Profa Neide César Vargas
Departamento de Economia/UFES
Até fins de 2019 não se imaginava que a COVID-19 pudesse se transformar numa pandemia, disseminando-se pelo mundo inteiro. Mesmo em 30 de janeiro, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a doença como sendo uma emergência de saúde pública de preocupação internacional[1], não houve grandes mudanças de rumo na maioria dos países. As ações governamentais inicialmente foram tímidas, condicionando os aspectos de saúde pública aos imperativos econômicos, deixando de seguir as recomendações relevantes da OMS já claras desde janeiro. Alguns países inclusive escolheram atacar a OMS, retirando-lhe autoridade e seguindo com políticas de manter tudo funcionando, numa linha de darwinismo social.
Mudanças importantes ocorreram a partir de inicio de março de 2020, com o espraiamento da doença, a consideração da OMS de que a COVID-19 já havia se transformado numa pandemia[2] e o aparecimento de estudos contundentes indicando a necessidade de isolamento social[3]. Desde então, países como EUA e UK passaram a alterar as suas estratégias de enfrentamento da questão. O novo contexto denotou os limites da atuação segundo a lógica do mercado e fortaleceu a adoção de medidas associadas às prerrogativas do Estado Soberano. De acordo com Dardot e Laval (2020)[4] elas englobam a imposição governamental de disciplina e controle social somada à atuação independente e mesmo competitiva em relação ao exterior. Em alguns países, à atuação competitiva entre Estados Nacionais, disputando insumos e equipamentos médicos, se soma uma acirrada disputa interna entre governos centrais e subnacionais por equipamentos e por ganhos políticos com o desenlace da doença, como vem ocorrendo nos EUA e no Brasil.
A via da intervenção governamental, a despeito de ser a única conhecida e ser de mais fácil e rápido acionamento, parece insuficiente para lidar de maneira sustentável com a questão e seus desdobramentos. O momento sinaliza que a cooperação internacional e as ações globais são caminhos essenciais. O simples retorno do Estado intervencionista por meio dos vultosos créditos e dos gastos públicos envolvidos com socorro de empresas, de bancos e, em menor volume – de pessoas, são apenas medidas de curto prazo. Aprendemos com a crise de 2008 que a alta conta será posteriormente repassada, por meio da dívida pública, ao desmonte da própria estrutura do Estado e aos segmentos mais frágeis da sociedade.
Adicionalmente, apostar todas as fichas nos Estados Nacionais, quaisquer que sejam as suas ações, tende a intensificar o isolacionismo dos países e a xenofobia, em certos casos alimentando visões políticas conspiratórias, que buscam bodes expiatórios em inimigos internos e externos para justificar os já esperados graves impactos que ocorrerão em termos de perdas de vidas bem como do ponto de vista econômico e social. Também por essa via a intensificação do uso de mecanismos eletrônicos para controle dos indivíduos coloca poderes imensuráveis nas mãos de governos cuja lógica de atuação está longe de ser o bem comum.
A racionalidade neoliberal consolidada nas últimas cinco décadas atingiu amplas esferas da existência humana, moldando o conteúdo e a forma de atuação dos governos, empresas e pessoas[5]. Imprimiu uma lógica de curto prazo generalizada, intensificando a concorrência nas organizações e entre sujeitos. Ampliou-se a interdependência econômica entre países ao mesmo tempo minimizando na agenda dos mesmos as questões atinentes ao bem estar social e aos riscos globais do modelo de sociedade.
Conforme Dardot e Laval (2020), a pandemia em curso, apesar de afetar a solidariedade social no seu sentido mais básico, não representa o fim do Neoliberalismo e de sua lógica, como alguns tem preconizado. Ela apenas explicita as questões de fundo, obrigando empresas, governos e pessoas a mudarem, que seja no curto prazo, a forma como operam. De qualquer modo, enseja uma oportunidade para refletirmos acerca dos limites do modelo de sociedade que conhecemos, incapaz de garantir adequadamente e a todos, a provisão de serviços públicos básicos como a saúde e a educação. Os serviços públicos, de acordo com os mesmos autores, tendem a ser insuficientemente atendidos sob o princípio da soberania dos Estados. Por se guiarem pelo princípio da solidariedade social a sua dimensão pública não se vincula necessariamente a amplificação do poder do Estado ou a uma aposta anacrônica na sua provisão como um favor do Estado.
Considerando também a hipótese mais provável de não ocorrer significativa reversão da mundialização financeira e produtiva, a sua própria extensão, o significativo fluxo de bens, serviços, capital e de pessoas, faz com que a chance de ocorrência de novas pandemias se amplie. Esse é mais um fator a exigir uma nova direção global e sustentável para a provisão de serviços públicos básicos como a saúde, não redutível a saídas estritamente nacionais e de cunho estatal.
Não obstante, o que temos visto na prática mundial é o protagonismo do Estado Soberano, inclusive nos países que escolheram adotar medidas menos enérgicas. Dentre o leque de medidas de controle governamental aparecem os diferentes graus de isolamento social, envolvendo fechamento de escolas e de locais de trabalho. Não se questiona, neste texto, a eficiência dessas medidas governamentais e de curto prazo para minimizar a disseminação da doença, fato comprovado pela experiência dos países que já passaram por fases mais agudas da epidemia bem como por estudos recentes[6].
O objetivo deste texto é, tomando o fechamento das escolas como um dado, identificar algumas contradições já em curso na Educação e o seu acirramento com a adoção dessa medida, favorecendo um aprofundamento do direcionamento segundo a lógica do mercado e da concorrência. No que tange ao curto prazo destacaremos três frentes de manifestação: a relação entre o perfil socioeconômico das famílias e o fechamento de escolas/faculdades/universidades; a relação das organizações ligadas à educação (governamentais e privadas) entre si e delas junto aos professores; e, particularmente, os impactos do fechamento de escolas sobre os mecanismos usuais de pesquisa científica. A partir dessas frentes, serão esboçadas possíveis tendências de longo prazo, cujo desenlace numa direção diferente da mais provável depende do perfil de atuação e da capacidade de mobilização dos movimentos sociais e militantes pró-educação.
Estimativas da UNESCO indicam que no ponto máximo, em 25 de abril de 2020, perto de 1,7 bilhão de estudantes, da pré-escola ao ensino superior, tinham sido afetados pelo fechamento de escolas em função das políticas de isolamento social adotadas pelos governos. Para termos uma noção da generalização dessa medida pelo mundo a mesma fonte nos mostra que ela chegou a abarcar 90,2% dos estudantes e 191 países. Não as adotou apenas a Bielorússia, o Cazaquistão e o Turcomenistão e os casos de adoção localizada também foram poucos: os EUA, a Rússia, a Austrália e a Groelândia. A China reverteu recentemente sua posição para um fechamento localizado. No Brasil, envolve quase 53 milhões de estudantes sendo 5,1 milhões da pré-escola, 11 milhões do ensino fundamental, 23 milhões do ensino secundário e 8,6 milhões do ensino superior.
Quando se discute a relação das famílias com o fechamento das escolas devemos considerar que famílias são organizações multifacetadas, a depender do nível de renda, de aspectos sociais, políticos e culturais. Pobreza, violência doméstica e demais problemas pré-existentes tendem a se intensificar em momentos de crise. De qualquer forma, para as famílias como um todo, o custo econômico de manter as crianças em casa tendeu a se elevar. Nicola et al (2020)[7], citando estudos da Brookings Institution, sugerem que o fechamento de escolas nas maiores cidades dos EUA correspondeu a um custo médio de U$ 142 por estudante. Em Nova York, em particular, o custo de fechamento das escolas por quatro semanas foi estimando em U$ 1,1 bilhão. Na mesma fonte cita-se que o fechamento de escolas por uma semana em Taiwan, em 2009, por conta do surto de H1N1, fez com que 27% das famílias não pudessem trabalhar, sendo que 18% perdeu renda.
No caso específico de crianças de famílias de baixa renda, os efeitos são ainda mais devastadores. Muitos pais não são dispensados do trabalho, como tende a ocorrer no Brasil com empregadas domésticas, faxineiras, jardineiros, porteiros e, no mundo todo, trabalhadores em atividades essenciais, notadamente na área de saúde. Além desses, os trabalhadores na informalidade, que atingem cerca de 40% da PEA brasileira, não tem essa “opção”, necessitando seguir trabalhando para garantir renda para sua família. Ao ônus de continuar trabalhando, quando é possível, se agrega o fato de necessitarem de apoio familiar ou incorrerem em gastos adicionais para o cuidado com suas crianças.
Daí a importância de políticas emergenciais de renda mínima como tem sido adotadas em muitos países. No Brasil tais políticas já foram decididas mas não ainda totalmente operacionalizadas, estando muitas dessas famílias ao desamparo.
Além da questão econômica, nas famílias de baixa renda em que os pais seguem trabalhando, as crianças em casa estão sob maior risco de contaminação. Dados até 17 de abril para a cidade de São Paulo, acerca do perfil dos contaminados pela COVID-19 por bairros, gênero e faixa de idade, mostram que quem mais se contamina são mulheres de 30 a 39 anos, seguidas das de 40 a 49 anos e as de 20 a 29 anos e os óbitos ocorreram principalmente nos bairros periféricos[8]. Além disso, a dependência das famílias de baixa renda da alimentação oferecida nas escolas para as crianças amplia os riscos de faltar condições mínimas de sobrevivência para as mesmas. Por outro lado, tendo em vista que a escola funciona, em muitos casos, como espaço protetivo dos direitos das crianças, também se eleva o risco de agressões domésticas às mesmas.
Outra questão para esse tipo de famílias é a adoção de tarefas escolares em casa sendo que os pais muitas vezes não estão presentes e, os que estão, nem sempre tem o preparo para dar o apoio que a criança necessita. Mas também em famílias de classe média/alta o fato dos pais trabalharem em regime de home office pode dificultar o acompanhamento das crianças. Agrega-se a isso o uso do ensino digital. Em função da desigualdade social, segmentos significativos de estudantes, especialmente nas escolas públicas, não têm acesso doméstico à internet e muito menos a posse de computadores/celulares[9]. Esse problema se reproduz para o ensino superior, num contexto de um número significativo de estudantes universitários de baixa renda. Isso complica o uso das aulas remotas, generalizadas em faculdades privadas.
Uma segunda frente que esse texto quer destacar é o impacto do fechamento das escolas nas organizações educacionais e junto aos professores. Ampliou-se em muito a pressão para a adoção de formas remotas de ensino visando garantir um mínimo de continuidade das atividades escolares. Como exemplo, nas escolas públicas do município de São Paulo foi firmada uma parceria com a Google e a Foreducation EdTech para o uso de uma ferramenta tecnológica complementar denominada G Suite for Education[10]. Com isso passou-se a contar com ferramentas digitais gratuitas para serem utilizadas pelos estudantes, em casa e de maneira complementar, durante o enfrentamento da pandemia. A iniciativa deve atingir estudantes de todas as etapas (Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos), envolvendo mais de 1 milhão de estudantes e 80 mil professores da Rede Municipal.
De acordo com informações do site da prefeitura a implantação dessas ferramentas tecnológicas envolve dois elementos: a criação das Contas Google Educacionais para docentes e estudantes, usando-as como canal de comunicação entre estudantes, famílias e educadores; a formação técnico-pedagógica para os profissionais de TI e gestores da secretaria de educação e transmissões orientadoras para os professores da Rede Municipal. A ferramenta complementa o material pedagógico impresso, elaborado pelos educadores da secretaria, enviado pelo correio e também disponível online[11].
Não obstante as críticas que se possa fazer ao uso dessas tecnologias educacionais remotas, elas não são reprodutíveis num quadro nacional de grande assimetria econômica municipal. Não contando com recursos nem mesmo com a cultura de uso desses mecanismos, escolas e mesmo universidades públicas, podem ficar paralisadas por um tempo significativo ou funcionar em grande nível de precariedade[12], por não ter as condições mínimas para adotá-las. Isso amplifica a desigualdade de acesso à educação, com favorecimento a estudantes de famílias de maior renda e de escolas privadas. Por outro lado, as pressões políticas dos governos e da sociedade sobre a rede governamental ampliam as chances da extensão das horas de trabalho de professores, para os quais muitas das responsabilidades ligadas à viabilização do ensino remoto tendem a ser transferidas. Ao mesmo tempo, o trabalho não visível estimula propostas de redução de salários, de despedida de temporários além da busca de saídas pela via da contratação de serviços privados, conforme fez a prefeitura de São Paulo.
Em contraste, nas escolas privadas, muitas previamente já envolvidas com o uso de tecnologias digitais, as condições técnicas e formativas para garantir a continuidade das suas atividades escolares tendem a ser viabilizadas de forma mais rápida. Nessas instituições o fato de ocorrer pagamento de mensalidades pressionou para a adoção do ensino remoto. Mesmo que de forma por vezes precária generalizaram-se o uso de seus sites e mesmo de ferramentas habituais em contatos empresariais como é o caso do Zoom. Por outro lado, em países como Dubai, houve pressão das famílias para reduzir o valor das mensalidades, sendo que 13,900 pessoas fizeram petições para reduzir em 30% mensalidades de escolas privadas (NICOLA ET AL, 2020).
Devemos ponderar que o uso abrupto das tecnologias de ensino remoto pelas escolas e a independência do estudante frente ao espaço escolar e à mediação dos professores tendem a explicitar seus limites e dificuldades. Aulas e reuniões remotas nem sempre são eficazes, e nos casos em que são, requerem a disseminação de formatos pedagógicos novos. Também tendem a explicitar os limites do ensino doméstico, mostrando que ele não funciona em muitos casos tendo em vista as condições da maioria das famílias.
Mesmo com todos esses senões, a disputa entre escolas públicas e privadas – e dessas últimas entre si -, tende a se ampliar de forma rápida com franca desvantagem para as públicas. As universidades federais, em particular, tem vivenciado cortes de recursos desde 2014 e estão sendo forçadas a absorver tecnologias de difícil generalização em função das inadequadas condições técnicas e da desigualdade de renda dos estudantes.
A última frente que destacaremos nesse texto são os impactos do fechamento de faculdades e universidades sobre o modelo de pesquisa científica corrente. Na pós-graduação as medidas de fechamento atingem aos grupos de pesquisa, muitos deles pausados ou suspensos por problemas de financiamento e/ou pelo redirecionamento dos professores e fundos para as áreas correlatas a COVID. No Reino Unido, The National Funding Body for Health Research interrompeu todas as pesquisas que não são na temática COVID-19 para permitir que os profissionais da saúde retornassem a linha de frente. Nos EUA ação similar foi adotada pelo National Institute for Health. As pesquisas fora dessa área, especialmente humanidades, paralisaram totalmente na maioria das instituições com a universidade de Harvard, por exemplo, fechando todos os laboratórios na Faculty of Arts and Sciences (NICOLA ET AL, 2020).
Isso também aconteceu no Brasil, nas universidades federais, com a manutenção de atividades de pesquisa presencial apenas nos casos relativos à COVID-19, sendo as demais precariamente mantidas no modelo remoto. Adicionalmente, eventos científicos foram cancelados ou postergados para o segundo semestre.
Devemos destacar que as conferências são fundamentais para a pesquisa científica em muitas áreas, servindo para disseminar e trocar conhecimento e estabelecer vínculos colaborativos entre pesquisadores e instituições. Algumas conferências tem sido feitas online mas esse não é o modelo de produção de ciência que a humanidade tem praticado até o momento, sendo menos efetivo para o estabelecimento de redes e contatos informais usuais. Com isso tem-se prejuízo à pesquisa que, no caso do Brasil, é realizada predominantemente por universidades governamentais, sendo uma esfera adicional de ônus sobre as mesmas.
Identificadas tais frentes na Educação, cuja dinâmica já sofria forte influência da lógica da concorrência e das saídas isoladas, podemos observar que o fechamento das escolas e universidades tende a estimular ainda mais tal lógica, sendo os seus efeitos mais intensos quanto maior o impacto sobre a qualidade do ensino, maior o tempo que as organizações de ensino fiquem paralisadas e quanto mais demore a descoberta e uso massificado de uma vacina para a COVID-19.
Em outras palavras, deixadas ao sabor dos governos, da lógica de mercado e das saídas isoladas, as pressões em curso tendem a potencializar as contradições já existentes na Educação em âmbito mundial e no Brasil. No que tange ao Ensino o risco é a generalização rápida de um modelo caracterizado pelo aligeiramento dos conteúdos, pela ampliação do uso conjugado do ensino presencial e digital, remoto ou não, e pelo aumento da exclusão dos mais pobres, favorecendo as escolas privadas e reduzindo o acesso à Educação de qualidade. E o simples combate ao uso das tecnologias digitais remotas está longe de reverter esse quadro.
Após o período mais agudo da pandemia, nada de diferente ocorrendo no âmbito das pessoas e organizações, a tendência é a simples manutenção da razão de mundo atual que transfere ao individuo e às organizações a responsabilidade para resolver as dificuldades. Isso sob um quadro de agravamento dos diferenciais entre o público e o privado e entre ricos e pobres. Por isso concordamos com Dardot e Laval que consideram que serviços públicos essenciais como saúde e educação precisam de uma nova direção. A pandemia nos deixou claro os limites da provisão de serviços públicos de saúde por meio da atuação isolada dos governos, ou guiados pelo mercado ou pela visão convencional de soberania nacional. Também na Educação a ajuda mútua entre pessoas, organizações e países, numa atuação coordenada e cooperativa, a produção conjunta do conhecimento necessário são a saída mais promissora para a maioria. Mas essa lógica dos Comuns Mundiais não virá dos mercados nem dos governos. Sem uma mobilização política das pessoas e organizações para além da lógica habitual e a ampliação das pressões sociais daí decorrentes, a mudança de direção não prevalecerá.