esses meandros psicológicos numa sociedade que por todos os índices e indicadores é vista como avançada, desenvolvida e rica. Na obra, a família Kim, pobre e que vive num apartamento subterrâneo sujeito a todo tipo de inundação e sujeira, ascende socialmente enquanto engana aqueles que estão socialmente acima (a família Park, rica) e aqueles que estão em pé de igualdade com eles, como a governanta. Se o tom inicial é bem humorado, quase caricato, típico de k-dramas, o roteiro cria uma ruptura inesperada em sua segunda metade, quando da revelação de um homem que por muitos anos viveu em um bunker da mansão dos Park. 

Em entrevista, o diretor Bong Joon-Ho afirma que a universalidade desse sentimento especificamente coreano, retratado no filme, advém de um elemento essencial: basicamente, todos nós vivemos no mesmo país, que é o capitalismo. Parte da chave desse artigo se encontra nessa ideia. No conflito entre as famílias Kim e Park, não há um mundo simples, de mocinhos e bandidos. Na verdade, um dos grandes êxitos da obra é apresentar com suficiente nuance e ambiguidade como cada personagem está presa a seus próprios vieses de classe. O “fantasma” do bunker, que cultua a figura do rico meramente por poder subsistir abaixo dele, é simbólico, porque no final esse parece ser o destino de cada membro da família Kim, quando não a morte. Num jogo de mímica, em que o pobre se passa por rico, há sempre a imagem de uma escada e o ângulo certo para mostrar que tudo aquilo era ilusório tanto quanto transitório (como nos diversos posters de divulgação, conforme podemos ver a seguir[9]). O “cheiro de pobre” que tão sutilmente separava as duas famílias tem rosto, dimensão e história, mas termina como um mero “fantasma” a vagar com o peso de seu próprio passado. A revolta em Parasita, que pode ser melhor vista no destino do pai Ki-Taek, não tem a redenção e o surto como nos outros filmes tratados aqui, mas apresenta aquela mesma individualização, uma ruptura solitária e indiferente que é enfim silenciada.


 Arte por Jisu Choi                                              //                               Arte por Andrew Bannister

Essa caracterização um tanto esquemática de como as personagens nos três filmes se enxergam e se comportam chama a atenção para dois aspectos centrais: i) o indivíduo pós-era de ouro é essencialmente o mesmo da contemporaneidade; ii) essa paisagem psicológica e moral não necessariamente precisa estar relacionada com um contexto cultural e geográfico específico

Para melhor desenvolver esses aspectos, é preciso explorar a noção de homem que prevalece na contemporaneidade. Com o advento do século XX, Dardot & Laval (2016) mostram como uma nova concepção de mercado passou a existir, e com isso, uma nova concepção de indivíduo. Das premissas tradicionais do liberalismo e do homo oeconomicus maximizador, surge a figura do homem-empresa, em que impera um modo de governo de si que é empreendedor, empresarial.  Mais do que um personagem que age no plano econômico, é um estágio novo, um plano em que todas as ações humanas estão sujeitas a uma lógica mercadológica (daí a noção supracitada de uma ‘’subjetivação mercadológica’’: a noção de que a própria identidade e os vários cenários da vida podem ser encarados por uma ótica de mercado).

Han (2017) aponta para uma interpretação semelhante. Segundo ele, vivemos em uma sociedade do desempenho que se caracteriza por excessos de positividade: os indivíduos, empresários de si mesmos, agem de acordo com iniciativas e planos de desempenho e produção. Um sujeito que explora a si mesmo, mais especificamente, e crê ser livre. Com as palavras do próprio:

O animal laborans pós-moderno não abandona sua individualidade ou seu ego para entregar-se pelo trabalho a um processo de vida anônimo da espécie. A sociedade laboral individualizou-se numa sociedade de desempenho e numa sociedade ativa. O animal laborans pós-moderno é provido do ego ao ponto de quase dilacerar-se. Ele pode ser tudo, menos passivo. (HAN, 2017, p. 43)

Ao que ele complementa logo após: “A desnarrativização…geral do mundo reforça o sentimento de transitoriedade” (Ibid., p.44).
Ao nível de uma caracterização psicológica e social desses fenômenos, a descrição feita acerca das personagens dos três filmes se encaixa bem nesses parâmetros. Como pode ser observado, nada em Dardot & Laval ou em Han parece sugerir um contexto ou uma temporalidade muito delimitada: é uma sociedade e é um homem só, o pós-moderno, contemporâneo e que vive no país chamado capitalismo. Visão semelhante é partilhada pelo diretor de Parasita, Bong Joon-Ho.

A resposta extrema a um mundo transitório, em que se é responsável por seu próprio valor e reconhecimento, é a revolta trágica e dada num plano individual. Como foi salientado durante o texto, embora Travis, Arthur e a família Kim sofram de problemas concretos socialmente determinados como alienação, pobreza, abuso etc. a resposta é sempre internalizada e, muitas das vezes, até mesmo niilista.

Similar à busca de sentido num mundo intrinsecamente alheio do qual os existencialistas tanto falavam em meados do século XX, mas somado a uma condição de excesso informacional, de fragmentação social e de falta de referenciais: essa é a condição do homem para a qual Hobsbawm chamou a atenção; este é o homem contemporâneo.

Os últimos 50 anos viram surgir um novo tipo de indivíduo, com problemas e convicções particulares. O argumento central do presente artigo foi mostrar como essa caracterização pode ser apercebida temporalmente através de intervenções na cultura popular, produções suficientemente íntimas capazes de gerar insights sobre a mentalidade de seus conterrâneos, mesmo no caso mais baixo da produção massificada. Grosso modo, a ideia é que certos tropos e temas se repetem em constantes homenagens internas (o exemplo mais óbvio sendo Taxi Driver e Joker), recepção popular empática, e referencialidade a problemas concretos e presentes no imaginário popular. Com as personagens, foi possível delimitar o que seria, de forma talvez exagerada, o homem contemporâneo. Com a ajuda de Dardot & Laval e Byung-Chul Han, foi possível estabelecer exatamente quem são essas personagens. De forma sintética, e fazendo alusão ao título, temos o poema Os Homens Ocos, de T.S Eliot:

“Nós somos os homens ocos/ Os homens empalhados/ Uns nos outros amparados/ O elmo cheio de nada. Ai de nós!/ Nossas vozes dessecadas,/ Quando juntos sussurramos,/ São quietas e inexpressas […]”

 


NOTAS


[1] Artigo feito para a disciplina de Economia Mundial Contemporânea, semestre EARTE 2020/1. O número de referências e de palavras fazem parte da proposta da disciplina.
[2] Graduando em ciências econômicas (UFES). 
[3] Famoso complexo de cavernas localizado na França, caracterizado pela qualidade e quantidade de seus registros. Para mais: https://archeologie.culture.fr/lascaux/fr.
[4] Compositor austríaco do início do romantismo. O comentário é genérico, visto que pretende apenas ressaltar certo costume presente na música erudita.
[5] Escritor vitoriano, popular pelos comentários sociais e realismo presentes em suas obras.
[6] Escritor e crítico literário argentino.
[7] Obra de Graciliano Ramos publicada em 1938 que narra as condições de vida de uma família no sertão nordestino, amplamente reverenciado como um dos principais romances da literatura brasileira. Fabiano é um vaqueiro e personagem central da narrativa. Uma de suas características mais marcantes é a clara deficiência linguística que apresenta, sendo incapaz de passar ideias simples e muitas das vezes imitando, de forma quixotesca, o falar de outras pessoas.
[8] Protagonista de Crime e Castigo, romance de Fiódor Dostoiévski.
[9] Disponível em: <https://mubi.com/notebook/posts/movie-poster-of-the-week-the-posters-of-parasite>. Acesso em 16/04/2021

BIBLIOGRAFIA


DARDOT, P; LAVAL, C. O homem empresarial. In: A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016. [p. 139-155]
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.
HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.
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A família PNAD: explicando a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

Estudantes subgrupo de empregos e salários [1]

A partir de entrevistas em diversos domicílios brasileiros, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) coleta dados para a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que é importante instrumento para a formulação, validação e avaliação de políticas direcionadas ao desenvolvimento socioeconômico e a melhoria das condições de vida no país. Em seu modelo contínuo (PNAD Contínua), a pesquisa visa produzir indicadores para acompanhar flutuações trimestrais e a evolução a médio e longo prazo da força de trabalho, dentre outras informações.

É comum tratarmos os resultados da pesquisa do ponto de vista estatístico, esquecendo, por vezes, que a pesquisa é um retrato da realidade nacional, isto é, são seres humanos que se encontram naquelas diversas situações. Assim, com a finalidade de entender os principais conceitos referentes a essa pesquisa e desconstruir a noção puramente matemática que, por vezes, informa as análises, conheceremos um pouco da história dos membros da Família Pereira Nascimento Almeida Dias, a família PNAD, uma família brasileira que vivencia diferentes realidades quando o assunto é sua inserção no mercado de trabalho.

Essa família de tantos sobrenomes é composta por 8 pessoas, dentre elas, Maria. Nossa personagem principal tem 40 anos e é mãe de 3 filhos: Juninho, Camila e Júlio César. Próximo a sua casa, mora seu pai, Sr. Antônio, e seu irmão, Augusto, com seus 2 filhos, Rafaela e Marcelo. Coincidentemente, cada habitante desses dois domicílios é classificado de acordo com diferentes categorias da pesquisa. Nesse sentido, essa família exemplifica, com suas posições no mercado de trabalho, os conceitos da PNAD Contínua. Abaixo segue um retrato da nossa família PNAD. Em seguida, apresentamos cada membro da família, explicando a situação que aquela pessoa se encontra em relação à inserção no mercado de trabalho. O Marcos, nosso técnico de pesquisa do IBGE, irá nos ajudar nesta empreitada. Nesta apresentação, destacamos quantos brasileiros (as) se encontram em cada situação, com base nos dados da pesquisa para o quarto trimestre de 2020. O objetivo, vale a pena reforçar, é convidar o leitor a refletir sobre o lado humano da pesquisa, afinal ela retrata o difícil cenário que muitos brasileiros e brasileiras estão enfrentando.

Olá, meu nome é Marcos, sou técnico de pesquisa do IBGE. Hoje vamos conhecer um pouco sobre os indicadores do mercado de trabalho a partir da realidade da família Pereira Nascimento Almeida Dias. Vamos começar? Conheceremos algumas categorias importantes para a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios e a situação de cada integrante da família.


População abaixo da idade de trabalhar (Menor de 14 anos): Olá, eu sou o Juninho, filho da Maria, tenho 4 anos e por isso não posso trabalhar. Na PNAD Contínua, pessoas com menos de 14 anos são consideradas abaixo da idade de trabalhar.  Todos os outros membros da minha família estão dentro da População em idade de trabalhar, pois eles possuem 14 anos ou mais. Mas, nem todas as pessoas que possuem idade para trabalhar estão trabalhando, há algumas que nem sequer estão à procura de uma inserção no mercado de trabalho. Do total da população brasileira em idade de trabalhar (176,362 milhões), no 4º trimestre de 2020, 100,1 milhões se encontravam na Força de Trabalho, isto é, estavam ocupadas ou desocupadas. Meu irmão, Júlio César, é um dos milhões de brasileiros que estão desocupados. Olha ele aí embaixo, explicando a situação.

Desocupado: Eai?! Meu nome é Julio César, sou o filho mais velho da Maria. Ultimamente, as coisas estão difíceis por aqui, pois mesmo buscando emprego e estando disponível para começar a qualquer momento, não tenho conseguido nada. A situação econômica do país não está nada fácil. Apesar de ter terminado meus estudos em engenharia, não consegui encontrar nenhuma oportunidade no mercado de trabalho. No 4º trimestre de 2020 existiam 13,9 milhões de pessoas nessa situação. Estou na categoria de desocupados, mas espero sair logo dessa situação e entrar para o grupo de Ocupados. Os ocupados são as pessoas que trabalharam pelo menos uma hora completa em trabalho remunerado em dinheiro, produtos, mercadorias ou benefícios (moradia, alimentação, roupas, treinamento etc.) na semana de referência da pesquisa. No 4º trimestre de 2020 existiam 86,1 milhões de pessoas nessa situação. Não vejo o momento de me juntar a eles. Meu tio, Augusto, está ocupado, o que é muito bom, mas, o melhor é que ele trabalha horas consideradas suficientes. Olha ele aí embaixo, explicando.

Ocupado com horas suficientes: Olá, eu sou o Augusto, irmão da Maria e filho do Antônio. Sou diretor financeiro de uma empresa de comércio de mármore e granito. Comecei cedo na firma como técnico em contabilidade, com o passar do tempo, consegui passar na faculdade de ciências contábeis, me formei e consegui esse cargo na empresa. Sou bem satisfeito financeiramente, trabalho de segunda a sexta, de 8 às 18h, e consigo ficar livre no final de semana para curtir com a minha família.  Estou feliz pela minha situação, mas ando preocupado com minha sobrinha, Camila. Ela também está nesse grupo de ocupados, como eu, isto é, ela tem um emprego. Mas, ela está trabalhando menos horas do que deseja e, por isso, integra o grupo de subocupados por horas insuficientes. Aí embaixo, ela explica como está sendo enfrentar essa situação:

Subocupada por horas insuficientes: Oi, eu sou a Camila, filha da Maria. Sou formada em biologia e dou aulas na escola do meu bairro, mas como não tinham muitas turmas, só consegui dar aulas no turno da manhã! Estou trabalhando 20 horas por semana, mas gostaria de trabalhar mais. Não somente gostaria, eu preciso. Como estou precisando aumentar a minha renda mensal, comprei uns utensílios e comecei a fazer bolo pra vender nessas horas disponíveis para complementar a renda. Eu vi no jornal que o número de pessoas que trabalham menos horas que desejariam, assim como eu, está crescendo no país. Na matéria, eles explicam que as pessoas nessa situação são denominadas de subocupadas. Eu sou subocupada, já que só dou 20h de aulas semanais e gostaria de trabalhar por mais horas. Difícil é acreditar, como disseram no jornal, que 6,9 milhões de pessoas estão em uma situação parecida como a minha.


Olá pessoal, sou o Marcos do IBGE, lembram? Pois é, na família PNAD, como vimos, o Augusto e a Camila estão trabalhando. Mesmo que em uma situação distinta, ambos estão no grupo de ocupados. Já o Júlio César está enfrentando uma barra à procura de emprego. No mercado de trabalho em geral, tanto as pessoas ocupadas quanto as desocupadas integram a Força de Trabalho. Mas, há, de acordo com o 4º trimestre de 2020, 76,2 milhões que estão Fora da Força de Trabalho, isto é, nem estão ocupados, nem estão procurando uma ocupação. Essa pode ser uma situação confortável para alguns que estão fora da Força de Trabalho Potencial (FTP), mas também pode ser expressão de uma situação dramática, para outros, que estão na FTP. Outros membros da família PNAD nos ajudam a entender isso.


Fora da força de trabalho potencial: Olá pessoal, eu sou o Antônio Pereira, pai da Maria e do Augusto. Em janeiro, eu comemorei 73 anos de idade, sou aposentado e por isso, de acordo com o IBGE, estou fora da força de trabalho. Com minha aposentadoria consigo pagar as contas e até dá para dar uma força pro Júlio César, meu neto, que está desempregado. No meu tempo era muito melhor, viu? Era impensável um engenheiro formado procurando emprego. Júlio até veio falar comigo, dizendo que quer trabalhar como Uber. Eu disse para ele esperar e continuar batalhando por um emprego com carteira de trabalho assinada, pois eu ainda posso ajudar por um tempo. A Maria, minha filha, sofre muito, pois não é fácil ter um filho nessa situação. Ela quer trabalhar fora para ajudar, coitada. Ela está aí, na batalha, procurando um emprego, mas não está disponível para trabalhar, pois tem que cuidar do Juninho. É por isso que ela está na Força de trabalho potencial, que é o conjunto de pessoas de 14 anos ou mais de idade que não estavam ocupadas nem desocupadas na semana de referência, mas que possuíam um potencial de se transformarem em força de trabalho. No 4° Trimestre de 2020, havia 11,315 milhões de pessoas nessa situação.

→ Buscou trabalho, mas não estava disponível:  Meu nome é Maria, tenho 40 anos e sou mãe solo de 3 jovens. O mais novo, Juninho, ainda é dependente de meus cuidados e o mais velho, Júlio César, perdeu seu emprego e passa os dias procurando por uma nova oportunidade. A renda da minha casa depende da minha filha, Camila e da força que meu pai está dando. Por isso, eu decidi procurar por uma ocupação. No entanto, apesar de nessas últimas semanas estar buscando por um trabalho, eu não poderia assumir esse novo posto, já que preciso estar em casa para cuidar dos afazeres domésticos e cuidar do meu filho mais novo, pois ainda não consegui uma vaga na creche para ele. A Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio me classifica no grupo de pessoas que buscaram trabalho, mas não estavam disponíveis para trabalhar. Pior do que eu só a Rafa, minha sobrinha, ela está procurando emprego há um tempão e não acha. Já desistiu, tadinha.

Desalentado: Ei gente, tudo bem?! Meu nome é Rafaela, sou filha do Augusto, tenho 28 anos e sou técnica em recursos humanos. Meu último emprego foi há 3 anos. Lá eu era assistente de RH. Depois de 8 meses da minha contratação, a empresa encerrou as atividades na cidade. Permaneci por mais 1 ano em busca de uma oportunidade, mas não encontrei. Foi então que decidi vir para a capital do meu estado tentar me realocar no mercado de trabalho, mas, infelizmente, não encontrei vagas. Com a crise econômica e a pandemia, parece que não encontrarei tão cedo uma vaga. De acordo com o IBGE, eu estou no grupo das pessoas desalentadas, ou seja, aquelas pessoas que, por algum motivo, desistiram de procurar emprego.  No 4º trimestre de 2020 existiam 5,7 milhões de pessoas nessa situação. Estamos na torcida, aqui em casa, pro tio Júlio César conseguir um bom emprego. Assim, o vovô volta a dar uma força nas contas aqui de casa. Quem sabe em algum momento, a situação melhora para mim também. Nosso objetivo, aqui em casa, é deixar o Marcelo, meu irmão, estudando, sem precisar trabalhar, mas está cada vez mais difícil.

→ Não desalentado: Olá! Eu sou filho do Augusto e me chamo Marcelo. Estou cursando o segundo ano da faculdade de Letras na Universidade Federal do meu estado. Com o apoio da minha família, estou me dedicando aos estudos e, por isso, não estou procurando um emprego no momento. Mas, com a situação da Rafa, se surgisse uma oportunidade eu estaria disponível. Segundo o IBGE, essa minha situação de não estar procurando um trabalho, mas estar disponível caso surgisse, é considerada como não desalentada. Diferente da minha irmã Rafaela, que é desalentada, ainda não busquei um emprego porque não seria interessante para mim agora.


Ei pessoal, olha eu aqui, o Marcos. Assim como alguns integrantes da família PNAD, existem muitos brasileiros na condição de subutilizados. Mas, o que é isso? É como se fosse um desperdício da força de trabalho do nosso país, sabe? É o caso do Júlio César, que está desempregado; da Camila, que está subocupada; e de todos os outros que estão na Força de Trabalho Potencial (a Maria, a Rafaela e o Marcelo). O que a PNAD faz é somar todas as pessoas que estão nessas três situações e as reunir nesse grupo de subutilizados.  Esse grupo representa a quantidade de pessoas ou mão de obra que não são utilizados no mercado de trabalho, por faltar uma ocupação adequada. Esse conceito foi incorporado após discussões em âmbito internacional junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT), e é considerada a forma mais precisa para compreender um dos indicadores da precarização no mercado de trabalho. No 4º trimestre de 2020, cerca de 32 milhões de pessoas estavam nessa situação.


Ei gente, olha eu aqui novamente, o Juninho. Essa é a minha família e foi muito bom poder mostrar para vocês um pouco da nossa situação, que não está muito fácil, não é? Tá todo mundo ralando, já que só a minha irmã, Camila, e o tio Augusto estão trabalhando. Meu sonho é poder ir pra creche, assim, minha mãe pode voltar a trabalhar e eu posso estudar, afinal, também quero ter um emprego logo logo e, assim, conseguir dar uma força aqui em casa.


NOTAS

[1] Contribuíram diretamente para a redação desta análise Gisele Paiva Furieri, Luiz Carlos Santos, Luiza Giubert, Otavio Luis Barbosa, Patrícia Specimille e Ruth Stein Silva.
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BOLETIM N°63 | DEZEMBRO DE 2020

RECESSÃO E PANDEMIA: A CRISE CONSUMADA

 

O Boletim de Conjuntura em Economia da Ufes chega a sua 63ª edição no final de 2020. Seu formato segue a mesma estrutura da edição anterior, com quatro seções, a primeira com a análise do nível de atividade, política fiscal e setor externo, a segunda sobre a política monetária e inflação e a terceira tratando do mercado de trabalho. Completa o texto, a tradicional análise do economista Fabrício Oliveira, fazendo um balanço da política econômica no ano. Um anexo estatístico fecha o boletim.

Neste turbulento 2020, como não poderia ser diferente, os efeitos da pandemia de Covid-19, e das políticas sanitárias que visaram combatê-la, deram a tônica dos textos. Não é possível dizer, entretanto, que a crise que aparece em todos os indicadores econômicos e sociais seja propriamente causada pela pandemia. A economia nacional já andava de lado há pelo menos 4 anos, com taxas pífias de crescimento do produto e dificuldades de geração de emprego.

A catástrofe atual, desta forma, se sobrepôs a uma situação que já era preocupante. Em síntese é isso que aparece nas análises que seguem. A queda acumulada no PIB de janeiro a outubro de 2020 que atingiu 5%, com suas consequências tanto nas contas públicas quanto no mercado de trabalho, deixa a economia ainda mais longe da tão propagada recuperação. A manutenção de baixos índices de investimento reforça esta percepção.

Por sua vez, a inflação que se mantinha muito baixa, em face da estagnação econômica, dá sinais de alta, como resultado principalmente da depreciação cambial. Enquanto isso, o desemprego aumenta e milhares de pessoas são excluídas do mercado de trabalho por não conseguirem sequer procurar uma nova ocupação. Em sua maior parte, estas pessoas são exatamente aquelas que se encontravam nas ocupações mais precárias, as primeiras atingidas pela pandemia.

A despeito do respiro percebido nos últimos meses, o cenário não é dos melhores e, infelizmente, como aponta a análise de Fabrício Oliveira sobre a política econômica do governo Bolsonaro, o futuro próximo tampouco parece muito promissor.

Nós, professores e estudantes do Grupo de Conjuntura, convidamos a todas e todos para a leitura dos textos produzidos para a presente edição.

Boa leitura!
Grupo de Conjuntura

Publicado em Boletins | Com a tag , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , | Comentários desativados em BOLETIM N°63 | DEZEMBRO DE 2020

RACISMO NAS ORGANIZAÇÕES: VIDA E TRABALHO NOS SUPERMECADOS

Patrícia Rocha Lemos
(Doutora em Ciências Sociais e pesquisadora do CESIT/Unicamp)

A crueldade e a brutalidade do assassinato de João Alberto, homem negro espancado até a morte, causam profunda indignação. Se ainda nos resta algum pingo de humanidade, assim devia ser. O acontecimento ter se dado às vésperas do Dia da Consciência Negra, data que tem exigido tantas lutas pra se manter, trouxe à tona uma das expressões mais extremas e dilacerantes do nosso racismo estrutural que, de forma criminosa, nossos governantes e autoridades insistem em negar. Mas, passado o efeito desse estarrecimento imediato, corre-se o risco de que a “normalidade” nos imponha outras urgências e que absurdos inaceitáveis venham a se sobrepor sem que sejamos capazes de criar as ferramentas para compreender, combater e transformar essa realidade. 

Parece ter sido assim com muitos dos acontecimentos dos últimos dias, meses e anos. Apesar disso, alguns suspiros de esperança se abrem a partir daqueles que se revoltam e dão voz a essa luta. Mulheres e homens interpelam o conjunto da sociedade clamando que vidas negras importam, e não é de hoje. Calar não é e não pode ser uma opção. Mas como, então, adicionar algum elemento diferente para além do que já vem sendo dito sobre os absurdos que se expressam nesse crime?

Das mais diversas perspectivas sobre as quais podemos discutir como chegamos até aqui, como permitimos que matassem João Alberto, penso que a única em que eu poderia ter algo a contribuir tem a ver com, não quando, nem como, mas onde e por quem João Alberto, ou Beto, foi assassinado. O genocídio da população negra já é de conhecimento público, recolocado a cada novo balanço estatístico, ano após ano. E não faltaram casos concretos de homens, mulheres e crianças cujas histórias foram contadas na TV na forma de tragédia. O que falta para enxergarmos que não se trata de exceções, de situações extremas episódicas, mas de realidades que estão sendo gestadas o tempo todo no dia a dia de nossas vidas? Foi pensando nisso que decidi me ater à pergunta: que outras faces do problema nos mostram as circunstâncias desse crime? Sob que outros olhares podemos entender a conivência de um conjunto de organizações que permitem que isso continue a acontecer? Aqui, estou me referindo ao fato de esse homem negro ter sido espancado até morrer por um segurança e um policial militar na loja de supermercado para a qual esses sujeitos prestavam serviço. 

Estudando nos últimos anos o que tem sido as transformações contemporâneas no segmento supermercadista e seus impactos sobre o trabalho, ao analisar o tipo de organização do trabalho e as estratégias de gestão que foram se difundindo, especialmente pelas grandes transnacionais varejistas, estou convencida de que esse fato não é mero acaso, mas o resultado de uma confluência de fatores que reforçam e legitimam os mais profundos alicerces do racismo. 

Essas organizações têm adotado cada vez mais políticas de estabelecimento de metas com pressões individuais e exposição de resultados de forma pública, vexatória e muitas vezes de humilhação. No caso da rede norte-americana Walmart, maior empresa em faturamento do mundo¹, práticas como essa, muitas vezes denominadas de “motivacionais”, geraram inúmeras ações na Justiça do Trabalho brasileira. Ainda que, em muitos casos, tente-se responsabilizar exclusivamente o indivíduo (gerente ou superior que praticou tal ato), quando olhamos para a política de gestão do trabalho dessas empresas, fica evidente que a lógica que fundamenta a sustentação das margens de lucro a qualquer custo quer dizer realmente “a qualquer custo”. Ou seja, mesmo que esse custo seja a vida de seus trabalhadores, dentre os quais, nem todos parecem ter o mesmo valor, a depender do sexo, gênero, raça, etnia, etc. O tom da denúncia de um desses processos dá a dimensão do que, infelizmente, é corriqueiro: “A chefe da frente de caixa costumava comentar que ‘isso só poderia ser coisa da cor’ e que tiraria ‘todos os pretinhos da frente de caixa’, fechas as aspas. Além de fazer gestos preconceituosos”². 

Esse tipo de assédio e de crime, na sua maioria, não são denunciados, como apontam os relatos que ouvi durante a pesquisa. São raros os casos como o de Shana Ragland, que ficou conhecida pelo vídeo em que se demite da empresa denunciando o assédio e o racismo de gerentes e outros trabalhadores em uma loja do Walmart nos Estados Unidos³. Também nunca testemunhei um relato em que gerentes que assediavam e humilhavam seus subordinados e subordinadas tivesse tido algum tipo de punição pela empresa. Ao contrário: diante de um caso de abuso de autoridade e assédio sexual, depois da ação de um conjunto de mulheres, a cúpula de diferentes níveis da gerência do supermercado, todos homens, acharam por bem transferir o indivíduo assediador para um outro local de trabalho. Essas e outras histórias só reafirmam o que um dos meus entrevistados, trabalhador de supermercado, disse, a partir da sua experiência, sobre como a empresa lida com essas práticas: “se eu tô dando resultado, eu sirvo. Independente das besteiras que eu faço. Que a empresa já tem um jurídico pra salvar, pra tá atuando. Então, se a loja que eu tô dirigindo tá dando lucro, pouco importa as besteiras que eu faço”.

É nesse cenário que, não à toa, muitos entrevistados diziam que o trabalho em supermercados é um tipo de regime de trabalho escravo: horas extras não pagas, a negação de direitos básicos (como a dispensa pra ir no banheiro), a descartabilidade dos que apresentam doenças ou limitações e as recorrentes práticas de assédio e humilhação. Em um país assolado pelo desemprego e pela falta de alternativas de empregos menos precários, perpetuamos a nossa herança escravista de modo muito mais vivo do que se supõe, e que se evidencia na própria percepção dos trabalhadores. 

Então, se essa é a vivência dos empregados diretos dessas redes de supermercados, o que se pode dizer da atividade desempenhada por aqueles que prestam serviços que foram “externalizados”? Se essas empresas não implementam uma política de respeito à vida e aos direitos humanos mais fundamentais entre aqueles que são de sua responsabilidade direta, o que se pode esperar dos serviços terceirizados? Não é precisamente essa “isenção” um dos motivos que torna a terceirização “atrativa” para essas grandes empresas?

Há pouco mais de três meses, em um supermercado da mesma rede Carrefour, mas na cidade do Recife, Moisés Dias morreu de mau-súbito enquanto trabalhava como promotor de produtos alimentícios. Seu corpo foi coberto com guarda-sóis e a loja continuou a funcionar. A imagem estarrecedora da foto que circulou pelas redes sociais já estampava a prevalência de relações de trabalho completamente desumanas. Moisés era empregado como promotor de vendas, uma das ocupações mais significativas no setor, mas que também é parte desse processo de terceirização, ou seja, em que parte das atividades anteriormente exercidas por empregados dos supermercados passaram a ser de responsabilidade de fornecedores ou contratados por empresas de intermediação de mão de obra. 

Na dinâmica da terceirização, assim como os fornecedores de produtos aos supermercados, também as empresas de segurança privada sabem que é a “empresa contratante” que define a política e estabelece as exigências do serviço a ser prestado. É a chamada empresa principal, no caso, a direção do supermercado, que define qual o tipo de serviço, o foco da abordagem e as orientações de como ela deve ser realizada. Não quero com isso dizer que Beto foi assassinado a mando do supermercado. Contudo, em um segmento em que a margem de lucro é pequena e se dá pela grande quantidade de produtos vendidos, a obsessão pela redução das “perdas” significa passe livre para um conjunto de violações. Lembro que me chamou a atenção durante a pesquisa com processos do Tribunal Superior do Trabalho as denúncias de revista feita em pertences e armários de trabalhadores sem o seu conhecimento e que foram entendidas como de direito do empregador. Essa mesma política de “prevenção de perdas” no Walmart dos EUA deixava produtos de cabelos para negros separados e trancados em suas lojas.

A política criminosa do Carrefour de “fazer vista grossa” a essas práticas já se mostrou em vários outros episódios. Talvez o assassinato de Beto viesse a ser apenas mais um se não houvesse um vídeo para escancarar que não há explicação possível que justifique o ato brutal daqueles seguranças e a conivência de quem o presenciou. Em 2009, Januário, homem negro, foi espancado por seguranças de uma empresa terceirizada de uma loja do Carrefour em Osasco depois de ser acusado de estar tentando roubar o próprio carro. Na época, a direção do supermercado afastou da função o segurança responsável pela agressão. Agora, com a mobilização social e a repercussão do caso mais recente, somadas às similaridades com tantos outros casos de assassinato por forças policiais que impulsionaram revoltas nos EUA nesse ano, outros casos sobre esse tipo de prática e abuso vem à tona

Diante disso, se combinamos essas políticas das redes varejistas com a lógica de organização e treinamento das empresas de segurança privada, permeadas de várias maneiras pela atuação de agentes públicos da estrutura militar, o que temos são práticas que se sustentam por décadas: de abordagem e constrangimento de clientes negros, de atuação ofensiva e violenta, reprodução dos preconceitos e violações de direitos de todo tipo. É nessa articulação que “fazer vista grossa” por parte do supermercado é parte da conduta da gestão quando o que realmente importa é ter em contrapartida os “resultados esperados”. Com isso, uma diretriz de gestão se transforma facilmente em passe livre para o cometimento de crimes e atrocidades de todo tipo. Isso porque, como em inúmeros outros casos, o perpetrador do crime age sustentado na crença de que aquilo faz parte do seu trabalho, é a atitude esperada da sua posição e que não só estará isento de punições como, muitas vezes, vai ser reconhecido por agir em defesa dos interesses da empresa (ainda que nos bastidores). 

Se essa é uma política adotada para seus próprios empregados, o que esperar da ação diante daqueles que não se enquadram no perfil de “cliente”? O racismo nessas abordagens já é de longe nosso conhecido. Quem nunca viu um homem negro ser vigiado ou abordado por seguranças de supermercado? Não é coincidência que o critério é o mesmo utilizado pelas nossas polícias. Sem entrar na discussão sobre política de segurança e a estrutura dessas empresas de segurança privada, gostaria de ressaltar que, o “tipo de serviço” oferecido por essas empresas corresponde ao que lhe é demandado, afinal, como já sabemos de décadas, “quem paga a banda, escolhe a música”. 

Portanto, sem minimizar o conjunto de outras medidas necessárias e do complexo de relações que nos trouxe até aqui, é inaceitável que não exista por parte do Estado mecanismos de responsabilização dessas organizações. É evidente que a pressão social tem gerado desgaste na imagem dessas marcas, o que impacta financeiramente essas corporações, mas isso é passageiro. Ao não comprar no Carrefour, compraremos em outra rede que talvez tenha práticas tanto ou mais condescendentes com o racismo e violações de direito de todo o tipo. Só isso não é suficiente.

Ao permitirmos a continuidade de um governo que nega a existência do racismo e condena a revolta legítima e necessária de uma sociedade que não pode mais conviver com o extermínio de sua população preta, pobre, indígena… estamos dizendo que sim, podemos aceitar que existam outros “Betos” contanto que não sejam os “nossos”. Não é possível avançar na luta contra o racismo sob um governo que não apenas descontrói os direitos básicos de sua população e seu acesso à justiça, como atua sistematicamente para lhes negar o direito de existir.

O pronunciamento de alguns dos grandes fornecedores do Carrefour tem uma importância ao menos simbólica, mas ainda nos coloca longe de um modelo de negócios que coloque a vida acima dos lucros. Também é relevante que a rede varejista de origem francesa tenha decidido destinar 25 milhões a um fundo de combate ao racismo no país. Mas, para além de uma estratégia que possa preservar ou recuperar a imagem da maior rede supermercadista do país, que medidas serão capazes de desconstruir a “ideologia corporativa” e o modelo de gestão do trabalho que perpetua o racismo no âmago mesmo dessas organizações? Como esse combate vai se expressar na política de contratação, treinamento e gestão de seus trabalhadores e na relação com seus consumidores, fornecedores e prestadores de serviço?

Enquanto não houver respostas convincentes a essas perguntas, o silêncio não é uma opção. Vidas negras importam e nosso grito vai continuar a ecoar até que sejamos ouvidos! 

NOTAS


[1] O regime de trabalho nessa rede foi objeto de minha tese de doutorado intitulada: “‘Custo baixo todo dia’: redes globais de produção e o regime de trabalho no Walmart Brasil”, defendida em maio de 2019 pelo programa em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas.
[2] Disponível em: https://www.tst.jus.br/-/walmart-e-condenado-a-indenizar-trabalhadora-que-foi-vitima-de-atos-racistas-de-uma-gerente
[3] https://noticiapreta.com.br/nos-eua-funcionaria-se-demite-do-walmart-e-expoe-racismo-no-alto-falante-essa-empresa-trata-os-funcionarios-como-merda/
[4] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/08/18/homem-morre-e-tem-corpo-coberto-por-guarda-sois-em-carrefour-no-recife.htm.
[5] https://www.istoedinheiro.com.br/apos-polemica-walmart-diz-que-vai-deixar-de-trancar-produtos-para-negros/.  
[6] https://extra.globo.com/noticias/brasil/homem-negro-confundido-com-bandido-espancado-por-seguranca-de-supermercado-na-grande-sp-320091.html.
[7] Como o caso da mulher que foi espancada e estuprada por seguranças e casal vítima de homofobia> Sobre isso ver: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/11/juiza-e-defensor-relatam-que-mulher-negra-foi-estuprada-e-torturada-em-carrefour-no-rio-entre-2017-e-2018.shtml; e https://noticias.uol.com.br/colunas/rogerio-gentile/2020/11/23/carrefour-e-condenado-por-agressao-de-segurancas-a-casal-homossexual.htm.
[8] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/11/doze-fornecedores-do-carrefour-anunciam-alianca-em-defesa-da-diversidade-racial.shtml.
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A CRISE DA ECONOMIA DO ESPÍRITO SANTO: UMA BREVE ANÁLISE DO SEU NÍVEL DE ATIVIDADE E SETOR EXTERNO

Analisando os resultados, seja no nível interno ou em termos do comércio internacional, a economia capixaba obteve resultados negativos generalizados durante o primeiro semestre de 2020. À crise econômica que se arrasta desde 2015 juntaram-se os efeitos resultantes da desaceleração da produção provocada pela pandemia do coronavírus. O Produto Interno Bruto (PIB) do Espírito Santo apresentou, nos dois primeiros trimestres de 2020, comparativamente aos mesmos trimestres do ano anterior, queda de 10,2% e de 6,3%, respectivamente. No acumulado do primeiro semestre do ano, a queda foi de 5,9%, ampliando assim as expectativas de queda previstas já a partir do final de 2019. No caso capixaba, o comportamento do PIB apresenta-se em ligeira queda desde 2017, acompanhando o caso brasileiro, observando-se brusca queda no primeiro semestre de 2020 (Gráfico 1).

Gráfico 1: Variação trimestral do PIB brasileiro e capixaba (Variação % em relação ao mesmo período do ano anterior)
Fonte: IBGE. *O resultado do Produto Interno Bruto capixaba desde 2018 ainda está sujeito a correções.
Elaboração própria.

Em valores correntes, a estimativa para o PIB nominal foi de 30,3 bilhões de reais no segundo trimestre do ano e de 122,5 bilhões de reais no acumulado dos últimos quatro trimestres. Com dados desagregados, observamos, no acumulado do ano de 2020, retrações na Indústria (-20,8%), Serviços (-7,9%) e Comércio varejista ampliado (-4,2%). Os destaques na indústria ficaram por conta dos setores da Indústria Extrativa (-34,7%), Metalurgia (-36,9%), Produtos alimentícios (-29,4%) e produção de Produtos minerais e não metálicos (-25,4%). É importante apontar que a redução do nível de atividade da indústria em um nível muito maior  ao apresentado pela média brasileira já ocorria desde o início de 2019, mas se intensificou durante o período da pandemia. Assim, tendo como referência o mês de agosto de 2020, a queda da atividade industrial capixaba acumulada nos últimos 12 meses foi de 19,3%, ao passo que em âmbito nacional essa queda foi de 5,5% (Gráfico 2). Além disso, observou-se queda da demanda interna, principalmente, produtos alimentícios, e o recuo da demanda externa, afetando substantivamente os segmentos de mineração de ferro em pelotas, óleos brutos de petróleo e produtos siderúrgicos, o que ajudou a agravar o quadro de crise da produção no estado.

Gráfico 2: Pesquisa Industria Mensal – Produção Física (PIM-PF) brasileira e capixaba (Variação percentual acumulada nos últimos 12 meses)
Fonte: IBGE. Elaboração própria.

Quanto ao comércio varejista ampliado, a situação não é tão animadora para o mercado, apresentando queda no volume de vendas em quase todas as bases de comparação para o Espírito Santo. Apesar de medidas como o Auxílio Emergencial, benefício de 600 reais mensais pagos pelo governo federal a trabalhadores informais e de baixa renda, microempreendedores individuais e também contribuintes individuais do Instituto Nacional do Seguro Social, e que visa mitigar os efeitos da paralisação de atividades sobre a renda desse segmento da população, a variação acumulada do ano no Comércio Varejista ampliado foi de -4,2% no Espírito Santo. Esse declínio significativo no Comércio Varejista ampliado resultou, sobretudo, da combinação das variações negativas no Varejo restrito (-1,5%) e em Veículos, motocicletas, partes e peças (-12,5%). No setor de serviços a dinâmica não é muito diferente, posto que apresentou queda de -7,9% no acumulado do ano contra igual período do ano anterior. Alguns dos contribuintes para essa variação negativa foi, sobretudo, o declínio  em Serviços prestados às famílias (-32,0%) e  em Serviços profissionais, administrativos e complementares (-11,1%).

Há impactos que ainda não são previsíveis no futuro próximo, porém, os dados já computados podem dar uma margem de expectativas para o setor externo no estado. Ao analisar as exportações e importações temos dados importantes a serem destacados. Tomando os dados relativos ao período de janeiro a agosto de 2020 em comparação ao mesmo período de 2019, o que mais chama a atenção é a brutal queda das exportações e das importações no período, -30,6% e -25,1% respectivamente. Apesar desses resultados, o saldo da balança comercial ainda ficou positivo em aproximadamente US $502 milhões no período da pandemia. No entanto, significou uma queda de 48,3% em relação ao mesmo período do ano anterior. Por se tratar de uma economia altamente dependente da exportação de commodities, os setores mais afetados são os que correspondem à exportação de bens intermediários, combustíveis e lubrificantes e que representam 83,8% e 10,6% respectivamente. A maior atenção se dá na categoria bens intermediários que apresentou uma queda de 28,1%. Nas importações, a representatividade das categorias está mais equilibradas em comparação às exportações, porém o setor de bens de capital são os de maior parcela com 36,5% do total importado, seguido de bens intermediários, bens de consumo e combustíveis e lubrificantes com participação de 31,4% ,18,8% e 13,3% respectivamente.

Com exceção das importações de bens de capital, que cresceram 5,7%, um crescimento concentrado no breve período antes da pandemia, todas as categorias de importação apresentaram uma redução de valor. Combustíveis e lubrificantes acumularam uma perda de 50,2%, seguido pelos bens intermediários e bens de consumo com redução de 35,5% e 20,3% respectivamente, o que reflete a redução no ritmo da atividade econômica interna. Os principais países de destino das exportações são EUA com 33%, China 14,4% e Holanda com 6%. Em relação aos países parceiros, as importações foram: China com 22,3%, EUA com 12,2% e Argentina com 8,3%.

Diante dos dados apresentados, pode-se deduzir que a dependência da produção e da exportação capixabas em relação ao mercado internacional fará com que a recuperação da economia no estado vincule-se à recuperação da economia global. Assim, o cenário prossegue com grandes incertezas. Segundo o FMI, em seu relatório, World Economic Outlook (“Perspectivas da Economia Mundial”)¹, divulgado em 13 de outubro de 2020, a recuperação econômica mundial será “longa, irregular e incerta”, afinal, a recessão projetada pela organização prevê queda de 4,4% do PIB mundial este ano, o que causará sérios transtornos para a retomada em 2021, a depender de cada país e da forma como os governos nacionais enfrentarem as consequência da crise desencadeada pelo Covid-19.

NOTAS


[1] Disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/09/30/world-economic-outlook-october-2020.

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OS MOVIMENTOS DO MERCADO DE TRABALHO FORMAL EM 2020 NO ESPÍRITO SANTO A PARTIR DOS DADOS DO NOVO CAGED

Estudantes subgrupo de Empregos e Salários¹

Os dados do Novo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (NOVO CAGED)² para o ano de 2020 evidenciam os efeitos da crise do coronavírus sobre o mercado de trabalho formal brasileiro. Tal processo pode ser observado no saldo líquido entre admitidos e desligados, presente no gráfico 1, que apresenta uma dinâmica de destruição de postos de trabalho entre os meses de março e junho. Destaca-se o mês de abril em que são destruídos 939,6 mil empregos no Brasil e mais de 19 mil postos de trabalho no Espírito Santo. 

Gráfico 1: Saldo líquido mensal janeiro a setembro de 2020, BR, ES.
Fonte: Novo CAGED – SEPRT/ME. Elaboração própria.

Os movimentos do mercado de trabalho capixaba não diferem do cenário nacional no período de crise econômica e sanitária. De janeiro a setembro³, o Espírito Santo acumulou uma destruição de 11,4 mil postos de trabalho formais. Este é o primeiro resultado negativo, para o período, desde 2016 (gráfico 2). 

Gráfico 2: Evolução Saldo janeiro a setembro. Acumulado entre 2015 e 2020, ES. Fonte: Os dados de
2020 são do Novo Caged- SEPRT/ME, para os demais anos os dados são do CAGED. Elaboração própria.

De acordo com o gráfico 3, nota-se que a partir de março o número de demitidos se elevou enquanto as admissões recuaram fortemente. O pior mês registrado para as demissões foi em março (-32,4 mil). As admissões tiveram o seu pior resultado em abril (11 mil). Contudo, é possível observar sinais de recuperação a partir de junho, pois a partir deste mês até setembro, os admitidos seguem uma trajetória de crescimento enquanto os desligados se estabilizaram.

Gráfico 3: Admitidos e Desligados de janeiro a setembro de 2020, ES.
Fonte: Novo CAGED – SEPRT/ME. Elaboração própria.

A queda brusca do número de ocupações formais ocorrida em abril, com um saldo líquido negativo de 19,1 mil é atípica para o Espírito Santo, pois não se viu uma queda tão acentuada para esse mês nos últimos cinco anos, conforme o gráfico 4. Tal quadro confirma o impacto da pandemia no mercado de trabalho capixaba.

Gráfico 4: Evolução do saldo líquido  para o mês de abril 2015-2020, ES
Fonte: Os dados de 2020 são do Novo Caged- SEPRT/ME, para os demais anos os dados
são do
CAGED. Elaboração própria.

As consequências da pandemia do novo coronavírus para o mercado de trabalho formal capixaba também podem ser analisadas sob a ótica setorial. Assim, é possível observar no gráfico 5 que os efeitos do distanciamento social afetaram, principalmente, o nível de emprego formal nos setores de Serviços e Comércio, respectivamente. O saldo líquido acumulado para o setor de Serviços foi de -9,4 mil postos de trabalho formal, seguido pelo Comércio (-7,4 mil) e Indústria (1,6 mil). 

Gráfico 5: Saldo líquido por setor de janeiro a setembro de 2020, ES
Fonte: Novo CAGED- SEPRT/ME. Elaboração própria

É preciso observar com atenção o setor de Serviços espírito-santense, pois este é o que mais emprega. Observando o comportamento dos serviços, no gráfico 5, nota-se que o mês de abril foi o mais crítico. Esse resultado é a manifestação do aumento expressivo dos desligamentos (-13,1 mil), influenciado, principalmente, pelos subsetores de alojamento e alimentação (-2,8 mil), transporte, armazenagem e correio (-3,3 mil) e informação, comunicação e atividades financeiras (-4,1 mil). Dos três subsetores, o de alojamento e alimentação foi o que apresentou a maior perda no saldo líquido de empregos para mês de abril (-2,5 mil), expondo os efeitos da pandemia. 

A partir de maio, tendo em vista o relaxamento das medidas de isolamento social, os dados apontam para uma lenta recuperação do saldo líquido apresentada também a nível setorial, com destaque para a retomada do setor de serviços.  No entanto, tal recuperação não foi suficiente para recompor o estoque de postos de trabalho formal do início do ano. Com a crise atual, se percebe uma queda ainda mais profunda no patamar do emprego formal, interrompendo o movimento de suave recuperação a partir de 2017, após perder mais de 55 mil postos entre 2015 (924,7 mil) e 2016 (868,8 mil)4. Por isso, apesar da recuperação iniciada entre os meses de julho e setembro, os dados do NOVO CAGED apontam que o estoque de empregos formais em setembro (719,8 mil) permaneceu inferior ao registrado em dezembro de 2019 (912,6).

NOTAS


[1] Contribuíram diretamente para a redação desta análise Gisele Paiva Furieri, Luiz Carlos Santos, Otavio Luis Barbosa e Ruth Stein Silva.
[2] A partir de janeiro de 2020, o uso do Sistema do Caged foi substituído pelo Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (eSocial). Para viabilizar a divulgação das estatísticas do emprego formal durante esse período de transição, foi feita a imputação de dados de outras fontes. O Novo Caged é composto por informações captadas dos sistemas eSocial, Caged e Empregador Web. Para mais informações sobre o Novo Caged ver Nota Técnica em http://pdet.mte.gov.br/.
[3] A série histórica do Novo Caged é atualizada mensalmente, o que significa que a cada mês os dados de todos os meses anteriores também se modificam. Os dados desse relatório estão de acordo com a atualização de outubro de 2020.
[4] Dados da RAIS, Relação Anual de Informações Sociais. A RAIS é um Registro Administrativo, de periodicidade anual, criada com a finalidade de suprir as necessidades de controle, de estatísticas e de informações às entidades governamentais da área social. Para mais informações sobre a RAIS ver em http://pdet.mte.gov.br/.
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UMA PEQUENA HISTÓRIA DA TRIBUTAÇÃO E DO FEDERALISMO FISCAL NO BRASIL

Publicado pela Editora Contracorrente, o novo livro do economista Fabrício Augusto de Oliveira trata um pouco sobre a história da tributação e do federalismo fiscal no Brasil no período da República. O livro também completa o projeto de estudos para a área fiscal/tributária do autor.

Neste novo livro propõe mudanças capazes de reduzir a complexidade e, sobretudo, minimizar a iniquidade e os entraves ao crescimento atualmente colocados pelo sistema tributário vigente. Numa perspectiva histórica, o autor considera o papel do Estado, o padrão de acumulação dominante, a correlação de forças sociais e políticas atuantes no sistema, bem como a influência do pensamento econômico na orientação das reformas, enquanto aspectos centrais na construção de sua análise da evolução do quadro tributário e do federalismo. (Via Editora Contracorrente)

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A CARNIFICINA DAS PEQUENAS EMPRESAS NA PANDEMIA E A VOLTA DO PRONAMPE


Fabrício Augusto de Oliveira¹

Pesquisa realizada pelo IBGE sobre o impacto da Covid-19 nas empresas, denominada Pesquisa Pulso Empresa, divulgada no dia 16 de junho, revela o estrago que vem sendo feito pelo novo coronavírus no universo empresarial, principalmente no segmento das empresas de pequeno porte.

Segundo a pesquisa, na primeira quinzena de junho, das 1,3 milhão de empresas que haviam suspendido temporária ou parcialmente os negócios (de um total de 4 milhões), 522,7 mil fecharam as portas. Desse total, 518,4 mil, o correspondente a 99,2%, eram de pequeno porte, com até 49 empregados; 4,1 mil (0,78% do total) de porte médio, que empregam de 50 a 499 funcionários; e 110 (0,02%) de grande porte, com mais de 500 empregados.

Do ponto de vista setorial, essa carnificina de empresas distribuiu-se entre os setores de serviços (49,6%), do comércio (36,7%), os mais atingidos pela pandemia, a indústria de construção, com 7,4%, e da indústria de transformação (6,4%). Em relação ao total de empresas no país neste período, isso significa que 13% de seu total foram simplesmente alijadas do mercado, devido à pandemia, revelando as dificuldades que o país terá de enfrentar, superada essa crise, para retomar o crescimento econômico.

Esses números tornam-se mais eloquentes quando a eles se somam as empresas que fecharam por outros motivos, elevando este total para 716,4 mil, ou 17,6% do universo total de empresas, das quais 99,8% se referem a pequenos negócios.

Não poderia ser diferente. Apesar de responsável por uma parte significativa do emprego no país, o segmento das micro, pequenas e médias empresas representa um universo altamente vulnerável às crises por não dispor de capital de giro e nem de reservas suficientes para enfrentar seus efeitos durante um, dois ou três meses, dependendo de seu porte. Quando essa se manifesta, reduzem-se seus fluxos de receitas e poucas alternativas lhes restam para continuar operando, a não ser a de se endividar para pagar seus compromissos, o que, via de regra, representa o passaporte mais seguro para sua falência e fechamento.

No caso atual da crise do novo coronavírus, sua situação se tornou ainda mais dramática porque não houve apenas uma redução de receitas, mas uma completa paralisação de suas atividades com as medidas de isolamento social e o fechamento forçado de seus negócios, sem que suas obrigações com o pagamento de alugueis, salários do funcionalismo, contas de energia, água, entre outras, fossem suspensas. Não haveria, assim, como enfrentar este forte descasamento entre receitas e despesas se não contassem com alguma ajuda efetiva do governo, sob pena de serem expulsas do mercado, tornando, assim, a recuperação da economia mais difícil.

No entanto, enquanto, principalmente nos países mais desenvolvidos, procurou-se criar condições para sua sobrevivência, evitando sua falência, no Brasil, país no qual os gestores da política econômica estão mais preocupados, em plena pandemia, em bloquear medidas que aumentem os desequilíbrios orçamentários do Estado, as políticas desenhadas para essas empresas têm sido completamente insuficientes para salvá-las da bancarrota, à medida que a crise também tem sido vista como temporária, apenas procurando-se criar para as mesmas alguns programas de socorro, mas com as regras do mercado.

Nos Estados Unidos, entre outras iniciativas voltadas para ofertar crédito para as empresas, o governo criou um programa específico para o segmento das micro e pequenas, com recursos que somavam, no final de abril, US$ 670 bilhões para empréstimos. Com 100% do crédito garantido pelo governo e exigência de que pelo menos 75% sejam destinados para o pagamento de salários, o programa, além de permitir o uso do restante para o pagamento de outras despesas (custos) das empresas (alugueis, contas de luz, de água etc.), ainda prevê o perdão do empréstimo, ou seja, o seu não pagamento, com a condição de que as empresas que o receberam mantenham o emprego e o salário de seus funcionários por dois meses. Além disso, este programa, denominado Paycheck Protection Program (PPP) não se descuidou de garantir para o sistema bancário, responsável pelas operações de crédito, uma remuneração para garantir que o dinheiro chegasse, de fato, às mãos de quem dele mais precisa, os pequenos negócios. 

No Brasil, contudo, as coisas se passaram de forma muito diferente.  A empáfia com que o Banco Central anunciou que disponibilizaria R$ 1,2 trilhão para injetar liquidez na economia, mas sem combinar com o sistema bancário, seguiu-se, em abril, a criação do Programa Emergencial de Suporte a Empregos (PESE), por meio da MP 944/20, com dotação de recursos de R$ 40 bilhões, distribuídos entre o Tesouro Nacional (R$ 34 bilhões) e bancos privados (R$ 6 bilhões) para ajudar as empresas a financiar dois meses da folha de salários, a uma taxa de juros de 3,75% ao ano. Isso, no entanto, sem o governo assumir os seus riscos e, diferentemente do programa dos Estados Unidos, sem contemplar nenhum perdão dessa dívida para as empresas que conseguissem ter acesso ao crédito, independentemente de seu porte. 

Não é preciso muita perspicácia para saber que o programa não poderia dar certo e que não conseguiria salvar este universo de empresas. Com o risco dos empréstimos transferido para o sistema bancário, as exigências por este feitas para sua concessão, em termos de garantias e reciprocidade, excluiria a maioria dessas empresas de seu acesso, considerando-se ser alta a possibilidade de inadimplência das mesmas, especialmente num quadro de incertezas colocadas pela pandemia e de sua duração, com o crédito deste programa fluindo, quando isso aconteceu, em sua maior parte, para as maiores empresas com bom histórico de pagamento.

Na mesma direção, mas com um pouco mais de realismo, o Senado Federal aprovou, também em abril, um projeto que criava uma linha de crédito, com taxa de juros de 3,75% ao ano, para as micro e pequenas empresas, denominado Programa Nacional de Apoio às Micro e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), com faturamento entre R$ 360 mil e R$ 4,8 milhões, prevendo destinação de R$ 10,9 bilhões para atender suas necessidades de recursos, mas permitindo o uso do empréstimo para outras finalidades além do pagamento da folha de salários. Na Câmara dos Deputados, o valor do crédito disponibilizado foi elevado para R$ 15,9 bilhões, a garantia dos empréstimos pela União estabelecida em 85% e a taxa de juros fixada em 1,25% (o spread bancário) mais a taxa Selic, com carência de 6 meses para o início de seu pagamento e prazo total de 36 meses para sua quitação, tal como terminou sendo sancionado pelo presidente da República. Permaneciam, no entanto, mesmo com esses avanços vis-à-vis a MP 944/20, excluídas deste acesso as empresas com faturamento inferior a R$ 360 mil, que constituem uma parte expressiva dos pequenos negócios.

Numa revisão das falhas deste projeto de garantir recursos para essas empresas, o governo, por meio da Medida Provisória 975/20, de 01 de junho, modificou as condições de garantia estatal dada às operações realizadas pelos bancos, com as mesmas deixando de ser de até 85% de cada operação individual para 85% de todas as operações de cada instituição financeira no programa. Assim, os bancos, mesmo operando com recursos próprios, passariam a contar com a garantia de até 100% de cada operação, a ser prestada pelo Fundo de Garantia de Operações (FGO), administrado pelo Banco do Brasil. Tal medida reduziria a necessidade de contarem com maior requerimento de capital para a realização dos empréstimos, barateando o custo das operações e compensando a baixa taxa de juros prevista no programa, um dos fatores de sua resistência ao fornecimento do crédito para essas empresas, especialmente dado o maior risco de inadimplência durante a pandemia. A questão das empresas com faturamento inferior a R$ 360 mil permaneceu, entretanto, sem solução.

Repleto de regras que atrapalharam sua atratividade e o interesse dos bancos em fornecer os créditos, tais como a limitação do uso de seus recursos para o pagamento dos salários, o pagamento direto destes pelos bancos responsáveis pelos empréstimos, o risco da instituição em caso de inadimplência, aumentando as exigências de garantias e contrapartidas das empresas para sua concessão, o Pese revelou-se um fiasco enquanto instrumento destinado a salvar as empresas: até o mês de julho, apenas R$ 4,5 bilhões haviam sido emprestados, segundo o Banco Central, do total de R$ 40 bilhões e, mesmo assim, predominantemente para médias e grandes empresas. Já o Pronampe, sem as restrições do Pese, e contando com a cobertura do risco pelo governo, viu esgotarem-se, em pouco mais de um mês de sua entrada em operação, sua dotação de recursos de R$ 15,9 bilhões, revelando a sede por crédito dos pequenos negócios na pandemia.

O sucesso do Pronampe levou o Senado Federal a reformulá-lo, projeto que se encontra em discussão no Congresso, juntamente com um redesenho do Pese. O objetivo é o de transferir R$ 20 bilhões dos recursos deste para o mesmo, até mesmo pela sua ociosidade, elevando, portanto, o montante do Pronampe para R$ 36,9 bilhões, e abrindo também uma linha especial de empréstimos para as micro e pequenas empresas com faturamento inferior a R$ 360 mil anuais. Apesar de tardio, pode ser o caminho para reduzir a mortandade dos pequenos negócios no Brasil no cenário atual dessa crise, caso aprovado. Mesmo que insuficiente, pode ajudar a deter a progressão de seu aniquilamento, conforme mostra a pesquisa do IBGE. 

NOTAS


[1] Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, do Grupo de Estudos de Conjuntura do Departamento de Economia da UFES, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”.

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100 ANOS DE FLORESTAN FERNANDES: IMPORTANTES LIÇÕES SOBRE O BRASIL DE HOJE E O QUE QUEREMOS



Matheus Avila²

Dia 22 de julho deste ano comemoramos o centenário de um dos maiores pensadores do Brasil. Florestan Fernandes é autor e pensador chave para entendermos os maiores dilemas, problemas e desafios estruturais do país em perspectiva crítica, uma vez que sua análise macrossociológica, olhando diretamente para uma sociedade de classes, nos permite enxergá-los nos âmagos de sua estrutura. 

Em sua vasta obra, temos a chance de aprender sobre um Brasil e América Latina subdesenvolvidos, em que o processo histórico da formação social e a dominação burguesa são, em suma, os elementos chaves para explicar o subdesenvolvimento e o caráter desse tipo de sociedade.

A formação social do Brasil, nascida de uma colônia, impôs à sociedade uma dupla articulação: as profundas desigualdades e segregação sociais e a dependência econômica externa. Por outro lado, a dominação política por uma classe em específico se intensifica, à medida em que transformações na economia acontecem – como por exemplo, mudanças no padrão de acumulação do capital -, em uma relação de associação entre vontades da elite nacional e o imperialismo. Aliás, uma das contribuições de Florestan, foi ter percebido que essa classe dominante conquista sua ascensão no campo político legitimando seu poderio econômico.  

Essa foi apenas uma breve introdução para perceber a atualidade de seu pensamento, uma vez que por meio dele, podemos encontrar respostas para questões que vão desde a conformação da estrutura fundiária do país e sua relação com o poder político, até mesmo outras, bem atuais, como tentar entender, por exemplo, o porquê do Brasil estar tão atrasado no combate ao novo coronavírus, bem como o da insuficiência de políticas econômicas que tenham o intuito de mitigar os efeitos da pandemia sobre a economia. Mais que isso! Porquê tanta restrição em se ter políticas públicas de bem-estar social, que garantam empregos, a seguridade e proteção sociais? Porquê o país está batendo recordes de desemprego e informalidade? Porquê as desigualdades persistem?

Tentando responder às perguntas, em primeiro lugar, os problemas essenciais do Brasil – a dupla articulação e a dominação de classes – seriam resolvidos através do controle do país sobre suas decisões e destino mediante afirmação da autonomia do Estado nacional perante o setor externo. Em relação a esses dilemas, o problema crucial do país continua sendo a dependência externa e a grande desigualdade social. 

Florestan Fernandes (1976) vê que a revolução nacional viria conforme a burguesia pudesse, na evolução da história, quebrar com esses problemas e heranças coloniais, paralelamente no contexto em que fossem inseridas num cenário de crescente industrialização, tendo em vista que tal classe iria além, se posicionaria em conflito com a dependência externa e tomaria seu lugar na acumulação de capital. Portanto, se trataria também de uma revolução política ou, mais estritamente, uma “Revolução Burguesa”, porque burguesia seria a única classe possuidora de condições de estabelecer seus anseios, de forma articulada  arquitetando projetos, planos e conchavos no intuito de mitigar os problemas que impedem o país de dominar suas próprias decisões e a sair do subdesenvolvimento.

No entanto, em A Revolução Burguesa no Brasil (1976), analisando a fundo o caráter da burguesia que se formaria no país, atuando como sujeito histórico e a consolidação da dominação de classes, o autor conclui que o que se dá no limite da formação é uma contrarrevolução burguesa permanente. Isso implica no fato de que tal classe não marcha no sentido da superação do subdesenvolvimento, mas sim em sua atenuação como forma de ampliar sua dominação. Nesse sentido, o autor coloca a dominação burguesa como uma autocracia na ideia de que essa seria sua fonte de estabilidade política, econômica e social para manutenção do poder. Entretanto, em momentos em que a classe dominada se põem em condições de cobrar seus interesses, a burguesia mostraria seu caráter reagindo de maneira “reacionária e ultraconservadora, dentro da tradição do mandonismo das oligarquias”.

Isto, sem tirar o fato de que as impotências burguesas no cenário externo seriam compensadas, no cenário político nacional, pela manipulação das condições socioeconômicas internas, de modo que a renovação e novos moldes das estruturas de poder herdadas do passado  seriam postas como instrumento político para garantir as transformações capitalistas, além de sua própria hegemonia no campo político.

Dessa forma, se torna imprescindível o estudo sobre a burguesia nacional em sua formação e consolidação, de suas características próprias, suas relações com a dependência externa, bem como suas estratégias autocráticas de perpetuação de dominação política, sua forma de fazer “democracia” e sua contrarrevolução permanente. Tal ponto se justifica pelo fato dessa classe ser uma categoria fundamental da base do subdesenvolvimento no Brasil, sua permanência e retroalimentação. Para isso, parece não haver outro caminho, senão a reconstrução sócio-histórica de Florestan Fernandes sobre a burguesia brasileira.

Florestan também percebe que a dependência exerce uma incontrolável pressão sobre a própria economia interna, provocando uma hipertrofia de setores socioeconômicos e políticos da própria dominação da elite. As desigualdades causadas por esse movimento do imperialismo resulta em um contraponto democrático levando a um conflito com a burguesia. Tem-se nesses parâmetros um vislumbre introdutório da contradição entre a dependência externa e democracia, pois tornam-se necessários aspectos de superioridade que não podem possuir contrapartidas ao desenvolvimento capitalista no exterior. Em outros termos, uma “forte associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia” .

Estabelece-se, então, uma interdependência política e reciprocidade de interesses, garantindo os interesses do imperialismo e o crescimento econômico desejado pelo empresariado brasileiro para manter seu status quo, tornando-se uma “vanguarda política da dominação imperialista sob a égide do capitalismo”, que apenas moderniza o atraso. Vale destacar que nesse cenário de dependência o Brasil fica a mercê das oscilações provocadas pelas crises do capitalismo e das mudanças de padrão de acumulação do capital.

Com esse movimento social, a ascensão das elites aparece como um flerte não com busca pelo êxito da Revolução Brasileira e com a construção social de um país livre, autônomo, que consiga resolver seus problemas deixados como herança da colonização, mas sim com o capitalismo dependente, que além de legitimar a dominação material interna também mantém a continuidade da expansão desse sistema.

Funciona como uma via de mão dupla: a burguesia se associa ao capital internacional de forma marginal e periférica para manter sua acumulação e legitimar seu poder político perante às demais classes. E, por outro lado, a dinâmica do capitalismo e do próprio capital, que precisa se expandir intensificando as contradições da dualidade capital x trabalho, se alimenta de seu próprio antagonismo, preservando a posição de superioridade de classes, atenuando os problemas sociais.

O pensamento de Florestan também é fundamental para entender a autocracia e/ou autoritarismo das elites no Brasil. Porque, suas outras dimensões, seja a sua polarização, conservadorismo e dependência entrariam em conflito com aspirações democráticas, além de enfrentar oposição das classes subalternas, o que leva tal classe a uma contradição com o modelo democrático republicano representativo. 

Para conter essa possibilidade, emergem as máquinas de opressão e repressão do Estado, representado por uma classe. A reação também correu contra as classes e categorias que pudessem reivindicar suas posições e melhorias, como a classe trabalhadora, sindicatos e movimentos sociais – chamados pelo autor de reivindicações “de baixo pra cima”.

Sendo assim, entender e estudar a obra de Florestan é a chave para compreender o Brasil de hoje. Afinal, com o que vimos anteriormente, fica claro como o autoritarismo representado pelo poder executivo, bem como as políticas econômicas capitaneadas pelo Ministério da Economia, são reflexos da dominação das burguesias do país na esfera política e econômica. Aliás, não seria mera coincidência, nem obra da mão invisível, nem do liberalismo econômico que, em meio a maior crise econômica enfrentada no mundo nos últimos tempos, as políticas de “salvamento” à economia seriam concentradas na esfera financeira, enquanto a regra para os hospitais e famílias desamparadas pelo desemprego é a austeridade fiscal. Também não é a toa que a concentração de renda no Brasil seja tão exorbitante e que, em contrapartida, as elites relutam em aceitar a permanência e ampliação do auxílio emergencial, a adoção da tributação progressiva sobre fortunas, bem como a criação e expansão de programas de redistribuição de renda.

Florestan deixa como lição, então, que dentro dessa ordem não seria possível sair da condição de subdesenvolvimento e de crescente barbárie. Talvez, um de seus maiores legados seja a importância da luta popular e democrática, liderada pelos movimentos dos trabalhadores (fora dos âmbitos da “democracia” burguesa)  para superar a dupla articulação e resolver os problemas essenciais da formação nacional. O caminho é mediante o rompimento político com as elites e com a dependência do setor externo, o que coloca na ordem do dia grandes desafios, que aparentemente parecem ser impossíveis de ser alcançados (baseado no exposto até aqui).

Entretanto, em uma entrevista de Florestan à Vox Populi, a autora Lygia Fagundes Telles pede ao autor “Que esperança você me dá, nesse instante?”. Ele sorri e diz: 
“Infelizmente não posso dar a Lygia nenhuma esperança. Eu acho que quem nos dá a esperança são os humildes, os trabalhadores, os índios e os negros … Todos eles estão fazendo o que as elites nunca fizeram: estão tentando construir um Brasil novo (…) É única razão pelo qual alguém pode dizer ‘O Brasil tem futuro!’”.

Salve, Florestan Fernandes.

 

NOTAS


[1] Partes do texto foram selecionados de artigo científico elaborado pelo autor.
[2] Egresso do Programa de Educação Tutorial do curso de Economia da UFES; Graduando pelo curso de Economia da UFES.
[3] Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=DKaY2HcQ9b8> Acesso em 20/07/2020.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


FERNANDES, Florestan. Revolução Burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. zahar ed. 2ª edição. São paulo. 1976.
FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. zahar, ed. 2ª edição. Rio de Janeiro. 1975
FERNANDES, Florestan. Clássicos sobre a revolução brasileira. Ed. Expressão Popular, 2000.
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