Por Gustavo Mello e Henrique Braga
Professor titular do Departamento de Economia da UFES, Paulo Nakatani comenta, na entrevista a seguir, sobre os desdobramentos socioeconômicos da crise da sociedade capitalista, acelerada pela pandemia do COVID-19. Em especial, o professor chama a atenção, por um lado, para as medidas “draconianas”, que já estavam em curso e serão intensificadas, de piora das condições de trabalho, da redução dos salários e do flagelo do desemprego. Por outro, para o papel do Estado que atua para salvar a acumulação de capital, explicitando sua “unidade orgânica” com esse último.
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À luz das contradições do capitalismo contemporâneo gostaríamos que você analisasse a relação entre a pandemia de Covid-19 e a profunda crise econômica mundial que ela inaugura.
Essa pandemia surgiu em um contexto em que o capitalismo contemporâneo se encontra mundializado, em um estágio de superacumulação de capital que se concentra na esfera financeira e acumulando-se principalmente em diferentes formas fictícias. Além disso, a concentração da riqueza e da renda em escala mundial, e particularmente no Brasil, chegou a um estágio extremamente elevado, constituindo sociedades nas quais uma parcela importante de suas populações são desnecessárias, supérfluas, para a reprodução do capital, tanto como força de trabalho quanto como mercado consumidor. Temos, então, como consequência, a enorme pressão ao aumento da taxa de exploração da força de trabalho, pela desregulação das relações de trabalho, sua precarização e a destruição das instituições, das políticas e programas sociais.
A crise de 2007-2008 apareceu como se fosse uma crise financeira, com a desvalorização maciça do capital monetário portador de juros em suas diferentes formas fictícias. Mas, a rigor, teve seu fundamento no mercado imobiliário (construção e venda de novos imóveis) dos Estados Unidos, quando as famílias mais pobres não conseguiram mais manter o pagamento das prestações dos financiamentos que haviam contratado, devido ao aumento da taxa de juros. A resposta à crise foi uma brutal intervenção do Estado através dos bancos centrais, o Federal Reserve nos EUA, o Banco Central Europeu, o Banco da Inglaterra, o Banco do Japão, que se destacaram pela política de facilidades monetárias (quantitative easing) com a maciça criação monetária para o resgate de capitais particulares, bancos e empresas diversas e a redução das taxas básicas de juros, geralmente negativas em termos reais. Essa intervenção possibilitou a retomada de atividades produtivas e a recuperação das formas fictícias do capital monetário portador de juros, em poucos anos. Um dos resultados foi a conversão de parcelas do capital fictício na forma da dívida pública. Os impactos dessa crise espalharam-se por todo o mundo e se estenderam no tempo, e algumas economias se mantiveram, em média, relativamente estagnadas, até este ano de 2020. Sem contar que, nos países mais avançados, a reprodução do capital em geral estava necessitando de uma nova rodada de desvalorização, que vinha sendo anunciada por muitos estudiosos.
A eclosão da pandemia de Covid-19 surgiu nesse contexto de uma nova crise potencial que ainda estava latente, adicionando novas variáveis.
A primeira variável foi a busca de manutenção da legitimidade dos governos que deviam, ou deveriam, atender às necessidades sanitárias e de saúde da população, pois, em termos concretos, se refere à própria possibilidade de morte de centenas e milhares de pessoas. Para tanto, os diferentes governos, em diferentes momentos, decretaram o confinamento mais ou menos maciço da população, e alguns mais outros menos, o controle e o bloqueio de viagens, tanto internas quanto internacionais. Em primeiro lugar, esta medida interrompeu o fluxo e o movimento do capital nas atividades de comércio, de serviços não essenciais e parte da produção material. Em segundo, bloqueou a circulação do capital em suas formas autonomizadas de capital comercial, capital monetário e capital produtivo. Este bloqueio, tem como consequência a suspensão de atividades de produção de valor e mais valia, de realização, ou venda, das mercadorias produzidas e o desemprego em massa dos trabalhadores.
A segunda variável foi a demonstração efetiva de que as sociedades submetidas ao modo de produção capitalista não têm como objetivo as necessidades humanas, mas a própria reprodução do capital. Se aceitamos que as determinações de confinamento são mais adequadas à redução das mortes, uma parcela daqueles que são contrários estão se manifestando por todas as partes. O retorno dos trabalhadores para a produção de valor e mais valia é mais importante do que a vida de uma parte da população.
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Diante do colapso da produção e dos mercados financeiros pelo mundo afora, criou-se um pretenso consenso em torno da necessidade da intervenção do Estado, com vistas a minimizar os efeitos da crise e reduzir sua duração. Como você avalia o sentido geral das medidas estatais que estão sendo implementadas? Com base na experiência histórica recente é possível especular sobre seus efeitos de curto e médio prazo?
O debate a favor ou contrário à intervenção do Estado na economia refere-se ao campo da economia burguesa, entre ortodoxos e heterodoxos. Seu fundamento é a separação entre a esfera da economia e da política ou do público e privado. Para os marxistas, Estado e Capital constituem uma unidade orgânica e não tem sentido discutir se a intervenção é necessária ou não, a não ser ao nível da aparência. A gênese das diferentes formações econômico-sociais capitalistas, a formação do Estado capitalista e o desenvolvimento das relações capitalistas de produção e das classes sociais fundamentais ocorreram ao mesmo tempo.
As ações estatais sobre as unidades particulares de capital, no curso das crises, foram sendo desenvolvidas historicamente, com teorias, modelos e instrumentos, em particular a partir da grande depressão dos anos 1930. Assim, as medidas de política econômica resolvem em parte as contradições próprias ao capital em geral através de medidas voltadas a certas unidades particulares do capital, mas engendram novas contradições. Dessa maneira, no período entre o final da Segunda Guerra Mundial e a década de 1970, conhecido como os anos dourados, o sistema mundial foi relativamente regulado e controlado pelo Estado. Foi um período também chamado de economia mista, em que aparentemente as crises haviam sido superadas. Entretanto, o capitalismo não deixou de funcionar de forma cíclica, e as elevadas taxas de crescimento deveram-se fundamentalmente à reconstrução dos capitais após a maciça destruição física dos capitais e da riqueza acumulada antes da guerra, principalmente da Europa e Japão, e à gigantesca destruição da força de trabalho.
As medidas de política econômica adotas na crise atual são condicionadas pelas condições atuais da acumulação capitalista, além dela estar sendo diagnosticada como uma crise sanitária. Por um lado, observamos novamente a ação estatal voltada para o sistema de crédito, em particular a criação de moeda, o quantitative easing, para reduzir a destruição do capital em suas formas fictícias, o mercado acionário e de dívidas privadas, e para preencher os espaços na circulação dos capitais particulares, através do crédito a taxas de juros reduzidas ou subsidiadas e da manutenção de uma parte da renda dos trabalhadores. Por outro lado, a caracterização da crise como uma crise sanitária, traz como fator de legitimação a suposta ajuda aos pobres.
No curto prazo, as medidas de política econômica deverão amenizar o impacto da crise do capital. Deve reduzir a destruição das unidades particulares de capital e amenizar os efeitos dos bloqueios e supressão de parte das cadeias produtivas. No longo prazo, tanto a concentração do capital anteriormente existente, quanto as desigualdades na distribuição da riqueza e da renda não serão reduzidas, ao contrário pode tornar-se ainda mais aguda. Isso porque a gigantescas unidades particulares de capital, as grandes corporações, têm recursos acumulados que não só permitem que se mantenham como tendem a receber mais benefícios das políticas econômicas. Mas, as micro, pequenas e médias unidades de capital deverão sofrer mais intensamente os impactos da crise, muitas destas unidades deverão desaparecer ou passar por um novo processo de centralização.
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O que essas medidas estatais revelam sobre a relação entre Estado e economia?
Elas revelam a unidade orgânica entre Estado e Capital. Revelam, igualmente, que a gestão do capital e da força de trabalho são realizadas por grupos e instituições estatais que não têm conhecimento das determinações fundamentais do modo capitalista de produção. Mas essas determinações fundamentais aparecem mediadas pelo processo histórico que produziu em cada sociedade uma relação conjuntural de forças entre as classes sociais e pelas diferentes formas de comportamento, sejam elas solidárias ou egoístas. Esses comportamentos aparecem, tanto no tratamento médico imediato da parcela da população infectada pelo vírus, quanto nas mais diversas ações de apoio e distribuição de doações aos mais necessitados. Aparecem, também, no comportamento da parcela que defende seu capital particular, suas rendas individuais e as formas e padrões de vida mais sofisticados da sociedade de consumo capitalista.
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Você considera que estamos diante do colapso do neoliberalismo? E, nesse caso, parece plausível uma espécie de revitalização do keynesianismo e do Estado de bem-estar social?
O neoliberalismo como ideologia e política econômica não deverá entrar em colapso. Isso porque respondem às necessidades do capital no estágio atual do capitalismo. O neoliberalismo não significa uma oposição à chamada intervenção estatal, sempre que necessário, há intervenção estatal para salvar capitais particulares em momentos de crise. O neoliberalismo significa que a forma e os instrumentos de intervenção foram modificados. As desregulamentações, chamadas de três D (desregulamentação, desintermediação e descompartimentalização) exigiram uma profunda e feroz intervenção estatal, que não serão revertidas, pois significariam amarras e limites à exploração capitalista.
O keynesianismo e o Estado de bem-estar social foram desenvolvidos em um momento particular da história, a reconstrução do pós-guerra na segunda metade do século XX. Por um lado, pelas necessidades da própria acumulação de capital e por outro, pela aguda luta de classes no pós-guerra, combinada com a necessidade de recuperação da força de trabalho destruída durante a guerra. Ao contrário do que foi muito disseminado, os sucessos dos anos dourados do pós-guerra não foi, a rigor, resultado de políticas econômicas keynesianas, mas à retomada da acumulação de capital determinado pelas condições concretas da reconstrução no período.
Para o capital, o bem-estar das classes trabalhadoras não tem nenhuma importância, salvo quando, no plano concreto, as condições de vida destas classes possam leva-las até uma situação de desobediência civil e insurreição. No momento atual, as frações de classe mais extremadas defendem condições para acabar com o bem-estar das classes trabalhadoras, isso quando não defendem políticas para exterminá-las.
A ideia de uma revitalização do keynesianismo encontra muitos problemas. É comum atribuir esse adjetivo à uma política de gastos públicos, com déficits orçamentários, que trariam benefícios à classe trabalhadora. Considero que esse ponto de vista é um equívoco. Os diferentes governos, nas condições atuais da crise do capital, aguçada pelo novo coronavírus, estão efetuando gastos públicos para atender à conjuntura particular da disseminação do vírus. Muitos poderão desmontar o sistema criado especialmente para atender aos imperativos da acelerada infecção de enormes massas populacionais em busca de uma legitimidade, mesmo que não tenham nenhuma noção desta busca. Ademais, o keynesianismo, de Keynes, nunca avançou no sentido de realmente superar as condições subalternas da classe trabalhadora. Keynes esperava que o mercado, comandado pelos capitais, atingisse um estágio do que poderíamos chamar de capitalismo bonzinho, que reduzisse a jornada de trabalho e criasse um tempo livre para as pessoas. Não tinha ideia do que isso era para os trabalhadores, pois exemplifica com as madames de seu círculo pessoal.
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Estaríamos, ao contrário, diante de limites intransponíveis do próprio capitalismo? Nesse caso, quais as perspectivas que se abrem?
Não estamos em limites intransponíveis para o capitalismo. A unidade Estado e Capital deverá propiciar as condições de reprodução ampliada do capital, em particular em suas formas fictícias e acentuar a exploração da força de trabalho. É a maior parte da sociedade que deve estabelecer os limites ao capital. Infelizmente não é o que se observa no momento. Do ponto de vista da sociedade e da maioria da população mundial, o capitalismo já atingiu seus limites há décadas e deveria ser superado por uma nova forma de organização social.
Infelizmente, considero que as perspectivas que se abrem não são muito animadoras, se acompanhamos análises e interpretações sobre a crise atual. Uma parte importante de analistas e intelectuais não estão colocando a questão da superação do capitalismo. Aliás, esta questão não é necessariamente aquela que responde aos interesses das grandes massas de trabalhadores. Além disso, massas gigantescas de trabalhadores estão se defrontando com o desemprego e desaparição das possibilidades de obtenção de alguma forma de renda em todas as atividades chamadas ou de informais ou eufemisticamente de empreendedorismo.
Em termos do capitalismo, é mais um momento de uma crise extremamente grave no movimento cíclico do capital. Mas não representa, necessariamente uma situação intransponível para o capital. Os diferentes governos estão atuando, não só com respostas à crise sanitária, mas com ações para a recuperação e reconstituição do capital em geral e das principais unidades particulares. Esta crise está permitindo que, para a reprodução do capital, mais medidas draconianas de repressão aos trabalhadores, de redução de suas condições de vida e a supressão de muitas décadas de vitórias nas relações trabalhistas estejam sendo efetivamente pulverizadas em curtíssimo prazo.