Vinícius Vieira Pereira
Prof. Departamento de Economia da UFES
Tutor do Programa Pet Economia/UFES
Na primeira parte desse artigo, apresentamos um contraponto à ideia bastante recorrente de que, após passada a crise do coronavírus, deveríamos voltar à normalidade da vida pré-crise. Questionamos o que chamamos de normalidade e apresentamos alguns esforços no sentido de construir cenários alternativos de organização econômica e social futuras, distintos daquele que ora rege a vida na sociedade capitalista contemporânea. Agora é a vez de desconstruir uma segunda “verdade”, que está implícita na forma como a grande mídia vem noticiando a causa da pandemia e da crise econômica dela resultante, isto é, que uma vez provocada por um microrganismo, um vírus, a tragédia que ora nos oprime teria, portanto, sua origem em um fator exógeno ao sistema socioeconômico em que vivemos. Logo, tratar-se-ia de um elemento estranho, externo à sociedade capitalista e, desse modo, suas causas deveriam ser buscadas não no modo como produzimos a nossa vida material e dispomos das forças produtivas, mas, sim, no campo das ciências da natureza, da biologia. Esse pensamento permite, inclusive, referendar o argumento de que tudo ia muito bem, até que um vírus…
Atribuir causas aos fenômenos sociais leva-nos, obrigatoriamente, à construção de determinadas inferências em relação às possibilidades observáveis. Assim, elencamos e definimos as hipóteses que consideramos válidas como sendo as causas mais prováveis. É nesse momento que a escolha de um fator externo como sendo a causa principal do fenômeno emerge como a explicação mais fácil e conveniente. No caso da Covid-19, que expõe a vergonha da barbárie do capitalismo contemporâneo e a fragilidade de sua estrutura social, a atribuição de uma causalidade exógena torna-se a alternativa mais confortável, em especial, para os apologetas do capitalismo neoliberal, seus beneficiários e boa parte da imprensa mundial que não tardam em laçar mão de um velho jargão da ortodoxia econômica e afirmar que a pandemia deve ser tratada como um choque externo. E, nesse caso, caberia ao próprio mercado apontar os mecanismos de correção adequados para um retorno menos turbulento ao equilíbrio e à antiga normalidade. Porém, nada mais desonesto com a realidade dos fatos do que sustentar tal afirmação. Basta apenas um olhar pouco mais crítico.
Começaremos afirmando que a Covid-19 não caiu do céu como um meteoro. Não se trata de um incidente aleatório, ou de um evento causal originado fortuitamente na esfera das ciências naturais. O coronavírus e a sua capacidade de disseminação e destruição originaram-se como parte dinâmica e indissociável do nosso atual sistema social, onde a organização da produção da nossa vida material, ou, a forma como vivemos e produzimos nossa subsistência, obedece aos estímulos que emanam da necessidade de valorização do capital e não das necessidades vitais para a preservação do bem-estar dos indivíduos e a conservação do nosso habitat.
Alinhado a esse pensamento, o professor Jorge Grespan, da USP, afirma que a pandemia apenas potencializou os problemas e as contradições já presentes em nossa sociedade e que estes constituem a essência do modo capitalista de viver. Para ele, os últimos trinta ou quarenta anos de neoliberalismo apenas exacerbaram os antagonismos sociais já existentes no capitalismo, a partir do momento em que se destruiu a capacidade dos governos de gerir com competência os sistemas públicos de saúde e intervir com rapidez e eficiência na produção de mercadorias e serviços para a população em geral. Portanto, para ele, a crise do coronavírus é uma crise endógena ao capitalismo e, assim, suas causas devem ser buscadas na forma de vida e produção em que vivemos[1].
Fazendo um paralelo histórico, a peste negra, que dizimou de um terço à metade da população da Europa ocidental em meados do século XIV, também não pode ser tratada como uma causa externa da crise que marcou o início do fim da sociedade feudal europeia. A peste bubônica, transmitida por uma bactéria ainda ignorada pela ciência até aquele momento, foi gestada no seio de uma sociedade em plena transformação, cujas contradições em processo se transformavam em antagonismos insuperáveis frente ao desenvolvimento do modo feudal de produção. Parecia haver chegado o limite de reprodução material daquele modelo societário.
Muitos foram os fatores internos ao modo feudal de produção que corroboram esse argumento, uma vez que foram responsáveis pela origem das condições propícias ao surgimento e à disseminação da peste bubônica naquela região. O crescimento do número de cidades e a intensificação das feiras, do comércio e das trocas no feudalismo europeu se, por um lado, significaram uma maior aproximação entre as comunas e o estreitamento das relações humanas e de intercâmbio econômico[2], por outro, exigiram a aceleração dos processos de produção de mercadorias, equipamentos e moradias num ritmo muito superior à capacidade de reprodução do sistema feudal[3]. Os avanços tecnológicos registrados na Baixa Idade Média, como os observados nas velas, remos e mastros das galeras para navegação, a rotação de três campos, a carroça de eixo móvel com quatro rodas, o atrelamento de animais, a tração equina, e a canga frontal para os bois, a pavimentação de estradas, o moinho e a roda d’água, bem como o moinho de vento, todos voltados à moagem de cereais, o poço artesiano, a chaminé, a roca em lugar do fuso, a vela e o círio, o alambique clássico para destilação, o álcool e o carbonato de potássio, o relógio mecânico de peso, a arquitetura gótica[4], entre tantos outros, ao mesmo tempo em que ampliaram a capacidade de produção por parte da sociedade, foram incapazes de compensar a depredação ambiental, o esgotamento das matérias primas e a exploração agrícola extensiva e predatória resultantes, de modo que os recursos naturais foram tornando-se escassos e, por fim, exaurindo-se[5]. Além disso, as técnicas de armazenamento e estocagem de grãos, bem como os problemas existentes para a circulação da produção, incompatíveis com o aumento da produção, favoreciam a perda rápida de gêneros perecíveis; a extração da madeira, essencial para construção civil, fabricação de ferramentas, equipamentos e como combustível, bem como a busca por outras fontes de energia provocavam graves desequilíbrios ambientais[6]. A derrubada de florestas e o desmatamento acelerado, a poluição de rios e córregos, a drenagem de regiões pantanosas influenciavam na recorrência das tempestades de areia, dos longos períodos de seca e das chuvas torrenciais. O esgotamento do solo e da natureza, dessa forma, somava-se a esse cenário e respondia, por sua vez, com a queda na produção, enquanto o crescimento populacional pressionava a disputa pelo excedente agrícola e pelas terras aráveis disponíveis, gerando conflitos sangrentos na luta pela terra[7]. Áreas de enormes vazios demográficos passaram a conviver com regiões intensamente povoadas, marcadas pelas aglomerações humanas[8].
Frente a esse processo, a necessidade da ampliação do território econômico e da conquista de novas terras férteis, aráveis ou ricas em metais preciosos provocou um primeiro movimento de expansão mundial. Mesmo as Cruzadas, que embora se constituíssem em expedições militares calcadas em uma disputa religiosa, mostraram, ao longo dos séculos XII e XIII, tratar-se de uma guerra contra o oriente muçulmano pela conquista de áreas econômica e politicamente estratégicas. Pode-se arriscar que daí tenha resultado um primeiro e importante processo de aproximação econômica, comercial e financeira entre as civilizações ocidental e oriental, onde acordos comerciais, trocas monetárias, emissões de letras de câmbio, contratos de fretes e seguros, que tornavam tão lucrativas as “sagradas” expedições para as classes nobre e burguesa, criaram um fluxo perene de mercadorias e pessoas através da Eurásia[9], movimento que, ao ser profundamente estudado pelo historiador Jaques Le Goff, levou-o a identificar, nas práticas e na mentalidade racionalista dos mercadores banqueiros medievais, características semelhantes às dos capitalistas que surgiriam alguns séculos depois[10]. O mundo parecia se integrar em velocidade e intensidade jamais vistas até então.
Mas, se a dinamização do mercado externo e o comércio internacional encurtavam as distâncias, facilitavam o acesso às novas mercadorias e aos serviços e criavam novos hábitos de consumo para as nobres elites encasteladas e endinheiradas, também possibilitavam a disseminação mundial de micro-organismos e doenças antes peculiares apenas a uma determinada região. Afinal, as classes produtoras, formadas pelos pequenos artesãos e operários das oficinas urbanas, servos e, também, pelos camponeses miseráveis que viviam nas terras comunais às margens dos feudos, encontravam dificuldades para se manterem alimentadas e aquecidas, tornando-se organismos frágeis e vulneráveis em um ambiente hostil e favorável à disseminação de moléstias.
Em suma, a prosperidade e o desenvolvimento econômico que brindaram a sociedade feudal na Europa ocidental a partir do século XI, ao ponto deste período ser equiparado ao de uma revolução comercial[11], também criaram as condições que, três séculos depois, transformar-se-iam em antagonismos capazes de gerarem a própria crise e a destruição dessa sociedade. Crise que se manifestava na impossibilidade de se garantir as condições mínimas de vida, alimentação, higiene e saneamento básico nos núcleos urbanos cada vez mais numerosos e nos feudos mais prósperos. Uma horda de seres fragilizados e expostos à fome, à desnutrição, às moléstias e epidemias que porventura surgissem. Paralelamente, uma medicina pública abandonada, praticamente inexistente, que misturava parcas observações científicas com rituais xamanísticos e influências espirituais[12]. O modo de produção feudal aproximava-se de seu fim e havia produzido, ao longo de três séculos, do XI ao XIV, abundância e vulnerabilidade simultaneamente. Criara, internamente, as causas de sua própria destruição, entre elas, as condições favoráveis à epidemia da peste negra.
Ora, no seio dessa sociedade feudal, o surgimento e a proliferação da bactéria Yersinia pestis, transportada dos ratos para os humanos por meio das pulgas, não podem ser tratados como eventos externos ao modelo societário característico da Baixa Idade Média. Do mesmo modo que o novo coronavírus, que atinge agora a espécie humana e se alastra com tamanha força e facilidade, não pode ser dissociado da forma como vivemos e produzimos nossa vida material nos dias atuais. Se hoje, os que defendem a causação externa da pandemia buscam nos chineses o alvo preferido, na era medieval, a culpa pela peste negra recaiu sobre os judeus, os leprosos e os estrangeiros que, de modo geral, migravam para a Europa Ocidental. Como vemos, a história se repete, mudam-se apenas as personagens.
O capitalismo contemporâneo tratou também de produzir suas próprias contradições, ou as condições necessárias para que surtos pandêmicos de doenças agressivas como a Covid-19 se disseminem de modo letal. Não precisamos de causas externas, pois se quisermos encontrar as causas dessa tragédia, devemos buscá-las na dinâmica interna dos mecanismos de reprodução da sociedade capitalista. Em sua essência, uma sociedade que se move em torno de um sistema cujo funcionamento se pauta nas vantagens e no lucro privados. Como meios de alcançá-los, temos o mercado, a concorrência, a livre iniciativa e o consumo de massa como promessas de felicidade. Baseado no liberalismo econômico clássico, qualquer planejamento da produção social, ou interferência do estado em relação às necessidades sociais, é peremptoriamente rechaçado. O interesse individual e a autossatisfação das necessidades, aliados à mentalidade racional e maximizadora de utilidades do self-made man, fazem do mercado o lócus do prazer ou da dor, e o único alocador eficiente de recursos. O mercado é quem define do que precisamos. Tal sociedade dispensa, inclusive, a interferência do estado.
Assim, em nome do livre mercado, mercantilizou-se tudo, a medicina, os cuidados com a saúde e a vida das pessoas, os alimentos, a educação, a natureza, o meio ambiente. Tudo passou a servir aos negócios e a obedecer rigorosamente aos critérios da contabilidade e dos lucros. Os processos produtivos se adequaram a essa lógica única que norteia a vida da nossa sociedade. Nenhum estado, nenhum governo que esteja sob o domínio do capital e do livre mercado poderá se imiscuir nos assuntos da produção. Segundo essa lógica, o estado deve eximir-se da tarefa de fazer políticas agrícolas e de manter sistemas públicos de saúde, por exemplo. Deve abster-se da educação e da pesquisa, e deixar a construção de moradias por conta dos interesses privados do mercado imobiliário e da construção civil. Deve evitar gastos com hospitais, laboratórios e centros de pesquisa, afinal, o interesse privado é capaz de fazer o mesmo com maior competência. Os medicamentos devem ser produzidos sobre critérios puramente mercadológicos. Disseminou-se até mesmo que o estado sério e o governo comprometido com a ética e o povo não interferem nas cadeias produtivas, não direcionam incentivos para setores de interesse público, não se intrometem nas cadeias de suprimentos e nem na logística da distribuição da produção, ao contrário, preocupam-se apenas em manter as regras do jogo bem claras e suas contas em equilíbrio. Os gastos públicos devem estar sempre em níveis compatíveis com impostos bem baixos. O Estado verdadeiramente preocupado com o seu povo, segundo o mesmo discurso, deve deixar todas as decisões nas mãos dos capitalistas, pois esses, na luta por seus interesses egoístas, acabarão por levar bem-estar e felicidade a todos. Ainda que o façam sem saber que o fazem, afinal, vícios privados se transformam, nessa sociedade mágica, em benefícios públicos[13]. O resultado disso é que o capitalismo, ao longo dos séculos, assim como vimos no caso do feudalismo, produziu antagonismos que ora parecem insuperáveis e insustentáveis.
As políticas de cunho neoliberal, baseadas nos manuais de economia ortodoxa, e as teorias que justificam a necessidade do equilíbrio nas contas públicas e da austeridade fiscal a qualquer custo obrigaram os governos a abandonarem muitos dos setores ligados aos serviços públicos de cuidados básicos de atenção à saúde, alimentação, moradia, saneamento básico e higiene. O resultado é que as pesquisas e a produção de bens ligados à saúde pública, os serviços preventivos e gratuitos ficaram no mais completo abandono. Sucateados foram os hospitais públicos e as UPA’s, as populares unidades de pronto-atendimento, únicas aliadas dos mais pobres nos momentos de aflição.
Segundo afirma o professor Jorge Grespan, na mesma entrevista já citada, a prova maior das consequências dessas políticas liberalizantes é que os países que mais estão sofrendo com a crise da Covid-19 são aqueles que, proporcionalmente às suas estruturas produtiva e populacional, mais aprofundaram as condições acima listadas. EUA, onde sequer um programa de auxílio de saúde público e gratuito para a parcela mais pobre da população foi aprovado pelo Congresso; Itália e Espanha, que sofreram sobremaneira as exigências de austeridade fiscal impostas pela União Europeia como forma de enfrentar os efeitos da crise de 2008. E para além desses citados por Grespan, não podemos deixar de citar a própria “fornalha chinesa”, Wuhan, assim chamada por se tratar de um dos quatro maiores centros industriais da China, e onde a produção se pauta num autêntico modelo concorrencial internacional, apesar de se tratar de um país socialista, governado por um partido comunista.
Recente reportagem da revista Forbes alertou para um fato que comprova como a estrutura produtiva na sociedade capitalista contemporânea é uma das principais causas da disseminação da pandemia. Inconformado com a incapacidade da economia de redirecionar recursos produtivos e gerar equipamentos de proteção individual na velocidade requerida pela rapidez de contágio da Covid-19, o colunista em questão, especialista em logística de produção, considerava inaceitável o fato de não conseguirmos, após meses de pandemia, produzir cotonetes de algodão para testes de coronavírus, máscaras e álcool gel na quantidade necessária para mitigar os efeitos da doença. E afirma, categoricamente, que a estrutura da produção capitalista mundial precisa ser mais eficiente, resiliente e flexível, capaz de se adaptar e atender às demandas sociais no momento em que isso se fizer necessário, além de gerar menos poluentes, o que somente seria possível com uma mudança radical nas cadeias de suprimentos, que deveriam se tornar mais simples e curtas, capazes de reagirem mais rapidamente às crises. [14].
De fato, é inconcebível que uma indústria que se aproxima de sua quarta revolução industrial, a dos robôs, da internet das coisas, da inteligência artificial, da vida digital, não tenha capacidade de produzir cotonete de algodão, máscaras simples de pano e elástico, álcool, equipamentos médicos de proteção. Mas, o problema reside não na capacidade de se adequar, como afirma o especialista da Forbes, mas no interesse de fazê-lo! O que adiantaria modificar toda a cadeia produtiva para atender uma eventualidade? E quando a pandemia passar? Terá sido o tempo suficiente para amortizar o capital investido? E os lucros dos bancos e dos acionistas, terão sido eles atendidos de maneira satisfatória? Talvez, a pergunta que devêssemos fazer é: que tipo de sociedade o modo capitalista de produção forjou? Se tentarmos responder a essa questão, chegaremos bem próximos das causas reais da pandemia. Todas elas internas à economia capitalista.
Ora, o uso da medicina e da farmacologia com o propósito de atender aos interesses do mercado subordinou os profissionais de saúde, os laboratórios, as universidades e os centros de pesquisa, os hospitais e as fábricas de medicamentos, bem como os gastos em pesquisa e inovação aos critérios puramente financeiros e mercadológicos. A contraface desse processo foi o completo abandono dos sistemas públicos de saúde, incapazes de prover atendimento hospitalar, cuidados preventivos e medicamentos gratuitos quando a tragédia bate à porta. Com o agravante de que o crescimento desordenado das cidades e a precária condição de alimentação, moradia e saneamento básico nas suas zonas periféricas estimulam hábitos propícios à maior propagação de doenças, como a causada pelo novo coronavírus.
Enquanto os laboratórios de medicamentos trabalham exaustivamente para lucrarem com as doenças, a racionalidade econômica ordena o abandono do investimento em pesquisas sobre prevenção. Para especialistas no setor, “a indústria trilionária dos medicamentos não necessariamente atende aos interesses dos pacientes ou de governos, nem mesmo em tempos de pandemia”. Garantindo acesso desigual a remédios mundo afora, “os investimentos em pesquisa priorizam sempre a medicação de uso contínuo e os princípios ativos mais rentáveis do que antibióticos e vacinas”. Além disso, os mesmos especialistas são categóricos em afirmar que o coronavírus expôs um lado obscuro do mercado farmacêutico, qual seja, “o elevado grau de concentração e internacionalização do setor[15], onde um pequeno punhado de poderosas empresas guiam seus negócios movidos por interesses financeiros, e não pelo interesse em proporcionar bem-estar frente às necessidades de bens e serviços peculiares ao campo dos cuidados de saúde[16].
Mas as causas internas da pandemia não param por aí. O intenso processo de urbanização, inerente ao capitalismo industrial e acelerado pela especulação imobiliária, desenvolveu hábitos alimentares, de vida e de higiene que tornam nossa saúde e nosso sistema imunológico vulneráveis ao ataque de microrganismos mais resistentes. Os alimentos produzidos pela lógica do menor custo-benefício e os remédios ingeridos diariamente, via automedicação e estimulados pelas publicidades lucrativas do tipo “pague 2 e leve 3”[17], aliados às rotinas de trabalho que privilegiam o aumento da produtividade, tronaram-se fatores de risco à saúde das pessoas. Afetando a resistência do corpo em momentos de ameaça viral ou bacteriana, esse modo de vida deixou os indivíduos mais expostos ao contágio de moléstias variadas. Assim, tornaram-se comuns entre nós as doenças funcionais, respiratórias e cardiovasculares, a obesidade, a depressão, a carência de vitaminas e proteínas, a diabetes, entre outras que, agora, são elencadas entre as comorbidades patogênicas e prognósticas que afetam grande parte da população mundial. Sem falar na agricultura, ou melhor, no agronegócio, que abusa do uso de agrotóxicos e se concentra na produção de matérias primas para o mercado externo em lugar da preocupação com a soberania alimentar e com a qualidade do alimento que vai para as mesas das famílias.
Aliada inseparável dessas causas, a intensificação dos fluxos de pessoas e mercadorias entre as mais diferentes regiões do planeta e a rapidez e dinamicidade desses deslocamentos criaram as condições necessárias para a rápida transformação de um surto em epidemia e, desta, para pandemia. De natureza intrínseca e indissociável do sistema econômico e social em que vivemos, a busca incessante por lucros faz com que a essência do capital seja a de dar vazão à sua vocação, expandir-se sobre a maior área possível do globo, reduzindo o tempo de produção e circulação com o intuito de completar o ciclo de valorização do investimento no menor tempo possível. O capital, seja em sua forma industrial, comercial ou financeira, está constantemente derrubando barreiras e desmanchando limites geográficos, diplomáticos e institucionais. Forçando a redução de tributos e a desregulamentação sobre seus movimentos e transações, seus detentores têm exigido, cada vez mais, a flexibilidade das regras que limitem a livre mobilidade de mercadorias e investimentos. E esse processo de integração de pessoas e coisas que confere ao capitalismo sua face cosmopolita precisa se ampliar constantemente, como forma de garantir a manutenção das taxas de lucro, mesmo em momentos críticos. Mas, essa natureza do capitalismo tem suas consequências contraditórias. O primeiro caso confirmado de coronavírus no mundo ocorreu em 17 de novembro de 2019, na província de Hubei, cuja capital, Wuham, importante centro comercial e industrial da República Popular da China, ficou marcada como a cidade de origem da Covid-19. Naquele momento, tratava-se de uma pessoa de 55 anos de idade[18]. Passados seis meses, já são mais de cinco milhões de pessoas infectadas em 182 países no mundo e, aproximadamente, 300 mil mortes confirmadas, mais de 20 mil delas só no Brasil, de acordo com dados de 21 de maio, sem contar os recorrentes problemas de subnotificação. Portos, aeroportos e entradas de cidades estão sendo fechados como forma de conter a disseminação ainda maior do vírus. Mas, barrar a disseminação do vírus significa o mesmo que impedir a valorização do capital, processo suicida para a forma de organização da sociedade contemporânea.
A destruição da natureza e seus biomas deve também ser listada entre as causas da Covid-19, assim como a venda ilícita de animais silvestres que desrespeita as leis protetoras dos animais e eleva a vulnerabilidade às doenças zoonóticas em virtude da destruição de habitats selvagens[19]. Devastação de floretas e áreas de preservação, mudanças climáticas, assoreamento de rios e pesca predatória são apenas alguns fatores internos que têm levado à migração forçada de espécies selvagens para regiões próximas às de criação de animais para consumo humano. As evidências das recorrências de processos semelhantes são muitas. Em reportagem bastante elucidativa, Juliana Gragnani, da BBC, mostra em detalhes como o coronavírus pode estar repetindo o mesmo processo que levou o vírus Nipah, na Malásia, em 1998, a infectar e levar à morte centenas de pessoas na Malásia, Cingapura, Bangladesh e Índia, a partir do momento em que a migração de morcegos famintos levou-os a uma área próxima à de criação de porcos e o vírus, até então presente apenas no morcego, contaminou os porcos, sofreu mutação no organismo suíno e transformou-se em um vírus letal para os seres humanos. Richard Ostfeld, do Cary Institute of Ecosystem Studies, dos EUA, é um dos dez especialistas que, na mesma matéria, afirma que o desmatamento, a ampliação de abertura de áreas para a agricultura e pecuária, e os agrupamentos estranhos de espécies que nunca haviam ocorrido na natureza estão provocando o surgimento de doenças na raça humana derivadas de outras espécies. E Ostfeld conclui que “nós estamos negligenciando o cenário maior (…) pois a alta densidade populacional dos seres humanos e a intensa conexão entre indivíduos e animais silvestres favorecem o surgimento e espalhamento das doenças”. Segundo os especialistas ouvidos na reportagem, devemos conservar a biodiversidade, levando-a mais a sério. “Não deveríamos subsidiar indústrias que não se preocupam com os resultados provocados por suas atividades, afinal, a ciência está nos dizendo que devemos reavaliar nosso relacionamento com a natureza”[20]. Enfim, o fato de não se respeitar os habitats naturais dessas espécies e transformar tudo em arena de lucros são causas inequívocas da pandemia que ora devasta a humanidade.
Portanto, chegamos a uma conclusão muito semelhante a que havíamos chegado na primeira parte dessa matéria, publicada neste blog, ou seja, ou alteramos o nosso modo de viver ou continuaremos gerando causas internas para fenômenos cruéis e trágicos como o da Covid-19. O cineasta israelense, Amos Gitai, assinou, recentemente uma petição que circula em nível mundial entre artistas e cientistas cuja palavra de ordem é “Não à normalidade”, petição que havia se iniciado no começo de maio, por iniciativa da atriz francesa, Juliete Binoche. A conclusão à qual Gitai chega é a de que precisamos entender qual é a mensagem indireta que esse vírus está tentando passar para a humanidade, de modo geral. Além disso, segundo ele, “esta pandemia exige uma profunda reflexão sobre o nosso modo de viver”, pois “no mundo do depois” não deveria haver lugar “para práticas que destroem a Amazônia”[21]. O primeiro passo para isso, no entanto, é aceitar que precisamos parar de produzir as causas de nossa própria destruição.
Na terceira e última parte deste artigo, trataríamos, inicialmente, de analisar criticamente outro argumento bastante difundido nos primeiros meses da pandemia, o de que a Covid-19 era uma doença democrática, ou seja, atingia igualmente e sem fazer distinções, ricos e pobres, brancos e negros, trabalhadores e patrões. No entanto, a evidência dos fatos falou por si mesma e, aos poucos, foi se tornando cada vez mais difícil e desonesto sustentar tal afirmação. Assim, ao invés de desconstruir essa falsa verdade, uma vez que ela mesma já foi solapada em toda a sua base de sustentação pela evidente e irrefutável desproporção com que a tragédia vem atingindo a grande maioria da população pobre de modo muito mais rigoroso do que o faz com a parcela bem menor e menos frágil de nossa sociedade, nossa argumentação se pautará em demonstrar essa característica trágica e cruel da pandemia que, associada à “eficiência” do mercado, ao abandono das funções por parte do estado, à desigualdade econômica e à indiferença social, tem levado dor e sofrimento à classe trabalhadora e aos desempregados, aos moradores de rua e aos encarcerados, aos pobres, negros e marginalizados de nosso país![22]
Até breve…
NOTAS
[2] PIRENNE, Henri. História econômica e social da Idade Média. São Paulo, Mestre Jou, 1982
[3] ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1991
[4] CALAINHO, Daniela Buono. História medieval do ocidente. Editora Vozes Limitada, 2019.
[5] WALLERSTEIN, Immanuel. O sistema mundial moderno. Porto: Afrontamento, 1990.
[6] BLOCH, March. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1982
[7] ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1991
[8] DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo. São Paulo: Abril, 1985
[9] HUBERMAN, Leo. A História da riqueza do homem. Rio de janeiro: Zahar, 1981
[10] LE GOFF, Jacques. Mercadores e banqueiros da idade média. Lisboa: Gradiva, 1982
[11] LE GOFF, Jacques. O Apogeu da Cidade Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
[13] MANDEVILLLE, Bernard. A fábula das abelhas ou vícios privados e benefícios públicos. São Paulo: Unesp, 2017
[16] SANTOS, Sílvio César Machado. Melhoria da equidade no acesso aos medicamentos no Brasil: os desafios impostos pela dinâmica da competição extra-preço. [Mestrado] Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública; 2001. 180 p. Disponível em: https://portalteses.icict.fiocruz.br/ transf.php?script=thes_chap&id=00004304&lng=pt&nrm=iso
[19] Doenças zoonóticas, as que passam de animais para humanos. Disponível em: https://mar semfim.com.br/doencas-zoonoticas-passam-de-animais-para-humanos/.
[21] Para cineasta Amos Gitai, a pandemia exige uma reflexão sobre nosso modo de viver. Disponível em: https://www.msn.com/pt-br/noticias/mundo/para-cineasta-amos-gitai-a-pandemia-exige-uma-reflexão-sobre-nosso-modo-de-viver/ar-BB14pWQj?ocid=spartan-dhp-feeds.
[22] Agradeço às fundamentais contribuições dos professores Ana Paula Fregnani Colombi, Gustavo Moura de Cavalcanti Mello, Henrique Pereira Braga e Rafael Moraes, integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisa em Conjuntura, do Departamento de Economia da UFES, para a construção deste texto, não sem antes isentá-los de quaisquer erros que, porventura, o autor tenha cometido.