Rafael Moraes
Professor do Departamento de Economia CCJE/UFES
Populus, meu cão
O escravo, indiferente, que trabalha
E, por presente, tem migalhas sobre o chão
Populus, meu cão
Primeiro, foi seu pai
Segundo, seu irmão
Terceiro, agora, é ele, agora é ele
De geração, em geração, em geração
Antonio Bechior (1977)
[1]Quando as recentes mortes causadas pelo novo Coronavírus se contam aos milhares[2] e frente a elas o Presidente da República reverbera um estrondoso “e daí”[3], é inegável um sentimento de indignação. Ainda que uma terça parte da população brasileira pareça seguir endossando tudo o que faz e diz o presidente, percebe-se o crescimento da revolta diante de sua, digamos, falta de sensibilidade, frente à morte de milhares de brasileiros.
Antes de nos perguntarmos, contudo, qual a razão da falta de empatia presidencial e de nos revoltarmos diante da naturalização da morte em nome do progresso econômico, deveríamos nos perguntar como foi possível chegarmos a esta situação. Seriam o presidente e seus seguidores, especialmente odiosos, mesmo quando comparados aos neoliberais que até ontem cerravam fileiras a seu lado? Ou seria Bolsonaro apenas a face mais despudorada dentre os entusiastas de uma estrutura social que se acostumou a matar? Nos parece que a última alternativa é mais fiel à história e este breve texto se propõe a demonstrar isso.
Quase nada do que se escreverá aqui deve ser visto como uma especificidade brasileira. O fato de tomarmos nosso país como objeto de análise não se deve a nenhuma característica especial. Quase tudo o que se conclui aqui poderia ser dito sobre qualquer outro país. É certo, contudo, que “do lado de baixo do equador” todo terror é desprovido de pudor. Aqui vemos mais de perto e melhor.
Se procurássemos defender que a naturalização da morte em nome da economia, que o presidente parece reverberar, fosse uma especificidade de seu nefasto governo, portanto, totalmente incompatível com a sociabilidade capitalista moderna, teríamos que demonstrar que tal fenômeno não aparece em outros momentos de nossa história, tratando de uma infeliz exceção à regra. Tal engenho, seria certamente uma tarefa inglória. O fato é que a naturalização da morte não aparece ocasionalmente em nossa história, mas se impõe como a característica mais marcante de nossas vidas desde a formação disso que chamamos Brasil.
Não se trata de questionar aqui a existência em si da morte, enquanto uma condição própria a tudo o que é vivo, mas sim de analisar a forma como a morte do outro foi sendo assimilada como uma condição necessária à sobrevivência do organismo social. Não seria possível reduzir esta forma de sociabilidade que se alimenta da morte ao sistema capitalista, tendo em vista que a morte como resultado do embate entre diferentes grupos sociais está presente ao longo de toda a história da humanidade. A novidade advinda a partir desta nova organização social centrada no capital está na precificação da morte, ou seja, na justificativa monetária para o acúmulo de cadáveres. E nesta História, o Brasil ocupa um capítulo central.
Constituída como uma empresa mercantil destinada a ofertar recursos naturais aos recém criados Estados europeus[4], a economia brasileira já nasceu contaminada pelo pecado original do extermínio dos índios. A despeito das dificuldades em se avaliar o número de habitantes do território onde hoje é o Brasil, antes da chegada dos portugueses, as estimativas mais conservadoras[5] apontam que viviam aqui em torno de 2,5 milhões de nativos. Após a ocupação, em meados do século XVII, essas populações não chegavam a 10% desse número, dizimadas por conflitos, trabalhos forçados e, principalmente, por diversas doenças trazidas pelos europeus, frente às quais não tinham imunidade. O massacre de pelo menos 2 milhões de nativos[6], em nome do ingresso do Novo Mundo na economia mercantil europeia foi nosso batismo em uma história repleta de cadáveres produzidos pelo progresso econômico.
Ao mesmo tempo em que nativos eram mortos, o sucesso da produção açucareira, e depois mineira e cafeeira, demandava cada vez mais braços. O sequestro e posterior tráfico de africanos para trabalharem nas Américas atendeu a essa necessidade do capital europeu. De 1514 a 1853 chegaram ao Brasil por volta de 5,1 milhões de homens e mulheres negros escravizados. Não bastasse a tragédia contida apenas neste número, ele oculta uma faceta das mais cruéis da história do tráfico negreiro durante o período colonial. Os dados referentes ao transporte de cargas humanas entre a África e o Brasil registram uma diferença de quase 800 mil homens entre o número de embarcados nos portos africanos e o total desembarcado no Brasil. Esta diferença reflete o grande número de negros que embarcavam, mas não chegavam vivos ao destino, tendo seus corpos atirados no mar[6]. Ao longo do século XIX, com as pressões inglesas pelo fim do tráfico, o número de mortes durante a viagem seria ainda mais elevado, pois tornou-se comum a prática de lançar ao mar toda a carga de homens ainda vivos, destruindo assim qualquer prova que pudesse levar a um processo por descumprimento à proibição ao tráfico[8]. O fato de o tráfico não ter cessado mesmo diante desta revoltante prática só reforça a percepção do enorme volume de recursos angariados pelos comerciantes de gente. A morte em suas formas mais apavorantes era apenas um detalhe em meio a tanto ouro.
A situação dos que chegavam aos portos de Recife, Salvador ou Rio de Janeiro certamente não era muito superior à daqueles que ficavam pelo caminho. Uma vez desembarcados no Brasil, os negros esperavam por horas ou dias nos diversos mercados de homens espalhados pelas regiões portuárias destas cidades até serem comprados e levados a seu local de trabalho. A maioria dos escravizados no Brasil trabalhavam em fazendas, minas ou engenhos. O extenuante trabalho praticado nestes campos fazia com que a morte por excesso de trabalho, doenças ou mesmo resultado da violência dos senhores fosse a regra. Em meados do século XIX, dizia-se que após três anos da compra de um lote saudável de homens, pouco mais de um quarto dele ainda permaneceria vivo nas fazendas. Em torno de 88% dos nascidos sob a escravidão não passavam da infância. A violência física era a lei nas relações entre senhores e negros escravizados. Os casos de rebeldia eram punidos com brutalidade exemplar e algemas, argolas, palmatórias, troncos, chicotes, anjinhos[9], e, no limite, a morte eram instrumentos recorrentes no controle da força de trabalho[10]. O sangue dos negros no eito ou no tronco era o combustível das moendas, das minas e dos cafezais. Como nenhum alquimista ousaria imaginar, no Brasil colonial se aprendeu a transformar sangue em ouro. A morte seguia do nosso lado, oculta e invisível em meio à opulência. Era o custo do sucesso da empresa colonial.
Liberto da submissão política à Coroa Portuguesa desde 1822, em 1850 o Brasil contava com pouco mais de 7 milhões de habitantes, dos quais 2,5 milhões eram negros escravizados. Em 1872, quando a população brasileira chegava aos 10 milhões, o número de trabalhadores cativos havia sido reduzido a 1,5 milhão e às vésperas da abolição era ainda menor, pouco mais de 700 mil. Essa redução no contingente de escravizados entre 1850 e 1888 decorreu principalmente de alforrias concedidas por acordo[11], das mortes[12] e das fugas[13] crescentes, especialmente na década de 1880. Neste contexto, a Lei Áurea longe de ser uma redenção aos negros, significou o abandono pela parcela mais dinâmica da aristocracia rural de um sistema agonizante[14]. Como consequência disto, após a libertação definitiva daqueles que seguiam como escravos em 13 de maio de 1888, nada lhes foi oferecido como recompensa pelos anos de trabalho forçado. Deixados à sua própria sorte, estes homens e mulheres viram-se da noite para o dia “livre[s] do açoite da senzala, [e] preso[s] na miséria da favela”[15].
“Livres”, os libertos do 13 de maio se juntavam aos milhões de sertanejos, caboclos, negros e mulatos, que erravam país a fora em busca de um pedaço de terra, de um cortiço ou ao menos de uma causa pela qual viver. Perdidos em meio à miséria absoluta, se multiplicavam pelos rincões do Brasil, santos e demônios, heróis e bandidos, como ícones condensadores das últimas esperanças de um povo. Filhos da fome, tanto os seguidores do messianismo religioso de Antonio Conselheiro quanto os do banditismo contestador de Virgulino Lampião pagaram com suas vidas pela ousadia de desafiarem a ordem, o latifúndio, a integridade do território e a lei. Era a contribuição do Estado Republicano para engrossar o rastro de sangue de quilombolas, Cabanos, Sabinos e Balaios[16] produzido pelos fuzis imperiais.
Derrubado o Império, o Brasil adentrava o século XX como uma República liberal. A mão de obra livre, composta em sua maioria de imigrantes, permitia o grande crescimento das lavouras no interior do país. O dinamismo da economia impulsionado pelo café tornaria a então pequena cidade de São Paulo o maior centro econômico do país em poucos anos. A pobreza, a espoliação e a morte seguiriam de mãos dadas com o progresso. No campo e nas cidades, condições de trabalho extenuantes seguiram matando aos milhares.
No maior centro urbano do início do século XX, a cidade do Rio de Janeiro, a perseguição aos negros, aos seus cultos e à sua cultura se inseria em um contexto de “modernização” e de busca de uma nova moral do trabalho pós-escravidão. Apontados como vadios, pouco propensos ao trabalho livre e indisciplinados estes homens foram aos poucos sendo expulsos para periferia da cidade, passando a ocupar regiões suburbanas ou encostas de morros. A miséria aparecia então nos morros, nos subúrbios ou nas prisões, já que a criminalização das formas de vivência de negros foi utilizada como recurso para a construção de uma sociabilidade tida como “moderna”[17].
Sem garantia nenhuma de acesso à moradia, saneamento, educação e trabalho, estas pessoas se tornaram uma massa totalmente marginalizada frente ao progresso econômico. Em lugar dos castigos da escravidão, a fome; em lugar da morte pelos capitães do mato, a morte pelas forças pública de justiça; em lugar do trabalho incessante no eito, o trabalho precário nas piores ocupações.
Pelos rincões do país a situação não era diferente. Enquanto o café produzia reis e barões em São Paulo, ao norte se produziam campos de concentração. Em meio à seca nordestina, a pobreza levava à fome e com ela ao desespero. Temerosos com o que hordas de famintos pudessem realizar, entre 1915 e 1933 foram construídos diversos campos de isolamento de retirantes no interior do Ceará para impedir sua chegada à capital, Fortaleza. Estes campos que seguiram existindo ao longo da primeira metade do século XX, produziram cadáveres aos milhares. A distância entre os escolhidos para viver e os escolhidos para morrer era tão grande que um novo cemitério foi construído apenas para receber essas vítimas. Nem mesmo mortos, os pobres retirantes eram dignos de se juntarem à “civilização”[18].
O “progresso” continuava e, em plena década de 1950, durante o auge da industrialização brasileira, no maior centro econômico do país, na Favela Canindé, às margens do rio Tietê, uma catadora de papel apontava a insensibilidade de Juscelino frente à pobreza e escrevia para espantar a fome[19]. Na mesma época, muito longe dali, no engenho da Galileia, em Vitória de Santo Antão, a falta de caixões para enterrar seus mortos era o estopim para uma rebelião no interior de Pernambuco. A ordem não podia tolerar rebeliões e, não bastasse a seca e a pobreza, os fuzis impunham o veredicto a cabras marcados para morrer[20] no Sertão Nordestino. A economia seguia de vento em popa. Os números do PIB eram mais que suficientes para que as mortes e o sofrimento de negros, pobres e sertanejos fossem rapidamente esquecidas. Em meio aos pátios transbordados de automóveis recém produzidos, de estradas rasgando de Norte a Sul o país, no sertão e nas favelas as vidas eram secas e as mortes invisíveis.
Aos rebeldes sempre são guardados requintes de crueldade. Nestes casos a morte apenas não basta, é essencial o exemplo. O extermínio físico aqui cumpre uma função disciplinadora, ele deixa de ser apenas natural e legítimo, mas passa a ser necessário para a manutenção da ordem. Neste contexto, o sadismo e o terror passam a ser aceitos como parte da engrenagem que garante o funcionamento do sistema. Ao longo dos 25 anos de ditadura militar no Brasil, vimos de forma bem clara como essa máquina opera. Mais carros, mais estradas, mais energia justificavam e ocultavam mais mortes. Mortes de pobres e negros nos sertões e nas favelas, mortes de índios de Norte a Sul e mortes e torturas de rebeldes nos porões. A economia ia bem, mas o povo ia mal[21]. O bolo crescia, mas não era fatiado[22]. O “milagroso” crescimento econômico dos anos 1970 contrastava com a miséria crescente nos campos e nas cidades. O arrocho salarial e o aumento da concentração de renda[23], somados às mais de 400 mortes[24] e desaparecimentos praticados pelo Estado, são a face oculta dos anos dourados da economia nacional. A morte seguia sendo justificada em nome da prosperidade econômica.
No final da década de 1980, a crise econômica fez com que os governos militares não fossem mais capazes de alimentar o brilho nos olhos de uma elite já acostumada a matar[25]. A tortura e a morte nas prisões voltaram ao seu lugar de origem, aos lugares de onde ninguém as vê, às periferias, morros e favelas. Após a redemocratização, em meio a uma nova onda de “modernização”, a democracia, agora neoliberal, seguiu convivendo muito bem com a morte. Enquanto o Plano Real causava euforia ao conter a aceleração inflacionária, empresários aplaudiam a abertura comercial[26] e a engrenagem assassina continuava produzindo cadáveres aos milhares.
Estima-se que em 1995, mais de 22 milhões[27] de pessoas estivessem abaixo da linha da extrema pobreza no Brasil. Isso significa que um em cada sete brasileiros não tinha renda suficiente para consumir a quantidade de calorias considerada necessária para sua sobrevivência. Esse número era menor que os 28,7 cidadãos nestas condições registrados em 1993. A queda deveu-se certamente a contenção da aceleração inflacionária que corroía a renda das famílias mais pobres. A redução na miséria advinda da nova política econômica pós-ditadura, no entanto, parou por aí e, em 2002, o número de miseráveis seguia em 23,8 milhões.
A convivência com estes números assombrosos não se fez sem a naturalização de uma realidade que se mostrava cada dia mais clara diante dos olhos. A pobreza deixava os sertões e os morros e chegava aos centros das principais cidades do país, na forma de um crescente contingente de miseráveis vagando e vivendo pelas ruas[28].
O crescimento da violência era a outra faceta desta tragédia social. “Quem tem fome tem pressa” era o slogan da “Ação da Cidadania”[29], organizada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. A pressa dos famintos muitas vezes podia levar à subversão da ordem no que ela tem de mais sagrado, a propriedade privada. Neste contexto, o Estado sempre é convocado para deter indivíduos, reintegrar posses e, no limite, matar, afinal, sempre que preciso for uma “metralhadora alemã ou de Israel estraçalha ladrão que nem papel”[30]. Era possível naturalizar a pobreza e a miséria, mas não suas consequências que colocassem em risco à ordem. Aos pobres era imposto morrer calado.
Para garantir o sucesso dessa higienização social, depurando a sociedade dos que ousavam se revoltar, chacinas se espalharam pelo país. Em 1992, 111 reclusos da Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Penitenciária de Carandiru, foram mortos após a invasão da prisão pela Tropa de Choque da Política Militar para “conter” uma rebelião[31]. Em 1993, oito adolescentes foram assassinados por policiais militares que atiraram nos mais de 70 moradores de rua que dormiam em frente à Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro[32]. Um mês depois, outros 21 jovens foram assassinados por policiais e ex-policiais militares, durante a madrugada, na favela de Vigário Geral, zona Norte do Rio de Janeiro[33]. Em 1996, policiais militares do estado do Pará assassinaram 19 trabalhadores rurais sem-terra, em Eldorado dos Carajás[34].
Por mais que estas formas de ação possam ser tratadas como excessos de setores radicalizados das forças públicas de segurança e de suas milícias paramilitares que já se formavam neste contexto, não é possível entender o avanço destas práticas, sem percebermos uma crescente aquiescência social frente a elas. No fundo tais fenômenos sempre foram vistos com feridas dolorosas e difíceis de serem encaradas, mas considerados necessários para a manutenção da ordem. Tal percepção não se cristaliza, contudo, sem corroer ainda mais as estruturas orgânicas de uma sociedade já dividida de cima a baixo. Conviver com todas estas mortes sem colapsar a ordem social, exige que suas vítimas sejam colocadas em um local a parte. A elas é reservado o lugar do “outro”, aquele que não importa, que é descartável para o organismo social[35]. Foi assim, com o indígena “bárbaro e violento”, foi assim com o negro “selvagem e desumanizado”, foi assim com “mestiço de sangue viciado”, foi assim com trabalhador nacional “vadio e desqualificado”, tem sido assim, com os marginais, “incapazes de viver em sociedade”. Constrói-se um enredo em que todos estes podem morrer, já que nada produzem, são estéreis do ponto de vista econômico e ainda deformam a ordem social.
Por todas estas razões, tais chacinas não foram casos isolados. Em 2020, matar e morrer em nome do progresso econômico segue prática comum. São crescentes os movimentos em prol da facilitação à posse de armas, ao mesmo tempo em que cresce o número e o poder de milícias de matadores de aluguel. Nada mais próximo do Brasil atual que a constatação de Achille Mbembe quanto à realidade de diversos Estados africanos no final do século XX, nos quais “milícias urbanas, exércitos privados, exércitos de senhores regionais, segurança privada e exércitos de Estado proclamam, todos, o direito de exercer violência ou matar.[36]”
Na zona rural, a expansão da fronteira agrícola segue matando e escravizando em nome do sucesso do agronegócio. Segundo dados do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2019 ocorreram 32 execuções no campo[37], a maior parte delas de lideranças sindicais e de trabalhadores rurais. Já são 247 assassinatos registrados pela CPT desde 1985. No mesmo ano, segundo a CPT, denúncias levaram à descoberta de 880 pessoas em condições análogas ao trabalho escravo no Brasil, das quais 745 foram libertadas[38]. A solução destes casos nem sempre é fácil, tendo em vista as enormes dificuldades e riscos envolvidos na tarefa daqueles que se dispõem a fiscalizar e denunciar os casos de exploração do trabalho. O destino destes agentes de fiscalização muitas vezes também é a morte[39]. A estas mortes somam-se tantas outras originadas pela expansão agrária que leva à proliferação de conflitos entre latifundiários e pequenos produtores e/ou indígenas[40]. Os recentes cortes no número de fiscais e auditores do trabalho, o sucateamento e dirigismo ideológico em órgãos como Ibama, ICMBio[41], Funai[42] e Incra, assim como a criminalização dos movimentos sociais, como o MST[43] apontam para um genocídio de proporções ainda maiores nos próximos anos.
Em pleno século XXI, esse clima de terra sem lei também é a regra nas maiores metrópoles do país, onde se mata e se morre indiscriminadamente. Segundo o Atlas da Violência 2019, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 houve 65.602 homicídios no Brasil. Foram 180 mortes por dia, em média. Estas mortes não despertam atenção. Elas são mais que invisíveis, elas são naturalizadas, por tratarem em geral de jovens negros e pobres moradores das periferias das grandes cidades. Dos assassinatos ocorridos em 2017, 75,5% vitimaram indivíduos negros[44]. Quando aparece na grande imprensa, basicamente em jornais sensacionalistas, não raramente esse extermínio é endossado por um discurso de limpeza social: “um bandido a menos”, especialmente quando a morte é causada em conflitos com a polícia.
Nos últimos anos, como consequência do acirramento da disputa por poder entre grupos criminosos, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), tem sido recorrente a execução de grupos rivais dentro de unidades prisionais[45]. Nestes casos, a morte, mesmo qualificada por uma brutalidade terrível, choca ainda menos. Tornamo-nos uma sociedade sádica, despudorada que não apenas aceita estas mortes, mas vibra com elas. A morte deve entrar em casa, tomar café e almoçar todos os dias com cada um de nós e não mais assustar. Tal sadismo toma forma a partir do crescente número de programas jornalísticos sensacionalistas, sucessos de audiência, centrados no espetáculo da violência. O medo da violência não desperta indignação, mas alimenta o ódio ao “outro”, reforçando a cisão social. Neste sentido, percepção reproduzida nos últimos anos de uma sociedade dividida entre “cidadãos de bem” e “marginais” aparece como a versão mais moderna da polarização entre a Casa Grande e a Senzala.
Se as mortes reveladas por cadáveres decepados e corpos carbonizados[46] apresentados nestes programas não causam terror, o que dizer daquelas que ocorrem silenciosamente nas milhares de casas sem saneamento básico, em hospitais sem médicos e nas ruas. O acesso à saúde tão vivamente lembrado nos últimos dias não é um problema novo para o brasileiro pobre, que depende do Sistema Único de Saúde. Seus problemas passam pelo insuficiente número de médicos e sua desigual distribuição pelo país, pela carência de leitos hospitalares, pela demora no agendamento de consultas e exames, dentre outros[47]. O crescimento da taxa de mortalidade infantil[48] em 2016, após anos em queda, indica o quanto as políticas de austeridade fiscal dos últimos anos têm comprometido ainda mais o fragilizado sistema de saúde brasileiro.
O que dizer então das milhares de mortes de hoje e de amanhã causadas pela destruição ambiental, pela poluição, por agrotóxicos, pelo desalojamento de comunidades, pela destruição de rios e mares, pela enxurrada de lama causada pelo rompimento criminoso de barragens, pelo deslizamento de construções em encostas, dentre tantas outras mortes evitáveis. Morrer e matar não tem sido um problema há anos. Por que seria agora?
Assim, olhar para trás é condição necessária para entender por que diante das filas em cemitérios para enterrar mortos, da escassez de caixões em algumas cidades e de leitos hospitalares em outras, alguns insistem em se preocuparem mais com a “morte dos CNPJs”. Não se passa impune por uma história assentada sobre cadáveres. De 1500 até aqui, não apenas aprendemos a conviver com eles, como aprendemos a aceitar o quanto são importantes para nossa evolução. “As pessoas morrem”. “A economia não pode parar por 5 ou 7 mil mortes”. Ninguém quer “arrastar um cemitério de mortos nas [suas] costas”. “A roda da economia precisa voltar a girar”. São pensamentos exalados por cabeças de hoje como poderiam ter sido ditos há 20 anos ou em qualquer dia de nossa história.
Dentro deste contexto, a atual política eugenista de Bolsonaro, ainda que na contramão de praticamente todo o mundo, não paira no ar. Ela se sustenta em um aparato ideológico que vê a morte do outro como uma redenção, uma solução final, em nome da evolução social. Sua adesão a esta ideologia tampouco se deu agora, ela já se mostrava clara ao longo de toda a sua carreira política. Já era possível percebê-la quando, ainda deputado, Bolsonaro defendia em 1999, a necessidade de “matar uns 30 mil”, começando pelo então presidente Fernando Henrique, em “trabalho que o regime militar não fez” ou quando dedicou a um torturador seu voto pelo impeachment de Dilma Roussef, em 2016, para ficar em apenas dois exemplos[49].O fato de ainda assim, grande parte da população, a começar por suas elites econômicas, não ter enrubescido em endossar seu discurso durante a campanha eleitoral diz muito mais sobre nós, enquanto sociedade, do que sobre ele.
Se isso tudo é verdade, ainda que se contrapor à política de morte representada pelo atual governo seja hoje um imperativo, qualquer tentativa de remover cirurgicamente o presidente do posto em que se encontra, não nos transformará em uma sociedade melhor. Para tanto, se faz necessário muito mais que isto. Para iniciarmos a construção de um futuro menos cruel para depois crise, será necessário, desde já, começarmos a nos desinfectar de um vírus muito pior que o que hoje nos assola, do qual temos sido contaminados em massa hereditariamente há séculos, e que nos tem impedido de ver no outro uma parte de nós mesmos. Que se chame a esta doença de capitalismo, ou de qualquer outro nome que se queira dar, o fato é que precisamos reunir esforços urgentes para encontrarmos coletivamente a sua cura.