A CRISE DA ECONOMIA DO ESPÍRITO SANTO: UMA BREVE ANÁLISE DO SEU NÍVEL DE ATIVIDADE E SETOR EXTERNO

Analisando os resultados, seja no nível interno ou em termos do comércio internacional, a economia capixaba obteve resultados negativos generalizados durante o primeiro semestre de 2020. À crise econômica que se arrasta desde 2015 juntaram-se os efeitos resultantes da desaceleração da produção provocada pela pandemia do coronavírus. O Produto Interno Bruto (PIB) do Espírito Santo apresentou, nos dois primeiros trimestres de 2020, comparativamente aos mesmos trimestres do ano anterior, queda de 10,2% e de 6,3%, respectivamente. No acumulado do primeiro semestre do ano, a queda foi de 5,9%, ampliando assim as expectativas de queda previstas já a partir do final de 2019. No caso capixaba, o comportamento do PIB apresenta-se em ligeira queda desde 2017, acompanhando o caso brasileiro, observando-se brusca queda no primeiro semestre de 2020 (Gráfico 1).

Gráfico 1: Variação trimestral do PIB brasileiro e capixaba (Variação % em relação ao mesmo período do ano anterior)
Fonte: IBGE. *O resultado do Produto Interno Bruto capixaba desde 2018 ainda está sujeito a correções.
Elaboração própria.

Em valores correntes, a estimativa para o PIB nominal foi de 30,3 bilhões de reais no segundo trimestre do ano e de 122,5 bilhões de reais no acumulado dos últimos quatro trimestres. Com dados desagregados, observamos, no acumulado do ano de 2020, retrações na Indústria (-20,8%), Serviços (-7,9%) e Comércio varejista ampliado (-4,2%). Os destaques na indústria ficaram por conta dos setores da Indústria Extrativa (-34,7%), Metalurgia (-36,9%), Produtos alimentícios (-29,4%) e produção de Produtos minerais e não metálicos (-25,4%). É importante apontar que a redução do nível de atividade da indústria em um nível muito maior  ao apresentado pela média brasileira já ocorria desde o início de 2019, mas se intensificou durante o período da pandemia. Assim, tendo como referência o mês de agosto de 2020, a queda da atividade industrial capixaba acumulada nos últimos 12 meses foi de 19,3%, ao passo que em âmbito nacional essa queda foi de 5,5% (Gráfico 2). Além disso, observou-se queda da demanda interna, principalmente, produtos alimentícios, e o recuo da demanda externa, afetando substantivamente os segmentos de mineração de ferro em pelotas, óleos brutos de petróleo e produtos siderúrgicos, o que ajudou a agravar o quadro de crise da produção no estado.

Gráfico 2: Pesquisa Industria Mensal – Produção Física (PIM-PF) brasileira e capixaba (Variação percentual acumulada nos últimos 12 meses)
Fonte: IBGE. Elaboração própria.

Quanto ao comércio varejista ampliado, a situação não é tão animadora para o mercado, apresentando queda no volume de vendas em quase todas as bases de comparação para o Espírito Santo. Apesar de medidas como o Auxílio Emergencial, benefício de 600 reais mensais pagos pelo governo federal a trabalhadores informais e de baixa renda, microempreendedores individuais e também contribuintes individuais do Instituto Nacional do Seguro Social, e que visa mitigar os efeitos da paralisação de atividades sobre a renda desse segmento da população, a variação acumulada do ano no Comércio Varejista ampliado foi de -4,2% no Espírito Santo. Esse declínio significativo no Comércio Varejista ampliado resultou, sobretudo, da combinação das variações negativas no Varejo restrito (-1,5%) e em Veículos, motocicletas, partes e peças (-12,5%). No setor de serviços a dinâmica não é muito diferente, posto que apresentou queda de -7,9% no acumulado do ano contra igual período do ano anterior. Alguns dos contribuintes para essa variação negativa foi, sobretudo, o declínio  em Serviços prestados às famílias (-32,0%) e  em Serviços profissionais, administrativos e complementares (-11,1%).

Há impactos que ainda não são previsíveis no futuro próximo, porém, os dados já computados podem dar uma margem de expectativas para o setor externo no estado. Ao analisar as exportações e importações temos dados importantes a serem destacados. Tomando os dados relativos ao período de janeiro a agosto de 2020 em comparação ao mesmo período de 2019, o que mais chama a atenção é a brutal queda das exportações e das importações no período, -30,6% e -25,1% respectivamente. Apesar desses resultados, o saldo da balança comercial ainda ficou positivo em aproximadamente US $502 milhões no período da pandemia. No entanto, significou uma queda de 48,3% em relação ao mesmo período do ano anterior. Por se tratar de uma economia altamente dependente da exportação de commodities, os setores mais afetados são os que correspondem à exportação de bens intermediários, combustíveis e lubrificantes e que representam 83,8% e 10,6% respectivamente. A maior atenção se dá na categoria bens intermediários que apresentou uma queda de 28,1%. Nas importações, a representatividade das categorias está mais equilibradas em comparação às exportações, porém o setor de bens de capital são os de maior parcela com 36,5% do total importado, seguido de bens intermediários, bens de consumo e combustíveis e lubrificantes com participação de 31,4% ,18,8% e 13,3% respectivamente.

Com exceção das importações de bens de capital, que cresceram 5,7%, um crescimento concentrado no breve período antes da pandemia, todas as categorias de importação apresentaram uma redução de valor. Combustíveis e lubrificantes acumularam uma perda de 50,2%, seguido pelos bens intermediários e bens de consumo com redução de 35,5% e 20,3% respectivamente, o que reflete a redução no ritmo da atividade econômica interna. Os principais países de destino das exportações são EUA com 33%, China 14,4% e Holanda com 6%. Em relação aos países parceiros, as importações foram: China com 22,3%, EUA com 12,2% e Argentina com 8,3%.

Diante dos dados apresentados, pode-se deduzir que a dependência da produção e da exportação capixabas em relação ao mercado internacional fará com que a recuperação da economia no estado vincule-se à recuperação da economia global. Assim, o cenário prossegue com grandes incertezas. Segundo o FMI, em seu relatório, World Economic Outlook (“Perspectivas da Economia Mundial”)¹, divulgado em 13 de outubro de 2020, a recuperação econômica mundial será “longa, irregular e incerta”, afinal, a recessão projetada pela organização prevê queda de 4,4% do PIB mundial este ano, o que causará sérios transtornos para a retomada em 2021, a depender de cada país e da forma como os governos nacionais enfrentarem as consequência da crise desencadeada pelo Covid-19.

NOTAS


[1] Disponível em: https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2020/09/30/world-economic-outlook-october-2020.

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OS MOVIMENTOS DO MERCADO DE TRABALHO FORMAL EM 2020 NO ESPÍRITO SANTO A PARTIR DOS DADOS DO NOVO CAGED

Estudantes subgrupo de Empregos e Salários¹

Os dados do Novo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (NOVO CAGED)² para o ano de 2020 evidenciam os efeitos da crise do coronavírus sobre o mercado de trabalho formal brasileiro. Tal processo pode ser observado no saldo líquido entre admitidos e desligados, presente no gráfico 1, que apresenta uma dinâmica de destruição de postos de trabalho entre os meses de março e junho. Destaca-se o mês de abril em que são destruídos 939,6 mil empregos no Brasil e mais de 19 mil postos de trabalho no Espírito Santo. 

Gráfico 1: Saldo líquido mensal janeiro a setembro de 2020, BR, ES.
Fonte: Novo CAGED – SEPRT/ME. Elaboração própria.

Os movimentos do mercado de trabalho capixaba não diferem do cenário nacional no período de crise econômica e sanitária. De janeiro a setembro³, o Espírito Santo acumulou uma destruição de 11,4 mil postos de trabalho formais. Este é o primeiro resultado negativo, para o período, desde 2016 (gráfico 2). 

Gráfico 2: Evolução Saldo janeiro a setembro. Acumulado entre 2015 e 2020, ES. Fonte: Os dados de
2020 são do Novo Caged- SEPRT/ME, para os demais anos os dados são do CAGED. Elaboração própria.

De acordo com o gráfico 3, nota-se que a partir de março o número de demitidos se elevou enquanto as admissões recuaram fortemente. O pior mês registrado para as demissões foi em março (-32,4 mil). As admissões tiveram o seu pior resultado em abril (11 mil). Contudo, é possível observar sinais de recuperação a partir de junho, pois a partir deste mês até setembro, os admitidos seguem uma trajetória de crescimento enquanto os desligados se estabilizaram.

Gráfico 3: Admitidos e Desligados de janeiro a setembro de 2020, ES.
Fonte: Novo CAGED – SEPRT/ME. Elaboração própria.

A queda brusca do número de ocupações formais ocorrida em abril, com um saldo líquido negativo de 19,1 mil é atípica para o Espírito Santo, pois não se viu uma queda tão acentuada para esse mês nos últimos cinco anos, conforme o gráfico 4. Tal quadro confirma o impacto da pandemia no mercado de trabalho capixaba.

Gráfico 4: Evolução do saldo líquido  para o mês de abril 2015-2020, ES
Fonte: Os dados de 2020 são do Novo Caged- SEPRT/ME, para os demais anos os dados
são do
CAGED. Elaboração própria.

As consequências da pandemia do novo coronavírus para o mercado de trabalho formal capixaba também podem ser analisadas sob a ótica setorial. Assim, é possível observar no gráfico 5 que os efeitos do distanciamento social afetaram, principalmente, o nível de emprego formal nos setores de Serviços e Comércio, respectivamente. O saldo líquido acumulado para o setor de Serviços foi de -9,4 mil postos de trabalho formal, seguido pelo Comércio (-7,4 mil) e Indústria (1,6 mil). 

Gráfico 5: Saldo líquido por setor de janeiro a setembro de 2020, ES
Fonte: Novo CAGED- SEPRT/ME. Elaboração própria

É preciso observar com atenção o setor de Serviços espírito-santense, pois este é o que mais emprega. Observando o comportamento dos serviços, no gráfico 5, nota-se que o mês de abril foi o mais crítico. Esse resultado é a manifestação do aumento expressivo dos desligamentos (-13,1 mil), influenciado, principalmente, pelos subsetores de alojamento e alimentação (-2,8 mil), transporte, armazenagem e correio (-3,3 mil) e informação, comunicação e atividades financeiras (-4,1 mil). Dos três subsetores, o de alojamento e alimentação foi o que apresentou a maior perda no saldo líquido de empregos para mês de abril (-2,5 mil), expondo os efeitos da pandemia. 

A partir de maio, tendo em vista o relaxamento das medidas de isolamento social, os dados apontam para uma lenta recuperação do saldo líquido apresentada também a nível setorial, com destaque para a retomada do setor de serviços.  No entanto, tal recuperação não foi suficiente para recompor o estoque de postos de trabalho formal do início do ano. Com a crise atual, se percebe uma queda ainda mais profunda no patamar do emprego formal, interrompendo o movimento de suave recuperação a partir de 2017, após perder mais de 55 mil postos entre 2015 (924,7 mil) e 2016 (868,8 mil)4. Por isso, apesar da recuperação iniciada entre os meses de julho e setembro, os dados do NOVO CAGED apontam que o estoque de empregos formais em setembro (719,8 mil) permaneceu inferior ao registrado em dezembro de 2019 (912,6).

NOTAS


[1] Contribuíram diretamente para a redação desta análise Gisele Paiva Furieri, Luiz Carlos Santos, Otavio Luis Barbosa e Ruth Stein Silva.
[2] A partir de janeiro de 2020, o uso do Sistema do Caged foi substituído pelo Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (eSocial). Para viabilizar a divulgação das estatísticas do emprego formal durante esse período de transição, foi feita a imputação de dados de outras fontes. O Novo Caged é composto por informações captadas dos sistemas eSocial, Caged e Empregador Web. Para mais informações sobre o Novo Caged ver Nota Técnica em http://pdet.mte.gov.br/.
[3] A série histórica do Novo Caged é atualizada mensalmente, o que significa que a cada mês os dados de todos os meses anteriores também se modificam. Os dados desse relatório estão de acordo com a atualização de outubro de 2020.
[4] Dados da RAIS, Relação Anual de Informações Sociais. A RAIS é um Registro Administrativo, de periodicidade anual, criada com a finalidade de suprir as necessidades de controle, de estatísticas e de informações às entidades governamentais da área social. Para mais informações sobre a RAIS ver em http://pdet.mte.gov.br/.
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UMA PEQUENA HISTÓRIA DA TRIBUTAÇÃO E DO FEDERALISMO FISCAL NO BRASIL

Publicado pela Editora Contracorrente, o novo livro do economista Fabrício Augusto de Oliveira trata um pouco sobre a história da tributação e do federalismo fiscal no Brasil no período da República. O livro também completa o projeto de estudos para a área fiscal/tributária do autor.

Neste novo livro propõe mudanças capazes de reduzir a complexidade e, sobretudo, minimizar a iniquidade e os entraves ao crescimento atualmente colocados pelo sistema tributário vigente. Numa perspectiva histórica, o autor considera o papel do Estado, o padrão de acumulação dominante, a correlação de forças sociais e políticas atuantes no sistema, bem como a influência do pensamento econômico na orientação das reformas, enquanto aspectos centrais na construção de sua análise da evolução do quadro tributário e do federalismo. (Via Editora Contracorrente)

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A CARNIFICINA DAS PEQUENAS EMPRESAS NA PANDEMIA E A VOLTA DO PRONAMPE


Fabrício Augusto de Oliveira¹

Pesquisa realizada pelo IBGE sobre o impacto da Covid-19 nas empresas, denominada Pesquisa Pulso Empresa, divulgada no dia 16 de junho, revela o estrago que vem sendo feito pelo novo coronavírus no universo empresarial, principalmente no segmento das empresas de pequeno porte.

Segundo a pesquisa, na primeira quinzena de junho, das 1,3 milhão de empresas que haviam suspendido temporária ou parcialmente os negócios (de um total de 4 milhões), 522,7 mil fecharam as portas. Desse total, 518,4 mil, o correspondente a 99,2%, eram de pequeno porte, com até 49 empregados; 4,1 mil (0,78% do total) de porte médio, que empregam de 50 a 499 funcionários; e 110 (0,02%) de grande porte, com mais de 500 empregados.

Do ponto de vista setorial, essa carnificina de empresas distribuiu-se entre os setores de serviços (49,6%), do comércio (36,7%), os mais atingidos pela pandemia, a indústria de construção, com 7,4%, e da indústria de transformação (6,4%). Em relação ao total de empresas no país neste período, isso significa que 13% de seu total foram simplesmente alijadas do mercado, devido à pandemia, revelando as dificuldades que o país terá de enfrentar, superada essa crise, para retomar o crescimento econômico.

Esses números tornam-se mais eloquentes quando a eles se somam as empresas que fecharam por outros motivos, elevando este total para 716,4 mil, ou 17,6% do universo total de empresas, das quais 99,8% se referem a pequenos negócios.

Não poderia ser diferente. Apesar de responsável por uma parte significativa do emprego no país, o segmento das micro, pequenas e médias empresas representa um universo altamente vulnerável às crises por não dispor de capital de giro e nem de reservas suficientes para enfrentar seus efeitos durante um, dois ou três meses, dependendo de seu porte. Quando essa se manifesta, reduzem-se seus fluxos de receitas e poucas alternativas lhes restam para continuar operando, a não ser a de se endividar para pagar seus compromissos, o que, via de regra, representa o passaporte mais seguro para sua falência e fechamento.

No caso atual da crise do novo coronavírus, sua situação se tornou ainda mais dramática porque não houve apenas uma redução de receitas, mas uma completa paralisação de suas atividades com as medidas de isolamento social e o fechamento forçado de seus negócios, sem que suas obrigações com o pagamento de alugueis, salários do funcionalismo, contas de energia, água, entre outras, fossem suspensas. Não haveria, assim, como enfrentar este forte descasamento entre receitas e despesas se não contassem com alguma ajuda efetiva do governo, sob pena de serem expulsas do mercado, tornando, assim, a recuperação da economia mais difícil.

No entanto, enquanto, principalmente nos países mais desenvolvidos, procurou-se criar condições para sua sobrevivência, evitando sua falência, no Brasil, país no qual os gestores da política econômica estão mais preocupados, em plena pandemia, em bloquear medidas que aumentem os desequilíbrios orçamentários do Estado, as políticas desenhadas para essas empresas têm sido completamente insuficientes para salvá-las da bancarrota, à medida que a crise também tem sido vista como temporária, apenas procurando-se criar para as mesmas alguns programas de socorro, mas com as regras do mercado.

Nos Estados Unidos, entre outras iniciativas voltadas para ofertar crédito para as empresas, o governo criou um programa específico para o segmento das micro e pequenas, com recursos que somavam, no final de abril, US$ 670 bilhões para empréstimos. Com 100% do crédito garantido pelo governo e exigência de que pelo menos 75% sejam destinados para o pagamento de salários, o programa, além de permitir o uso do restante para o pagamento de outras despesas (custos) das empresas (alugueis, contas de luz, de água etc.), ainda prevê o perdão do empréstimo, ou seja, o seu não pagamento, com a condição de que as empresas que o receberam mantenham o emprego e o salário de seus funcionários por dois meses. Além disso, este programa, denominado Paycheck Protection Program (PPP) não se descuidou de garantir para o sistema bancário, responsável pelas operações de crédito, uma remuneração para garantir que o dinheiro chegasse, de fato, às mãos de quem dele mais precisa, os pequenos negócios. 

No Brasil, contudo, as coisas se passaram de forma muito diferente.  A empáfia com que o Banco Central anunciou que disponibilizaria R$ 1,2 trilhão para injetar liquidez na economia, mas sem combinar com o sistema bancário, seguiu-se, em abril, a criação do Programa Emergencial de Suporte a Empregos (PESE), por meio da MP 944/20, com dotação de recursos de R$ 40 bilhões, distribuídos entre o Tesouro Nacional (R$ 34 bilhões) e bancos privados (R$ 6 bilhões) para ajudar as empresas a financiar dois meses da folha de salários, a uma taxa de juros de 3,75% ao ano. Isso, no entanto, sem o governo assumir os seus riscos e, diferentemente do programa dos Estados Unidos, sem contemplar nenhum perdão dessa dívida para as empresas que conseguissem ter acesso ao crédito, independentemente de seu porte. 

Não é preciso muita perspicácia para saber que o programa não poderia dar certo e que não conseguiria salvar este universo de empresas. Com o risco dos empréstimos transferido para o sistema bancário, as exigências por este feitas para sua concessão, em termos de garantias e reciprocidade, excluiria a maioria dessas empresas de seu acesso, considerando-se ser alta a possibilidade de inadimplência das mesmas, especialmente num quadro de incertezas colocadas pela pandemia e de sua duração, com o crédito deste programa fluindo, quando isso aconteceu, em sua maior parte, para as maiores empresas com bom histórico de pagamento.

Na mesma direção, mas com um pouco mais de realismo, o Senado Federal aprovou, também em abril, um projeto que criava uma linha de crédito, com taxa de juros de 3,75% ao ano, para as micro e pequenas empresas, denominado Programa Nacional de Apoio às Micro e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), com faturamento entre R$ 360 mil e R$ 4,8 milhões, prevendo destinação de R$ 10,9 bilhões para atender suas necessidades de recursos, mas permitindo o uso do empréstimo para outras finalidades além do pagamento da folha de salários. Na Câmara dos Deputados, o valor do crédito disponibilizado foi elevado para R$ 15,9 bilhões, a garantia dos empréstimos pela União estabelecida em 85% e a taxa de juros fixada em 1,25% (o spread bancário) mais a taxa Selic, com carência de 6 meses para o início de seu pagamento e prazo total de 36 meses para sua quitação, tal como terminou sendo sancionado pelo presidente da República. Permaneciam, no entanto, mesmo com esses avanços vis-à-vis a MP 944/20, excluídas deste acesso as empresas com faturamento inferior a R$ 360 mil, que constituem uma parte expressiva dos pequenos negócios.

Numa revisão das falhas deste projeto de garantir recursos para essas empresas, o governo, por meio da Medida Provisória 975/20, de 01 de junho, modificou as condições de garantia estatal dada às operações realizadas pelos bancos, com as mesmas deixando de ser de até 85% de cada operação individual para 85% de todas as operações de cada instituição financeira no programa. Assim, os bancos, mesmo operando com recursos próprios, passariam a contar com a garantia de até 100% de cada operação, a ser prestada pelo Fundo de Garantia de Operações (FGO), administrado pelo Banco do Brasil. Tal medida reduziria a necessidade de contarem com maior requerimento de capital para a realização dos empréstimos, barateando o custo das operações e compensando a baixa taxa de juros prevista no programa, um dos fatores de sua resistência ao fornecimento do crédito para essas empresas, especialmente dado o maior risco de inadimplência durante a pandemia. A questão das empresas com faturamento inferior a R$ 360 mil permaneceu, entretanto, sem solução.

Repleto de regras que atrapalharam sua atratividade e o interesse dos bancos em fornecer os créditos, tais como a limitação do uso de seus recursos para o pagamento dos salários, o pagamento direto destes pelos bancos responsáveis pelos empréstimos, o risco da instituição em caso de inadimplência, aumentando as exigências de garantias e contrapartidas das empresas para sua concessão, o Pese revelou-se um fiasco enquanto instrumento destinado a salvar as empresas: até o mês de julho, apenas R$ 4,5 bilhões haviam sido emprestados, segundo o Banco Central, do total de R$ 40 bilhões e, mesmo assim, predominantemente para médias e grandes empresas. Já o Pronampe, sem as restrições do Pese, e contando com a cobertura do risco pelo governo, viu esgotarem-se, em pouco mais de um mês de sua entrada em operação, sua dotação de recursos de R$ 15,9 bilhões, revelando a sede por crédito dos pequenos negócios na pandemia.

O sucesso do Pronampe levou o Senado Federal a reformulá-lo, projeto que se encontra em discussão no Congresso, juntamente com um redesenho do Pese. O objetivo é o de transferir R$ 20 bilhões dos recursos deste para o mesmo, até mesmo pela sua ociosidade, elevando, portanto, o montante do Pronampe para R$ 36,9 bilhões, e abrindo também uma linha especial de empréstimos para as micro e pequenas empresas com faturamento inferior a R$ 360 mil anuais. Apesar de tardio, pode ser o caminho para reduzir a mortandade dos pequenos negócios no Brasil no cenário atual dessa crise, caso aprovado. Mesmo que insuficiente, pode ajudar a deter a progressão de seu aniquilamento, conforme mostra a pesquisa do IBGE. 

NOTAS


[1] Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, do Grupo de Estudos de Conjuntura do Departamento de Economia da UFES, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”.

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100 ANOS DE FLORESTAN FERNANDES: IMPORTANTES LIÇÕES SOBRE O BRASIL DE HOJE E O QUE QUEREMOS



Matheus Avila²

Dia 22 de julho deste ano comemoramos o centenário de um dos maiores pensadores do Brasil. Florestan Fernandes é autor e pensador chave para entendermos os maiores dilemas, problemas e desafios estruturais do país em perspectiva crítica, uma vez que sua análise macrossociológica, olhando diretamente para uma sociedade de classes, nos permite enxergá-los nos âmagos de sua estrutura. 

Em sua vasta obra, temos a chance de aprender sobre um Brasil e América Latina subdesenvolvidos, em que o processo histórico da formação social e a dominação burguesa são, em suma, os elementos chaves para explicar o subdesenvolvimento e o caráter desse tipo de sociedade.

A formação social do Brasil, nascida de uma colônia, impôs à sociedade uma dupla articulação: as profundas desigualdades e segregação sociais e a dependência econômica externa. Por outro lado, a dominação política por uma classe em específico se intensifica, à medida em que transformações na economia acontecem – como por exemplo, mudanças no padrão de acumulação do capital -, em uma relação de associação entre vontades da elite nacional e o imperialismo. Aliás, uma das contribuições de Florestan, foi ter percebido que essa classe dominante conquista sua ascensão no campo político legitimando seu poderio econômico.  

Essa foi apenas uma breve introdução para perceber a atualidade de seu pensamento, uma vez que por meio dele, podemos encontrar respostas para questões que vão desde a conformação da estrutura fundiária do país e sua relação com o poder político, até mesmo outras, bem atuais, como tentar entender, por exemplo, o porquê do Brasil estar tão atrasado no combate ao novo coronavírus, bem como o da insuficiência de políticas econômicas que tenham o intuito de mitigar os efeitos da pandemia sobre a economia. Mais que isso! Porquê tanta restrição em se ter políticas públicas de bem-estar social, que garantam empregos, a seguridade e proteção sociais? Porquê o país está batendo recordes de desemprego e informalidade? Porquê as desigualdades persistem?

Tentando responder às perguntas, em primeiro lugar, os problemas essenciais do Brasil – a dupla articulação e a dominação de classes – seriam resolvidos através do controle do país sobre suas decisões e destino mediante afirmação da autonomia do Estado nacional perante o setor externo. Em relação a esses dilemas, o problema crucial do país continua sendo a dependência externa e a grande desigualdade social. 

Florestan Fernandes (1976) vê que a revolução nacional viria conforme a burguesia pudesse, na evolução da história, quebrar com esses problemas e heranças coloniais, paralelamente no contexto em que fossem inseridas num cenário de crescente industrialização, tendo em vista que tal classe iria além, se posicionaria em conflito com a dependência externa e tomaria seu lugar na acumulação de capital. Portanto, se trataria também de uma revolução política ou, mais estritamente, uma “Revolução Burguesa”, porque burguesia seria a única classe possuidora de condições de estabelecer seus anseios, de forma articulada  arquitetando projetos, planos e conchavos no intuito de mitigar os problemas que impedem o país de dominar suas próprias decisões e a sair do subdesenvolvimento.

No entanto, em A Revolução Burguesa no Brasil (1976), analisando a fundo o caráter da burguesia que se formaria no país, atuando como sujeito histórico e a consolidação da dominação de classes, o autor conclui que o que se dá no limite da formação é uma contrarrevolução burguesa permanente. Isso implica no fato de que tal classe não marcha no sentido da superação do subdesenvolvimento, mas sim em sua atenuação como forma de ampliar sua dominação. Nesse sentido, o autor coloca a dominação burguesa como uma autocracia na ideia de que essa seria sua fonte de estabilidade política, econômica e social para manutenção do poder. Entretanto, em momentos em que a classe dominada se põem em condições de cobrar seus interesses, a burguesia mostraria seu caráter reagindo de maneira “reacionária e ultraconservadora, dentro da tradição do mandonismo das oligarquias”.

Isto, sem tirar o fato de que as impotências burguesas no cenário externo seriam compensadas, no cenário político nacional, pela manipulação das condições socioeconômicas internas, de modo que a renovação e novos moldes das estruturas de poder herdadas do passado  seriam postas como instrumento político para garantir as transformações capitalistas, além de sua própria hegemonia no campo político.

Dessa forma, se torna imprescindível o estudo sobre a burguesia nacional em sua formação e consolidação, de suas características próprias, suas relações com a dependência externa, bem como suas estratégias autocráticas de perpetuação de dominação política, sua forma de fazer “democracia” e sua contrarrevolução permanente. Tal ponto se justifica pelo fato dessa classe ser uma categoria fundamental da base do subdesenvolvimento no Brasil, sua permanência e retroalimentação. Para isso, parece não haver outro caminho, senão a reconstrução sócio-histórica de Florestan Fernandes sobre a burguesia brasileira.

Florestan também percebe que a dependência exerce uma incontrolável pressão sobre a própria economia interna, provocando uma hipertrofia de setores socioeconômicos e políticos da própria dominação da elite. As desigualdades causadas por esse movimento do imperialismo resulta em um contraponto democrático levando a um conflito com a burguesia. Tem-se nesses parâmetros um vislumbre introdutório da contradição entre a dependência externa e democracia, pois tornam-se necessários aspectos de superioridade que não podem possuir contrapartidas ao desenvolvimento capitalista no exterior. Em outros termos, uma “forte associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia” .

Estabelece-se, então, uma interdependência política e reciprocidade de interesses, garantindo os interesses do imperialismo e o crescimento econômico desejado pelo empresariado brasileiro para manter seu status quo, tornando-se uma “vanguarda política da dominação imperialista sob a égide do capitalismo”, que apenas moderniza o atraso. Vale destacar que nesse cenário de dependência o Brasil fica a mercê das oscilações provocadas pelas crises do capitalismo e das mudanças de padrão de acumulação do capital.

Com esse movimento social, a ascensão das elites aparece como um flerte não com busca pelo êxito da Revolução Brasileira e com a construção social de um país livre, autônomo, que consiga resolver seus problemas deixados como herança da colonização, mas sim com o capitalismo dependente, que além de legitimar a dominação material interna também mantém a continuidade da expansão desse sistema.

Funciona como uma via de mão dupla: a burguesia se associa ao capital internacional de forma marginal e periférica para manter sua acumulação e legitimar seu poder político perante às demais classes. E, por outro lado, a dinâmica do capitalismo e do próprio capital, que precisa se expandir intensificando as contradições da dualidade capital x trabalho, se alimenta de seu próprio antagonismo, preservando a posição de superioridade de classes, atenuando os problemas sociais.

O pensamento de Florestan também é fundamental para entender a autocracia e/ou autoritarismo das elites no Brasil. Porque, suas outras dimensões, seja a sua polarização, conservadorismo e dependência entrariam em conflito com aspirações democráticas, além de enfrentar oposição das classes subalternas, o que leva tal classe a uma contradição com o modelo democrático republicano representativo. 

Para conter essa possibilidade, emergem as máquinas de opressão e repressão do Estado, representado por uma classe. A reação também correu contra as classes e categorias que pudessem reivindicar suas posições e melhorias, como a classe trabalhadora, sindicatos e movimentos sociais – chamados pelo autor de reivindicações “de baixo pra cima”.

Sendo assim, entender e estudar a obra de Florestan é a chave para compreender o Brasil de hoje. Afinal, com o que vimos anteriormente, fica claro como o autoritarismo representado pelo poder executivo, bem como as políticas econômicas capitaneadas pelo Ministério da Economia, são reflexos da dominação das burguesias do país na esfera política e econômica. Aliás, não seria mera coincidência, nem obra da mão invisível, nem do liberalismo econômico que, em meio a maior crise econômica enfrentada no mundo nos últimos tempos, as políticas de “salvamento” à economia seriam concentradas na esfera financeira, enquanto a regra para os hospitais e famílias desamparadas pelo desemprego é a austeridade fiscal. Também não é a toa que a concentração de renda no Brasil seja tão exorbitante e que, em contrapartida, as elites relutam em aceitar a permanência e ampliação do auxílio emergencial, a adoção da tributação progressiva sobre fortunas, bem como a criação e expansão de programas de redistribuição de renda.

Florestan deixa como lição, então, que dentro dessa ordem não seria possível sair da condição de subdesenvolvimento e de crescente barbárie. Talvez, um de seus maiores legados seja a importância da luta popular e democrática, liderada pelos movimentos dos trabalhadores (fora dos âmbitos da “democracia” burguesa)  para superar a dupla articulação e resolver os problemas essenciais da formação nacional. O caminho é mediante o rompimento político com as elites e com a dependência do setor externo, o que coloca na ordem do dia grandes desafios, que aparentemente parecem ser impossíveis de ser alcançados (baseado no exposto até aqui).

Entretanto, em uma entrevista de Florestan à Vox Populi, a autora Lygia Fagundes Telles pede ao autor “Que esperança você me dá, nesse instante?”. Ele sorri e diz: 
“Infelizmente não posso dar a Lygia nenhuma esperança. Eu acho que quem nos dá a esperança são os humildes, os trabalhadores, os índios e os negros … Todos eles estão fazendo o que as elites nunca fizeram: estão tentando construir um Brasil novo (…) É única razão pelo qual alguém pode dizer ‘O Brasil tem futuro!’”.

Salve, Florestan Fernandes.

 

NOTAS


[1] Partes do texto foram selecionados de artigo científico elaborado pelo autor.
[2] Egresso do Programa de Educação Tutorial do curso de Economia da UFES; Graduando pelo curso de Economia da UFES.
[3] Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=DKaY2HcQ9b8> Acesso em 20/07/2020.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


FERNANDES, Florestan. Revolução Burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. zahar ed. 2ª edição. São paulo. 1976.
FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. zahar, ed. 2ª edição. Rio de Janeiro. 1975
FERNANDES, Florestan. Clássicos sobre a revolução brasileira. Ed. Expressão Popular, 2000.
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BOLETIM N°62 | JUNHO DE 2020

RECESSÃO E PANDEMIA: A CRISE ANUNCIADA

 

O Boletim de Conjuntura em Economia da Ufes chega a sua 62ª edição com diversas reformulações. Todas elas têm como objetivo tornar o texto mais dinâmico e conciso. No novo formato, as análises sobre Nível de Atividade, Política Fiscal e Setor Externo foram unificadas em um único texto, que abre o boletim. A segunda seção compreende a contribuição do subgrupo de Política Monetária e Inflação e a terceira trata dos Empregos e Salários. A tradicional análise da Política Econômica, produzida pelo economista Fabrício de Oliveira, fecha o texto. Outra novidade aparece no anexo estatístico, ao final do boletim, com as variações dos principais indicadores econômicos nos últimos cinco anos.

Além disso, a proposta é que, a cada edição, as análises feitas pelos estudantes apresentem um recorte temático. Neste semestre, como não poderia ser diferente, as análises voltam-se para os desdobramentos da crise econômica derivada da pandemia de Covid-19. Ainda que nem todos os efeitos da crise econômica tenham sido captados pelos números disponíveis até o fechamento das análises, já são claras as suas consequências sobre a atividade econômica.

O subgrupo de Nível de Atividade, Política Fiscal e Setor Externo apresenta uma análise atual dos números relativos ao PIB, às contas públicas e à dinâmica do Balanço de Pagamentos brasileiro, inserindo-a num contexto histórico de longo prazo, desde 2015. Assim, os dados que indicam o comportamento da economia brasileira, em relação a essas três grandes abordagens, no primeiro trimestre de 2020, incluindo a influência exercida pelos efeitos da crise sanitária que assola o país e o mundo, são analisados não apenas à luz dos últimos acontecimentos, mas como herdeiros de uma crise econômica que se arrasta há cinco anos.

Quanto à Política Monetária e Inflação, o que aparece em destaque na análise é a percepção
de que os indicadores monetários já apontavam desde o início do ano para a continuidade da estagnação na economia. A crise oriunda da pandemia fez agravar este cenário, ampliando severamente as incertezas quanto ao futuro.

A análise do mercado de trabalho brasileiro, realizada na seção “Empregos e Salários” mostra como a crise atual atinge as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros, aprofundando um processo, já em andamento, de deterioração do mercado de trabalho. Destaca, ainda, que a perda de postos de trabalho após a pandemia tem afetado de forma mais intensa e veloz àqueles que ocupavam as posições mais vulneráveis – os informais.

Por fim, a análise da Política Econômica mostra como as previsões quanto ao cenário da economia global estão sendo revistas dia após dia, apontando para um futuro bastante nebuloso. Neste sentido, o Estado é novamente convocado para servir de esteio à economia, “salvando o sistema da ruína”. Na contramão, contudo, o governo brasileiro parece apostar em uma saída rápida da crise, sem promover uma real ruptura com as políticas de austeridade dos últimos anos.

Nós, professores e estudantes, do Grupo de Conjuntura convidamos a todas e todos para a
leitura dos textos produzidos para a presente edição.

Boa leitura!
Grupo de Conjuntura

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ENTRE MOTORISTAS E ENTREGADORES: TRABALHO ‘UBERIZADO’ AINDA MAIS PRECÁRIO EM MEIO À PANDEMIA

Daniel Guzzo Moratti¹                                                                                                                                 
Otavio Luis Barbosa²


Se meses atrás, antes do início da pandemia, algumas categorias de trabalhadores se mostravam invisíveis, quase inexistentes para a sociedade, hoje pode ser que não seja a mesma realidade. Este é o caso dos entregadores de
delivery e motoristas de aplicativo, como iFood, Rappi, 99Pop e Uber, por exemplo, que passaram a ser trabalhadores essenciais em um momento no qual toda a população precisou parar suas atividades básicas externas para mitigar a propagação do vírus, na tentativa de evitar um colapso do sistema de saúde e uma maior tragédia em virtude da pandemia. 

No auge do debate das medidas econômicas para garantir proteção social à população vulnerável, os olhos se voltam para esses trabalhadores com a única prerrogativa de que somente agora precisam de um resguardo social. A verdade é que esses trabalhadores já enfrentavam no seu cotidiano condições precárias de trabalho para garantir sua sobrevivência sem garantias de direitos trabalhistas e proteção social. Esses postos de trabalhos, precarizados em sua natureza, criados por plataformas digitais com o propósito de melhorar a vida da população recebe o nome de “uberizados” ou, então, “uberização do trabalho”. Este texto tratará disso.

Uberização é um dos termos mais recentes para representar, com características específicas sobre as novas configurações do mercado de trabalho brasileiro, uma perspectiva diferente do que realmente deveria ser a Economia do Compartilhamento (EC). O termo original (sharing economy) ainda é amplamente debatido, desde seu surgimento, no início dos anos 2010, mas, em geral, os defensores dessa nova área da economia a denominam como um novo tipo de negócio. Outros ainda a chamam de um movimento social[3]

Inicialmente, a origem do termo remetia a uma questão de generosidade e compartilhamento de itens entre indivíduos, sendo uma de suas promessas a ajuda prioritária a indivíduos mais vulneráveis, os quais poderiam tomar controle de suas vidas tornando-se microempresários e praticando a autogerência de si, sendo empresários-de-si-mesmo[4]. Dentre as promessas da economia do compartilhamento, a mesma prometia ser uma alternativa sustentável para a circulação de mercadorias em ampla proporção, podendo utilizar recursos subutilizados, ou seja, a ideia de “o que é meu é seu [5]. Nela também estava contido o desejo de compartilhar bens e serviços per meio de plataformas que permitissem essas trocas. 

A própria composição do termo coloca em xeque o que é prometido nesse novo tipo de organização. “Compartilhamento” significa troca entre iguais sem a presença do dinheiro – caráter comercial – ou por motivos de benevolência. Já “economia” sugere trocas mercantis, isto é, o dinheiro como mediador das trocas, por intermédio de interesses privados[6]. Outros nomes que geralmente designam a Economia do Compartilhamento, são: consumo colaborativo; economia em rede; plataformas igual-para-igual; economia dos bicos (gig economy); economia da viração; e economia sob demanda. Todos esses designam uma nova forma de consumo. 

A Uber se define como uma empresa de tecnologia, não de transportes, sendo seu papel principal intermediar usuários e “parceiros” através de uma plataforma, isto é, via aplicativo. Em outras palavras, é uma empresa privada global de assalariamento disfarçado sob a forma de trabalho desregulamentado[7]. Além disso, a Uber também deixa claro o que ela faz e o que não faz[8], sendo o aspecto mais significativo a ausência de vínculo empregatício: “a Uber não emprega nenhum motorista e não é dona de nenhum carro”, além de não se responsabilizar pelos riscos inerentes ao trabalho (ex. casos de assalto, mortes, etc.). 

A empresa tem ocupado um espaço no mundo dos negócios e no mercado que é paulatinamente mais inóspito e desregulado em nossas vidas, bem como tem desempenhado um papel cada vez mais invasivo no processo de trocas[9]. Isto posto, ocorre a externalização dos custos, seguros e riscos para os “parceiros”, mediante a ausência de garantias trabalhistas e sociais. Esse é um processo que também reforça, progressivamente, a informalidade que já era crescente no Brasil.  

No que diz respeito aos custos, a empresa estabiliza cada vez mais seu sucesso em função de não cobrir os preços de seguro, combustível, manutenção e depreciação dos veículos, além de não fornecer um serviço universalmente acessível. Assim, a capacidade de oferecer aos consumidores um serviço barato e eficiente vem da maestria de operar com prejuízo[10] que financia seu crescimento. Sem contar que, quando a empresa começa a operar nas cidades pela primeira vez, ela oferece prêmios e subsídios para motoristas e consumidores para que seu serviço se espalhe de forma a se consolidar positivamente. Após a efetivação da empresa no local novo, ela passa a se apropriar de uma fatia maior de cada corrida. Ademais, os motoristas são colocados em situações de abuso[11] por parte das empresas de tecnologia, uma vez que são obrigados a cumprir metas estabelecidas, frequentemente, dormindo dentro dos carros à espera de uma corrida e perdendo o laço com a família, tendo como consequência adoecimentos, depressão e suicídio[12]

Como se não fosse suficiente a pressão por parte das empresas, os motoristas acabam tendo de tomar uma série de cuidados quanto ao seu comportamento e à qualidade do serviço que oferecem, pois são os consumidores (passageiros) que avaliam os parceiros por meio do aplicativo, sendo uma forma de a empresa saber como está sendo de fato a prestação de serviço. É claro que há muitos que dão notas baixas por motivos desnecessários, ou simplesmente porque o motorista conversou um pouco mais. Isso, por sua vez, estabelece um ambiente de constante vigilância por parte dos motoristas e entregadores, levando à expulsão daqueles cuja nota é inferior à média da região que operam, segundo Tom Slee.

O serviço que a Uber disponibiliza se assemelha ao zero hour contract, modalidade de contrato de trabalho presente no Reino Unido que não possui determinação mínima de horas e tem ganhado espaço pelo mundo. Nessa categoria, os trabalhadores das mais diversas áreas ficam à espera de uma chamada de serviço (just-in-time)[13], em que sua aceitação não é obrigatória. Um dos principais problemas para esse tipo de “contrato” é que o prestador de serviços deve estar à disposição sem receber por esse tempo, sendo que poderia estar fazendo outra atividade remunerada. A maior diferença é que os motoristas parceiros da Uber não podem recusar as corridas que aparecem, sendo passível de represálias por parte da empresa e um possível desligamento. 

O elemento da precarização do trabalho e da gradativa informalidade é uma característica estrutural do mercado de trabalho brasileiro e tem aumentado com o advento do neoliberalismo no Brasil, iniciado em meados da década de 1990, com o avanço da globalização, abertura econômica, desregulamentação dos mercados e da constituição da empresa moderna. Segundo Ricardo Antunes[14], “a precarização não é um elemento estático, mas um modo de ser intrínseco ao capitalismo”, podendo aumentar ou diminuir conforme a organização da classe trabalhadora.

A Uber tem operado no Brasil desde 2014, um ano antes de os indicadores e especialistas declararem a recessão que o Brasil mergulhava, sendo a posterior retomada, a mais lenta de sua história[15]. Contudo, sua predominância em grandes metrópoles e cidades menores se deu a partir de 2016, momento esse que diversos desempregados procuravam por uma renda. A recessão iniciada em 2015 intensificou o processo de precarização do mercado de trabalho brasileiro, devido à elevação do desemprego (até 2017), seguida por uma tímida queda nesse indicador, mas às custas do aumento da informalidade. 

Dessa maneira, a crise foi uma ótima oportunidade para a empresa de fato consolidar seu serviço em solo brasileiro. Para muitos dos que perderam seu emprego ou que acabaram de chegar ao mercado de trabalho, ser motorista tornava-se uma nova oportunidade de obter novos rendimentos. Além disso, para inúmeros trabalhadores que já possuíam ocupações com remunerações baixas, ser motorista ou entregador de aplicativo acabou se tornando um bico para complementar a renda. Há uma vasta quantidade de combinações entre trabalhos formais e informais para garantir a renda. 

As empresas de plataformas digitais, registradas no setor de tecnologia, se apresentam como intermediadoras entre os consumidores e ofertantes de serviços. Essas companhias apenas se responsabilizam pela manutenção das plataformas digitais, portanto, como dito, não assumem qualquer vínculo de relação de trabalho. Nesse sentido, a ausência de um vínculo empregatício põe luz a um aspecto de falsa liberdade ao trabalhador de que as empresas utilizam para reforçar o discurso de auto gerência da força de trabalho. Ao contrário dos pretensos benefícios dessa condição de trabalho, tem-se uma intensificação das jornadas de trabalho e, por conseguinte, sua precarização. Um exemplo é a inexistência de uma jornada de trabalho fixa, colocando aos trabalhadores a escolha em cumprir uma carga horária que melhor pode lhe satisfazer. No entanto, a remuneração é definida de acordo com um percentual de cada serviço realizado, o que torna todo o tempo possível um potencial de ganho, um tempo de trabalho. 

Além disso, essas novas formas de ocupações geradas pela economia do compartilhamento estabelecem que o trabalhador deve se submeter à autogerência de si e, portanto, à responsabilização sobre os riscos que corre. Assim, é imprescindível notar, nesse caso, a auto responsabilização do sujeito pelas suas condições básicas de reprodução e seu eventual fracasso, um aspecto presente no atual padrão de sociabilidade neoliberal[16].

Em meio à atual pandemia, em que as medidas por parte do Estado se mostram insuficientes para proteger aqueles que não possuem qualquer proteção social, esse caráter individualista e de crença que o sujeito pode fazer o melhor por si mesmo para encontrar a solução dos seus problemas se mostra mais presente. Não obstante, é colocado um difícil dilema para esses trabalhadores entre cuidar da sua saúde ou, então, manter seus rendimentos correndo risco de contágio do vírus. Na falta de opção, alguns não encontram outra saída a não ser continuar e, nesse caso, acabam ingressando nas plataformas como forma de enfrentar os desafios da atual conjuntura.

Nesse sentido, apesar dos riscos de contágio, o número de inscrições no iFood em março foi de 175 mil pessoas, ante 85 mil no mês anterior[17]. Atualmente a empresa conta com mais de 140 mil entregadores e 200 mil terceirizados[18]. No mesmo caminho, o número de entregas de supermercado também aumentou, sendo que, só em março, mês que as medidas de isolamento social ainda não eram tão restritivas, foram 400%. A Rappi alega um crescimento de 30% para o mesmo mês[19]

No entanto, um estudo realizado pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir)[20] indica que, mesmo trabalhando mais durante a pandemia, a remuneração dos entregadores teve uma redução significativa. A pesquisa apontou que mais de 60% desses trabalhadores alegaram ter uma redução em seus rendimentos e apenas 10% disseram ter obtido um aumento dos ganhos. A redução dos ganhos desses trabalhadores mostra uma maior intensificação das condições precárias de trabalho, principalmente entre aqueles que possuem uma maior carga de trabalho diária, podendo chegar a mais de 15 horas. Apesar do risco de contágio e a letalidade do vírus, as empresas de prestação de serviço por aplicativo pouco têm feito pela proteção de seus “parceiros”. Ainda de acordo com a Remir, mais de 60% alegam que as empresas não tomaram qualquer ação para proteção e cuidados com a saúde deles. 

Entretanto, todos esses trabalhadores enfrentam o mesmo problema: a insuficiência por parte das empresas em ajudar na proteção de suas saúdes. A maioria deles relata que as empresas-aplicativo não têm feito o suficiente para garantir um trabalho minimamente seguro durante a pandemia. Para os entregadores, algumas empresas têm oferecido álcool em gel e a medição de temperatura; já para os motoristas, além do álcool, eles devem atualizar frequentemente a foto do aplicativo antes de começar a viagem para comprovar o uso de máscara. Os consumidores têm a opção de pagamento via aplicativo como uma das saídas para evitar o contato físico. A relação existente entre tais empresas e seus parceiros é tão problemática que essas políticas para a garantia da saúde não podem se manter permanentemente, visto que pode ferir o contrato utilizado, isto é, de as empresas não terem qualquer vínculo com os trabalhadores.

 Além disso, a suposta ausência de uma subordinação da força de trabalho com os aplicativos impede a adoção de medidas para proteção dos motoristas e entregadores, como, por exemplo, a implementação de auxílios para o caso de contaminação e seguro de vida para as famílias que podem ficar desassistidas caso o trabalhador venha a óbito em virtude da doença. Empresas, como a Rappi e Uber, oferecem auxílio para quem for infectado, porém, essa medida tem sido insuficiente, uma vez que considera apenas os rendimentos dos últimos meses de trabalho e o limita a 14 dias[21]. Isso, por sua vez, pode acentuar a condição de vulnerabilidade e precarização do trabalhador, especialmente em um momento de saúde frágil.

Sequer estamos próximos do fim da pandemia e já ocorre uma série de resultantes da paralisação das atividades produtivas exacerbando, portanto, as contradições e os limites da relação capital-trabalho na sociedade contemporânea. As novas formas de flexibilização laboral compõem um novo estágio da exploração do trabalho por meio da uberização, a qual traz outro significado para a configuração das empresas e o controle e gerenciamento do trabalho. A atuação do capitalismo de plataforma integra uma frente ampla de empresas que prometem a melhoria da vida da classe trabalhadora, ao mesmo tempo em que há um Estado agindo ativamente para desregulamentar o ambiente propício para a atuação dessas empresas. 

Dessa forma, é de se reconhecer que a pandemia acelerou uma série de desigualdades que estavam sendo gestadas e mantidas na estrutura produtiva e social do país. Em meio à pandemia que afasta familiares e amigos, colapsa o sistema de saúde e custa milhares de vidas todos os dias, outros milhares de pessoas continuam a vagar pelas ruas dos centros urbanos sem a garantia de estar com seus entes no final do expediente, correndo o risco de contrair o vírus. Nem ao menos são reconhecidos como trabalhadores dignos de seus direitos por aqueles com quem estabelecem sua subordinação. Os trabalhadores por aplicativo, expressão das relações de trabalho contemporâneas, são apenas mais um exemplo de um modelo de vida que para existir precisa precarizar o outro.

NOTAS


[1] Graduando em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

[2] Graduando em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), membro do subgrupo de Empregos e Salários (Conjuntura Ufes) e bolsista do Programa de Educação Tutorial (Pet Economia/Ufes).
[3]SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo, Editora Elefante, 2017.
[4] LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
[5] Isso remete à originalidade do título da obra de Tom Slee – What’s Yours is Mine: Against The Sharing Economy. Porém, com o propósito de mercantilização das mais simples interações sociais, acaba se tornando “o que é seu, é meu”, uma vez que as empresas aproveitam dos produtos alheios para obtenção de lucro.
[6] Tom Slee. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, cit. 
[7] ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: O novo proletariado de serviço na era digital. 2ª ed. Boitempo editorial, 2020.
[8] Fatos e Dados sobre a Uber, em Uber, 18 fev. 2020. Disponível em:<https://www.uber.com/pt-BR/newsroom/fatos-e-dados-sobre-uber/>
[9] Tom Slee. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, cit. 
[10] Here Are the Internal Documents that Prove Uber Is a Money Loser [Aqui estão os documentos internos que provam que a Uber dá prejuízo], em Gawker, 5 ago. 2015. Disponível em:  <https://gawker.com/here-are-the-internal-documents-that-prove-uber-is-a-mo-1704234157
[11] Causos de trabalho: 8) Motorista de aplicativos (II). Em Passa Palavra, 16 fev. 20. Disponível em: <https://passapalavra.info/2020/02/129873/>
[12] Ricardo Antunes. O privilégio da servidão: O novo proletariado de serviço na era digital, cit.
[13] Entrevista Ludmila Costhek Abílio. Grupo de Conjuntura da UFES. Vitória, 7 jun. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3dJtqgH>. 
[14] Ibidem, p. 61.
[15] A retomada da economia brasileira comparada às de crises anteriores. Em Nexo Jornal, 5 mar. 20. Disponível em:<https://www.nexojornal.com.br/grafico/2020/03/05/A-retomada-da-economia-brasileira-comparada-%C3%A0s-de-crises-anteriores>
[16] Christian Laval e Pierre Dardot. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, cit.
[17] Candidatos a entregador do iFood mais que dobram após coronavírus. Em Uol Economia, 1 abr. 20. Disponível em:<https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/04/01/candidatos-a-entregador-do-ifood-mais-que-dobram-apos-coronavirus.htm>
[18] Idem.
[19] Idem.
[20] Coronavírus: entregadores de aplicativo trabalham mais e ganham menos na pandemia, diz pesquisa. Em BBC News Brasil, 7 mai. 20. Disponível em:<https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52564246
[21] “Parceria” de risco: aplicativos lucram com o coronavírus pondo os entregadores em risco de contágio. Em The Intercept Brasil, 23 mar. 20. Disponível em: <https://theintercept.com/2020/03/23/coronavirus-aplicativos-entrega-comida-ifood-uber-loggi/?fbclid=IwAR328opwTXoB5roTmogLD0LLnUKQXwfNLpoVC12FNODTFc-Xtz9MmTPMJ7Q>

 

 

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ENTREVISTA LUDMILA COSTHEK ABÍLIO

Ludmila Costhek Abílio: Formada em ciências sociais pela USP, doutora em ciências sociais pela Unicamp, atualmente é pesquisadora do CESIT-IE/Unicamp. Realiza seu segundo pós-doutorado em economia, dedicando-se junto a outros pesquisadores aos estudos e à consolidação da uberização como um campo de pesquisa no Brasil. 
Por Ana Paula Colombi e Rafael Moraes.
 

Pesquisadora do CESIT-IE/Unicamp, Ludmila Costhek Abílio chama atenção, na entrevista a seguir, para a condição precária dos trabalhadores uberizados em plena pandemia. Chamando-os de trabalhadores just in time, Ludmila problematiza as novidades dessa forma de trabalho, desconstrói a ideia de “empreendedorismo” que paira sobre essas ocupações e revela que a uberização está generalizando o modo do viver periférico. 

1. Nos últimos anos muito se tem falado em “trabalhadores uberizados”. No que consiste este tipo de ocupação e em que ela se diferencia das formas tradicionais? No contexto da crise atual qual a situação destes trabalhadores?

A uberização trata de um novo tipo de informalização do trabalho. Neste sentido, ela se refere ao mesmo tempo a ocupações específicas do mundo do trabalho contemporâneo, tais como o motorista da Uber, o entregador do Ifood. etc… Mais centralmente trata-se de uma tendência que hoje atravessa as relações de trabalho em uma perspectiva global: um novo tipo de organização, gerenciamento e controle do trabalho, que subordina uma multidão de trabalhadores informais, desprovidos de direitos e proteções associados ao trabalho, e que arcam com riscos e custos da sua atividade. Podemos dizer que é um novo tipo de informalização devido aos meios técnico-políticos que operam aí, ou seja, a possibilidade de controlar, sob novas formas, todo o processo de trabalho, incluindo até mesmo a transferência subordinada de decisões sobre o trabalho para o próprio trabalhador, que passa a ser inteiramente responsável por sua sobrevivência. 

Podemos também chamá-los de trabalhadores just-in-time, ou seja, trabalhadores que são, então, reduzidos à pura força de trabalho a ser utilizada de acordo com a demanda. Estão disponíveis ao trabalho, mas não têm qualquer garantia sobre sua própria remuneração, tempo de trabalho necessário para sua reprodução, etc. A grave situação destes trabalhadores durante a crise fica muito evidente. Trata-se de não ter nada que garanta sua própria reprodução além do ganho cotidiano advindo do trabalho. Entretanto, esse ganho também não está garantido, independentemente do quanto esse trabalhador se engaje. A pandemia deixa então evidente não só a precariedade da vida do trabalhador uberizado – que não é só dele mas de grande parte dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros, que vivem no limite da sobrevivência – mas também essas formas atuais de subordinação, controle e exploração. Por exemplo, em recente pesquisa coletiva realizada no âmbito da REMIR, constatamos que apesar de os trabalhadores entregadores desempenharem um serviço essencial à população, as empresas de entrega estão aumentando significativamente seus lucros e faturamento em plena crise, enquanto os rendimentos dos trabalhadores estão sendo reduzidos. Isso, em plena pandemia! 

2. As noções de empreendedorismo, autonomia e liberdade estão associadas ao trabalhador multiplataforma. Isso corresponde com a realidade? As consequências da crise do Covid-19 estão contribuindo para desmistificar esses aspectos perante à sociedade? 

A noção de autonomia e liberdade hoje são pilares para que não se reconheça a subordinação destes trabalhadores e as responsabilidades da empresa. Entretanto, chamá-los de pilares já é um erro pois não são eles que estruturam essas relações. Em realidade, eles sintetizam a legitimação da transferência de riscos e custos para os trabalhadores, além do que venho definindo como autogerenciamento do trabalhador. Ou seja, esse permanece subordinado, não tem o menor poder de negociação sobre sua remuneração, sua carga de trabalho, seu tempo de trabalho. Entretanto, para ele é transferido parte do gerenciamento sobre o trabalho. Podemos entender esse gerenciamento de si também como estratégias de sobrevivência, que garantam sua permanência nessa atividade. Por exemplo, quando olhamos para entregadores ou motoristas uberizados, as supostas liberdade e autonomia se referem basicamente a estratégias que são traçadas pelo trabalhador – tais como definir o melhor período do dia para trabalhar, local de trabalho, tipo de veículo, forma de aquisição (alugado, financiado) etc. Todas estas decisões hoje são processadas e gerenciadas, ou seja, são dados administráveis no imenso cadastro de trabalhadores just-in-time. Tornam-se então elemento controlado da gestão. É aí que começamos a nos deparar com termos como gamificação do trabalho, que expressam essa administração informal e permanente sobre a vida dos trabalhadores. Por exemplo: está chovendo, o entregador tem a autonomia de não colocar sua vida em risco fazendo entrega com a moto, mas ele também pode decidir por tentar ganhar a bonificação que vem justamente quando começa a chover…

Juntam-se a estas noções a de empreendedorismo. Ou seja, você nem mesmo é um trabalhador, mas um chefe de si próprio, que se for forte, criativo, engajado, proativo, sobreviverá no mundo cão da concorrência. A noção de empreendedorismo traz consigo a normalização do risco, mas com um pequeno detalhe: é o risco para o detentor da força de trabalho e não do capital! Traz também a normalização de que o trabalhador – livre como um pássaro, como dizia Marx – sobrevive arriscadamente solitário na sua própria gestão, sem poder contar com qualquer rede de proteção social. Ser empreendedor é estar lançado à própria sorte em um mundo que não oferece qualquer garantia ou proteção; no caso da uberização, é não contar nem mesmo com a segurança sobre qual será a sua remuneração após 12 horas de trabalho. 

3. Você defende a tese de que a “viração” é um aspecto constitutivo da sociedade brasileira e da forma como a classe trabalhadora historicamente travou e trava a luta pela sobrevivência no país. No que se constitui o ato da “viração”? Se ele é constitutivo do mercado de trabalho brasileiro, o que há de novo nas formas atuais de precarização do trabalho? 

Essa questão nos possibilita olhar para nossas categorias de análise e nos interrogarmos sobre o quanto estamos conseguindo expressar a realidade do viver dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros. O primeiro cuidado que temos de ter é o de não associar a viração com o “viver de bicos”. A viração aqui opera como uma espécie de desafio e desestabilização de dualidades que estruturam nossas análises. Ela trata do trânsito entre trabalho formal e informal que vai costurando a vida dos trabalhadores, do engajamento em empreendimentos familiares, do envolvimento com trabalhos que mal são reconhecidos enquanto tais. Estamos em realidade descrevendo as tais estratégias de sobrevivência, que envolvem um autogerenciamento e o engajamento incerto e permanente nas oportunidades instáveis e precárias que vão garantindo o viver. É só olharmos com atenção para a trajetória de um motoboy: distante da figura do “jovem cachorro loko”, em realidade, costuma ser um “pai de família” de quarenta anos, que é motoboy há vinte. Um exemplo, o trabalhador já foi metalúrgico, técnico em telefonia, representante comercial, entre outras ocupações. Hoje é motoboy e, como ele mesmo se denomina, “sacoleiro”, ao mesmo tempo, combinando as entregas com compra e venda de produtos. Isto não é a exceção, é a regra do viver no Brasil. Uma identidade profissional estável, assim como uma trajetória que se orientaria pelo horizonte do trabalho formal são elementos que guiam muito das categorias de análise, mas estão distantes desta realidade. 

Agora, isso não quer dizer que não há nenhuma novidade, pelo contrário, é preciso compreender como estes modos de vida – que constituem a especificidade do desenvolvimento capitalista periférico – vão se atualizando e se transformando. A uberização traz algo de muito novo: este modo de vida periférico é agora subsumido de forma centralizada, monopolizada, gerenciada, administrada. Ou seja, esse modo do viver periférico está sendo incorporado como elemento central destas novas formas de controle e organização do trabalho, podemos ainda aventar que este modo está se generalizando. 

4. A reforma trabalhista, o aumento da informalidade e da exploração do trabalho têm desafiado a capacidade de representação do movimento sindical. Como isso se reflete, na sua opinião, nas formas de resistência desses “trabalhadores uberizados”, sobretudo diante da perda de espaço das organizações sindicais tradicionais? Como a crise atual tende a afetar este cenário? 

A reforma trabalhista mira com muita precisão e brutalidade as forças sociais do trabalho, abrindo ainda a porteira para uma série de medidas que seguem sendo desenhadas e implementadas (em plena pandemia!). Os trabalhadores uberizados, na condição desta multidão de trabalhadores informais, de saída aparecem fragmentados, individualizados, “empreendedores”, etc, distantes enfim, de organizações coletivas do trabalho. Mas o movimento é dialético, pois esse processo de informalização-monopolização também vai constituindo uma multidão que pode se reconhecer e se organizar enquanto tal. Aí são centenas de milhares, milhões de trabalhadores versus uma empresa. Começamos a ver greves mundiais, latino-americanas, entre outras, de categorias de trabalhadores uberizados. No caso da crise atual, se sobressaem os entregadores. Eles sabem que são informalmente transformados em categoria essencial para o isolamento. Ao mesmo tempo, enfrentam o rebaixamento do valor de seu trabalho (novamente, em plena pandemia!). Começamos a ver as manifestações em diferentes cidades do Brasil e também em diversos países do mundo. 

Mas veja que dilema para o trabalhador uberizado: o dia de manifestação é o dia em que ou ele não recebe nada ou que pode ter aumento nos ganhos devido a menor oferta de entregadores. A consolidação de estratégias de resistência e mobilização que consigam reconhecer esse viver cada dia mais arriscado é um desafio. 

 

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PEQUENOS NEGÓCIOS: ÓRFÃOS NA CORONACRISE

Fabrício Augusto de Oliveira¹

Os gestores da política econômica brasileira arvoram-se de entender de economia e de capitalismo. Logo no início da pandemia, o presidente do Banco Central anunciou que a instituição estava em condições de injetar 1,2 trilhão de reais na economia para atender a demanda de crédito das empresas e garantiu que não faltaria dinheiro para suas necessidades.

Na mesma toada, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) divulgou contar com expressivos R$ 55 bilhões para negociar tanto a suspensão do pagamento dos empréstimos contraídos pelas empresas como oferecer linhas especiais de financiamento para as pequenas e médias empresas, as companhias aéreas, o setor de turismo e os restaurantes, setores mais afetados com o avanço da pandemia.

Somados, os recursos do Banco Central e do BNDES representam 17% do PIB brasileiro, um número para ninguém botar defeito na ajuda que poderia ser prestada às empresas para atender suas necessidades de recursos diante de um faturamento em baixa, visando manter o emprego e conseguir fazer a travessia nessa crise. Faltou aos gestores da política econômica, no entanto, ao desenharem os programas de crédito, maior conhecimento da natureza da crise, da forma de financiamento do sistema bancário e dos critérios que este leva em conta para decidir sobre a concessão de empréstimos e também a heterogeneidade do universo das empresas que operam no sistema.

Como não há necessidade de ser economista para saber que não basta injetar liquidez na economia para expandir os empréstimos, já que outros critérios são utilizados pelos bancos para fornecê-los, o governo procurou criar algumas linhas especiais de crédito, com taxas de juros favoráveis para seus tomadores, entre as quais a mais importante foi a MP 944/20, por meio da qual foram disponibilizados R$ 40 bilhões (R$ 34 bilhões do Tesouro e R$ 6 bilhões dos bancos privados) para essa finalidade.

Para ter acesso a esse crédito, a contrapartida exigida pelo governo limitou-se à exigência de que as empresas se comprometessem com a manutenção do emprego por dois meses, mas transferiu para o sistema bancário – público e privado – tanto a responsabilidade como o risco das operações, dando-lhe liberdade para estabelecer outros critérios condizentes com sua forma de atuação.

Não deu muito certo para a maioria das empresas, principalmente as de pequeno e médio portes que necessitavam – e necessitam – desesperadamente de capital de giro para não naufragar durante a pandemia. Isso, por algumas importantes razões que merecem ser destacadas.

O programa vinculou os empréstimos ao pagamento de salários das empresas e estabeleceu que os mesmos fossem feitos diretamente pelos bancos aos trabalhadores, sem os recursos passarem, portanto, pelo seu caixa, burocratizando todo o processo e praticamente exigindo que as mesmas já tivessem algum relacionamento com o agente bancário ou, se não tivessem que passassem a tê-lo, com seus empregados tendo, também, de nele abrir contas. Ignorou, além disso, que além dos salários, as empresas suportam outros custos, como os que se referem, por exemplo, aos alugueis, à conta de luz, de água, reposição de estoques, entre outros, necessitando de capital de giro para seu pagamento.

Ao transferir a responsabilidade da operação para os bancos e também os seus custos e dar-lhes liberdade para definir outros critérios para a concessão dos empréstimos, permitiu que esses estabelecessem exigências de reciprocidade, contrapartidas e garantias do tomador, limitando seu acesso aos mesmos, principalmente para os pequenos e médios negócios que não dispõem de condições para atendê-las.

Não bastasse isso, limitou a concessão dos empréstimos às empresas com faturamento anual entre R$ 360 mil e R$ 4,8 milhões, excluindo de seu acesso um número altamente expressivo de micros, pequenas e médias empresas, que são responsáveis por uma parcela também altamente significativa do emprego no país e que, principalmente em virtude da paralisação das atividades econômicas, devido ao isolamento social imposto, viram simplesmente seus negócios e faturamento desabarem.

Nessas condições, não surpreende, assim, que o crédito não tenha chegado principalmente às pequenas e médias empresas. Depois de mais de 40 dias da aprovação deste programa apenas R$ 1,6 bilhão (4% do total previsto) haviam sido liberados pelos bancos que, temendo o elevado nível de inadimplência diante dos riscos colocados pela pandemia, simplesmente optaram por não fornecer estes empréstimos para quem dele mais precisa, criando uma série de dificuldades e exigências para o tomador, a não ser para seus clientes que possuem um histórico de boas notas de crédito.

Por essa razão, projeto do Senado Federal, de criação de uma linha de crédito especial para as micro e pequenas empresas, que terminou sendo confirmado pela Câmara dos Deputados, disponibilizou R$ 15,9 bilhões para a mesma, procurando corrigir alguns problemas da MP 944/20, estabelecendo a garantia pela União de 85% dos empréstimos concedidos e permitindo o uso destes recursos para ações que vão além do pagamento dos salários dos trabalhadores, caso das despesas com luz, água, alugueis, reposição de estoques, entre outras.

Apesar dessas melhorias, o projeto manteve, contudo, as faixas de faturamento para as empresas terem acesso a essa linha de crédito entre R$ 360 mil e R$ 4,8 milhões, excluindo, tal como na MP do Executivo, o universo dos pequenos negócios, com faturamento abaixo de R$ 360 mil. Sancionado pelo presidente da República no dia 19 de maio, tal projeto ainda aguarda regulamentação para entrar em operação, significando que muitas pequenas e médias empresas, que contam com limitado capital de giro e baixíssimas reservas de capital, dificilmente conseguirão escapar de uma situação de falência, carregando com elas o emprego – formal e informal – de milhões de trabalhadores.

Mais grave ainda é que nem a MP 944/20 nem o PL 1.282/20, o Pronampe, do Senado Federal contemplaram, como aponta Carlos Melles, presidente do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), as empresas que faturam de R$ 80 mil a R$ 360 mil, “como a quitanda da esquina, a padaria, o salão de beleza”, cujo universo é considerável e responsável por uma parcela apreciável da mão de obra empregada. Essas estão simplesmente, até o momento, sendo totalmente ignoradas pelo poder público e abandonadas sozinhas no turbilhão devastador da pandemia.

Se tivessem descido do pedestal e consultado o programa de crédito que os Estados Unidos criaram para salvar as pequenas empresas, o Paycheck Protection Program (PPP), a equipe econômica do governo poderia ter aprendido a lidar melhor com essa crise. Para este programa, para o qual foram destinados 670 bilhões de dólares em duas etapas, os empréstimos para essas empresas são 100% garantidos pelo governo – ou seja, o risco dos bancos é zero -, aos bancos é permitido a cobrança de uma tarifa para incentivá-los a ofertar o crédito, e a dívida contratada pode ser perdoada desde que 75% de seu total sejam destinados para o pagamento de salários e que as empresas mantenham o emprego por dois meses. Não é preciso dizer que os recursos do programa rapidamente se esgotaram e chegaram a quem mais dele precisa para manter-se em pé, juntamente com o emprego, na travessia da crise.

Mas é exigir demais de uma equipe econômica adepta do neoliberalismo extremado e disposta a negociar tostões para não ver as contas do governo desabarem, mesmo em plena pandemia, ter sensibilidade para enxergar o que representa a vida humana, e conhecimento do que representam os pequenos negócios para a economia e para o próprio capitalismo. Nessa visão estreita, vale o velho ditado dessa escola: se não têm competência melhor que não vivam e nem se estabeleçam.

NOTAS


¹Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Econômica, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”.
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PASSADO E PRESENTE: AS DESIGUALDADES ESTRUTURAIS DO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO NA CRISE DO COVID-19

Subgrupo de Empregos e Salários¹

A cada dia que passa, as consequências econômicas resultantes da interrupção dos fluxos de renda em virtude do isolamento social reforçam as contradições da sociedade brasileira, agravando os dramas sociais[2]. Entre estes dramas estão as desigualdades estruturais entre homens e mulheres e entre brancos e negros, no mercado de trabalho brasileiro, como reflexo de sua constituição sobre bases escravista e patriarcal. Na medida em que a crise atual atinge o mercado de trabalho, é frente a esta realidade estrutural que ela o faz, atingindo os diversos grupos de trabalhadores e trabalhadoras de formas e intensidades diferentes. Apresentar esta face desigual do mercado de trabalho brasileiro e apontar como ela se relaciona com a crise atual, voltando o olhar para aqueles mais vulneráveis, seja pela natureza de sua ocupação, seja pela precariedade de sua situação econômica, são os objetivos deste texto. 

Como afirma Achille Mbembe[3], é da lógica do capitalismo operar segundo um cálculo que seleciona aqueles que podem ser descartados, tendo em vista que o próprio sistema “é baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver e de morrer”. O neoliberalismo, que o autor prefere qualificar de “necroliberalismo”, acirra ainda mais esta lógica, na qual “alguns valem mais do que outros”. A questão é que dentre as vidas consideradas de menor valor sempre prevalecem as mesmas raças, as mesmas classes sociais e os mesmos gêneros[4]. Tendo em vista que a crise atual nos encontra como somos, suas consequências refletem e aprofundam o processo histórico de naturalização do papel subordinado da mulher e dos negros em uma sociedade injusta e desigual.

As assimetrias do mercado de trabalho brasileiro se evidenciam nos rendimentos médios, nas taxas de desocupação e de subutilização da força de trabalho, bem como no grau de formalização das relações trabalhistas. Por qualquer indicador que se investigue, mulheres e negros estão mais sujeitos à condição de precariedade. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), no último trimestre de 2019, a taxa de desemprego foi de 11%. As dificuldades em alcançar uma nova ocupação, no entanto, não se distribuem simetricamente entre homens e mulheres, brancos e negros. Conforme se vê na tabela abaixo, são as mulheres negras as mais atingidas pelo desemprego (15,6%). Este número é mais que o dobro da taxa de homens brancos que procuraram uma ocupação no mesmo período e não encontraram (7,4%). 

Tabela 1: Taxa de desocupação e de subutilização (2019).
 
* Categorias preta e parda da variável de cor/raça do IBGE;
** Desocupação, subocupação e força de trabalho potencial;
Fonte: PNAD Contínua. Elaboração com base nos dados coletados pelo CESIT/Unicamp.

Com base nos números da subutilização da força de trabalho, as mulheres negras aparecem, mais uma vez, como o grupo mais vulnerável (33,2%, no último trimestre de 2019). Isso significa que o contingente de desocupados, subocupados e de força de trabalho potencial[5] é maior, em termos proporcionais, entre as mulheres negras. Considerando os dados do último trimestre de 2019 com recorte de sexo, são cerca de 6,2 milhões de mulheres desocupadas, 3,6 subocupadas e 4,5 milhões de trabalhadoras na força de trabalho potencial. Em todos estes casos, o contingente de mulheres ultrapassa, em termos absolutos, o de homens. No corte por raça/cor, trata-se de 7,5 milhões de negros desocupados, 4,5 milhões subocupados e 5,5 milhões na força de trabalho potencial. Em todos os casos, o contingente de negros ultrapassa, em termos absolutos, o de brancos.

Outro indicador que evidencia a desigualdade no mercado de trabalho brasileiro é a informalidade. Embora o alto índice de trabalho informal seja um problema histórico do mercado de trabalho brasileiro, atingindo tanto homens e mulheres, como negros e brancos, ele prepondera entre a população negra. 

As trabalhadoras domésticas

O impacto é significativo sobre as mulheres negras, sobretudo em virtude do trabalho doméstico, já que elas representam cerca de 60% do total de trabalhadores nesta ocupação, conforme dados para o ano de 2019. Ao mesmo tempo, mais de 75% das mulheres negras que realizam trabalhos domésticos remunerados não possuem carteira de trabalho assinada, ou seja, são trabalhadoras que muitas vezes possuem jornadas de trabalho longas com baixa remuneração (cerca de R$ 800,00 em média, conforme dados de 2019). Levando em consideração apenas o corte por sexo, as domésticas são 90% dos trabalhadores nessa ocupação, sendo que mais de 70% encontra-se na informalidade, como mostra o gráfico abaixo. 

Gráfico 1: Percentual de trabalhadoras domésticas e nível de informalidade sobre o total da ocupação (2019)

 


Fonte: PNAD Contínua. Elaboração própria. 

O peso dos trabalhadores domésticos no mercado de trabalho no Brasil fica claro quando se percebe que no último trimestre de 2019, 6,6 milhões de trabalhadores estavam ocupados em alguma forma de trabalho doméstico remunerado, destes a maior parte era mulher e negra. Estes números, que levam o Brasil a ter a maior população de trabalhadores domésticos do mundo[6], refletem uma cisão social reproduzida a partir da escravidão. Em sociedades escravistas, toda forma de trabalho físico, inclusive o doméstico, é tida como imprópria para as elites brancas. Por esta razão, tornou-se comum a existência de batalhões de escravos domésticos primeiro nas Casas Grandes e, depois, nos sobrados urbanos. Com o fim da escravidão, esta mesma lógica foi sustentada, tendo como alicerce um enorme contingente de trabalhadores desocupados, o que permitia a manutenção das domésticas a um baixo custo. Os salários baixíssimos e condições de trabalho em extrema precariedade são os elementos que permitem que até hoje a contratação de empregadas fixas ou diaristas seja tão comum no Brasil, mesmo entre cidadãos das classes médias. 

Por outro lado, para um enorme contingente de trabalhadores, com pouca ou nenhuma escolaridade e difícil acesso a outras formas de ocupação, o trabalho doméstico aparece como a única possibilidade de remuneração. Este elemento fica claro no estudo realizado pelos economistas Virginia Rolla Donosco e Carlos Henrique Horn[7] que mostra como a desestruturação do nível de atividade econômica e do mercado de trabalho após a recessão iniciada em 2015 converge com um aumento do número de empregadas domésticas, sobretudo aquelas que não possuem carteira assinada. Os autores apontam que esse é um movimento que vai na via contrária ao que estava acontecendo no período precedente com acentuada redução do total de empregadas domésticas, demonstrando que o trabalho doméstico é uma alternativa concreta e em alguns casos única em tempos de crise. 

O exemplo das trabalhadoras domésticas evidencia como os problemas conjunturais vão se sobrepondo a uma estrutura historicamente assimétrica, reforçando essas desigualdades. É por isso que a precariedade estrutural da posição destas trabalhadoras no mercado de trabalho, que já vinha se agravando desde 2015, tende a ser aprofundada no atual contexto, seja pela perda de renda no caso daquelas que perderam suas ocupações, seja pela exposição à doença no caso das que seguem trabalhando[8]

Outro aspecto do trabalho doméstico é percebido nos casos em que as tarefas da manutenção da casa são realizadas pela própria família. Nestes casos, comuns dentre as famílias mais pobres, as horas de trabalho dedicadas, essencialmente pelas mulheres, ao preparo da alimentação, cuidados com a casa, cuidado das crianças e idosos da família não são remuneradas. Em diversos casos essas longas jornadas de trabalho reprodutivo somam-se às horas de trabalho remunerado levando a que a sobrecarga de trabalho entre as mulheres apareça como uma das principais dificuldades da manutenção das mulheres no mercado de trabalho. Não é possível entender esse fenômeno sem remeter à divisão sexual de trabalho, um conceito que expressa essa diferenciação entre o que é considerado socialmente como trabalho “de homem” e trabalho “de mulher”. O atual contexto de isolamento tem escancarado este problema já que, ao inviabilizar a contratação de trabalhadores domésticos, trouxe uma sobrecarga ainda maior às mulheres que antes podiam delegar essas tarefas a outras.

 A interface entre as desigualdades estruturais e a crise do coronavírus também se expressa nos chamados trabalhadores essenciais[9], sobretudo nas ocupações atreladas ao “cuidado”. É certo que todos os trabalhadores essenciais estão mais expostos ao vírus, pois acabam colocando em risco sua saúde, em maior ou menor medida, por lidarem diretamente com muitas pessoas todos os dias. No caso dos profissionais de saúde, essa exposição é ainda maior. A morte de 110[10] enfermeiros (as) até 21 de maio mostra o lado mais chocante desta exposição. Este número está muito acima do número de profissionais de saúde mortos em outros países com mais óbitos que o Brasil[11].

As profissionais do setor de saúde 

Os dados mostram que a maioria desses profissionais mortos são mulheres[12] (não há menção sobre a raça/cor) em conformidade com o perfil desta categoria. Os dados da PNAD Contínua de 2019 mostram que as mulheres são 86% das técnicas de enfermagem e 83% das enfermeiras com nível superior. Os brancos são maioria entre os enfermeiros com nível superior, enquanto entre os profissionais de enfermagem de nível técnico, o predomínio é de negros, com 57,2% frente a 42,8% de brancos. Entre os médicos é substantivo o predomínio dos brancos (81,5%), sendo a divisão por sexo mais equilibrada (52,2% de homens e 47,8% de mulheres). Em geral os profissionais da área de saúde apresentam alta taxa de formalização nas relações de trabalho. Em relação à remuneração, se destaca a renda média dos médicos que no final de 2019 chegava a R$ 15.726,80, enquanto a de enfermeiros correspondia a R$ 4.605,20 e a dos técnicos em enfermagem à R$ 2.109,70. A renda média da população ocupada no mesmo período era de R$ 2.340,00. 

Estes números refletem as características estruturais da sociedade brasileira cuja natureza mostra como as desigualdades de classe, gênero e raça estão profundamente entrelaçadas. É possível perceber o predomínio de mulheres em atividades ligadas ao cuidado. Essa atribuição de papéis diferenciados coloca as mulheres sempre na condição inferior, a exemplo do trabalho vinculado às atividades de cuidado ao qual é atribuído menor valor social e monetário. No exercício da medicina, mais bem remunerado, prevalece homens brancos, enquanto entre os técnicos de enfermagem, cuja remuneração média corresponde a 13% da renda dos médicos, prevalecem mulheres negras. 

Para além das desigualdades estruturais, o cenário da pandemia trouxe uma piora da condição de trabalho destes profissionais. É o caso de enfermeiras que relatam que diante da escassez de equipamentos de proteção, usam fraldas durante o trabalho de modo a não precisarem se desparamentar dos equipamentos de segurança cada vez que necessitam ir ao banheiro. Os relatos de jornadas extenuantes, de picos de estresse e de contato direto com a morte ilustram as páginas de jornais desde o início do agravamento da crise sanitária no Brasil[13]

Os entregadores à domicílio 

Os profissionais da saúde, pela natureza da profissão, são os mais vulneráveis ao vírus, mas não são os únicos. O caso dos entregadores à domicílio tem tido destaque pelo aumento do uso deste serviço em meio a pandemia. Nesta categoria, em que prevalecem homens com baixa remuneração e sem direitos trabalhistas, as condições de trabalho têm piorado nos últimos meses. Os trabalhadores relatam que apesar de estarem trabalhando mais durante a pandemia, tiveram uma redução significativa do salário e não receberam equipamentos de proteção das empresas[14]

Não se sabe quantos trabalhadores estão nessa condição, seja como motofretistas, bike boys e motoristas ligados ao transporte de pessoas. Estudos indicam que quatro milhões de pessoas trabalham para essas plataformas no Brasil[15]. O crescimento dos serviços providos por aplicativos de celular de transporte de pessoas por carro particular e de entregas por meio de motocicletas ajuda a explicar a forte elevação do emprego informal e das ocupações por conta própria nos últimos anos. Por meio da PNAD Contínua é possível visualizar o perfil dos trabalhadores ocupados como condutores de automóveis e condutores de motocicleta, dentre os quais certamente se encontram grande parte dos profissionais aqui mencionados. No caso dos condutores de motocicleta, 97,2% são homens e 67,9% negros. O percentual de informais é muito alto (77,6%). Entre os condutores de automóveis, a informalidade atinge 71,9% dos ocupados. 

Como o perfil dos trabalhadores da saúde e dos transportes demonstra, a precarização do trabalho é um fenômeno que atinge a homens e mulheres em diferentes medidas a depender do tipo da ocupação. Em todos os casos os negros e negras são os profissionais mais expostos, com ocupações mais precárias e de menor rendimento. Tal fenômeno é consequência da construção desigual do mercado de trabalho brasileiro. Neste caso, se percebe a reprodução ao longo do tempo tanto dos padrões de comportamento de uma sociedade patriarcal, quanto dos reflexos dos mais de 300 anos de escravidão. 

Diante do que foi apresentado, fica claro como as históricas desigualdades da sociedade brasileira interferem e são intensificadas na crise atual. O mercado de trabalho no Brasil, reproduzindo a lógica patriarcal e racista, opera um sistema de exclusão e invisibilização de alguns trabalhadores que os efeitos da pandemia escancaram. Outra vez, como em todos os momentos de crise aguda, o cerceamento do direito à vida de mulheres e negros, grupos historicamente marginalizados, só se aprofunda. 

NOTAS


[1] Contribuíram diretamente para a redação desta nota Ana Paula Colombi, Gisele Furieri, Otavio Luis Barbosa e Rafael Moraes.
[2] Estima-se que a economia brasileira poderá encolher até 11% em 2020, quadro em que 14,7 milhões de empregos seriam perdidos. Conforme: PIB pode cair até 11%, prevê UFRJ. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/05/05/pib-pode-encolher-ate-11-preve-ufrj.ghtml
[3] MBEMBE. A. Necropolítica. Brasil pela N-1 edições, 2018.
[4] Pandemia democratizou poder de matar, diz autor da teoria da ‘necropolítica’.
Disponível em: 
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica.shtml
[5] Grupo que reúne as pessoas que procuram um emprego, mas não estariam aptas a assumir caso encontrem, ou as pessoas que estão disponíveis para trabalhar, mas não procuram emprego.
[6] O que faz o Brasil ter a maior população de domésticas do mundo. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43120953.
[7] Evolução recente do emprego doméstico no Brasil. Disponível em: http://www.dmtemdebate.com.br/evolucao-recente-do-emprego-domestico-no-brasil/
[8] A prefeitura de Belém, diante do bloqueio total de atividades não essenciais, em meio à crise atual, decretou o serviço doméstico como atividade essencial.
[9] São eles: médicos, enfermeiros, vendedores e atendentes de farmácias, padarias e supermercados, motoristas e entregadores a domicílio, garis, porteiros, dentre outros
[10] Dados do Observatório da Enfermagem, do Cofen. Disponível em: http://observatoriodaenfermagem.cofen.gov.br/
[11] Brasil já perdeu mais profissionais de enfermagem para o coronavírus do que Itália e Espanha juntas. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-06/brasil-ja-perdeu-mais-profissionais-de-enfermagem-para-o-coronavirus-do-que-italia-e-espanha-juntas.html
[12] No caso dos 137 enfermeiros mortos registrados pelo Cofen, 70 são mulheres (64%) e 40 homens (36%).
[13] A luta contra o coronavírus tem o rosto de mulheres. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-02/a-luta-contra-o-coronavirus-tem-o-rosto-de-mulheres.html
[14] Coronavírus: entregadores de aplicativo trabalham mais e ganham menos na pandemia, diz pesquisa. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52564246
[15] Dormir na rua e pedalar 12 horas por dia: a rotina dos entregadores de aplicativos. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48304340

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