BOLETIM N°62 | JUNHO DE 2020

RECESSÃO E PANDEMIA: A CRISE ANUNCIADA

 

O Boletim de Conjuntura em Economia da Ufes chega a sua 62ª edição com diversas reformulações. Todas elas têm como objetivo tornar o texto mais dinâmico e conciso. No novo formato, as análises sobre Nível de Atividade, Política Fiscal e Setor Externo foram unificadas em um único texto, que abre o boletim. A segunda seção compreende a contribuição do subgrupo de Política Monetária e Inflação e a terceira trata dos Empregos e Salários. A tradicional análise da Política Econômica, produzida pelo economista Fabrício de Oliveira, fecha o texto. Outra novidade aparece no anexo estatístico, ao final do boletim, com as variações dos principais indicadores econômicos nos últimos cinco anos.

Além disso, a proposta é que, a cada edição, as análises feitas pelos estudantes apresentem um recorte temático. Neste semestre, como não poderia ser diferente, as análises voltam-se para os desdobramentos da crise econômica derivada da pandemia de Covid-19. Ainda que nem todos os efeitos da crise econômica tenham sido captados pelos números disponíveis até o fechamento das análises, já são claras as suas consequências sobre a atividade econômica.

O subgrupo de Nível de Atividade, Política Fiscal e Setor Externo apresenta uma análise atual dos números relativos ao PIB, às contas públicas e à dinâmica do Balanço de Pagamentos brasileiro, inserindo-a num contexto histórico de longo prazo, desde 2015. Assim, os dados que indicam o comportamento da economia brasileira, em relação a essas três grandes abordagens, no primeiro trimestre de 2020, incluindo a influência exercida pelos efeitos da crise sanitária que assola o país e o mundo, são analisados não apenas à luz dos últimos acontecimentos, mas como herdeiros de uma crise econômica que se arrasta há cinco anos.

Quanto à Política Monetária e Inflação, o que aparece em destaque na análise é a percepção
de que os indicadores monetários já apontavam desde o início do ano para a continuidade da estagnação na economia. A crise oriunda da pandemia fez agravar este cenário, ampliando severamente as incertezas quanto ao futuro.

A análise do mercado de trabalho brasileiro, realizada na seção “Empregos e Salários” mostra como a crise atual atinge as trabalhadoras e os trabalhadores brasileiros, aprofundando um processo, já em andamento, de deterioração do mercado de trabalho. Destaca, ainda, que a perda de postos de trabalho após a pandemia tem afetado de forma mais intensa e veloz àqueles que ocupavam as posições mais vulneráveis – os informais.

Por fim, a análise da Política Econômica mostra como as previsões quanto ao cenário da economia global estão sendo revistas dia após dia, apontando para um futuro bastante nebuloso. Neste sentido, o Estado é novamente convocado para servir de esteio à economia, “salvando o sistema da ruína”. Na contramão, contudo, o governo brasileiro parece apostar em uma saída rápida da crise, sem promover uma real ruptura com as políticas de austeridade dos últimos anos.

Nós, professores e estudantes, do Grupo de Conjuntura convidamos a todas e todos para a
leitura dos textos produzidos para a presente edição.

Boa leitura!
Grupo de Conjuntura

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ENTRE MOTORISTAS E ENTREGADORES: TRABALHO ‘UBERIZADO’ AINDA MAIS PRECÁRIO EM MEIO À PANDEMIA

Daniel Guzzo Moratti¹                                                                                                                                 
Otavio Luis Barbosa²


Se meses atrás, antes do início da pandemia, algumas categorias de trabalhadores se mostravam invisíveis, quase inexistentes para a sociedade, hoje pode ser que não seja a mesma realidade. Este é o caso dos entregadores de
delivery e motoristas de aplicativo, como iFood, Rappi, 99Pop e Uber, por exemplo, que passaram a ser trabalhadores essenciais em um momento no qual toda a população precisou parar suas atividades básicas externas para mitigar a propagação do vírus, na tentativa de evitar um colapso do sistema de saúde e uma maior tragédia em virtude da pandemia. 

No auge do debate das medidas econômicas para garantir proteção social à população vulnerável, os olhos se voltam para esses trabalhadores com a única prerrogativa de que somente agora precisam de um resguardo social. A verdade é que esses trabalhadores já enfrentavam no seu cotidiano condições precárias de trabalho para garantir sua sobrevivência sem garantias de direitos trabalhistas e proteção social. Esses postos de trabalhos, precarizados em sua natureza, criados por plataformas digitais com o propósito de melhorar a vida da população recebe o nome de “uberizados” ou, então, “uberização do trabalho”. Este texto tratará disso.

Uberização é um dos termos mais recentes para representar, com características específicas sobre as novas configurações do mercado de trabalho brasileiro, uma perspectiva diferente do que realmente deveria ser a Economia do Compartilhamento (EC). O termo original (sharing economy) ainda é amplamente debatido, desde seu surgimento, no início dos anos 2010, mas, em geral, os defensores dessa nova área da economia a denominam como um novo tipo de negócio. Outros ainda a chamam de um movimento social[3]

Inicialmente, a origem do termo remetia a uma questão de generosidade e compartilhamento de itens entre indivíduos, sendo uma de suas promessas a ajuda prioritária a indivíduos mais vulneráveis, os quais poderiam tomar controle de suas vidas tornando-se microempresários e praticando a autogerência de si, sendo empresários-de-si-mesmo[4]. Dentre as promessas da economia do compartilhamento, a mesma prometia ser uma alternativa sustentável para a circulação de mercadorias em ampla proporção, podendo utilizar recursos subutilizados, ou seja, a ideia de “o que é meu é seu [5]. Nela também estava contido o desejo de compartilhar bens e serviços per meio de plataformas que permitissem essas trocas. 

A própria composição do termo coloca em xeque o que é prometido nesse novo tipo de organização. “Compartilhamento” significa troca entre iguais sem a presença do dinheiro – caráter comercial – ou por motivos de benevolência. Já “economia” sugere trocas mercantis, isto é, o dinheiro como mediador das trocas, por intermédio de interesses privados[6]. Outros nomes que geralmente designam a Economia do Compartilhamento, são: consumo colaborativo; economia em rede; plataformas igual-para-igual; economia dos bicos (gig economy); economia da viração; e economia sob demanda. Todos esses designam uma nova forma de consumo. 

A Uber se define como uma empresa de tecnologia, não de transportes, sendo seu papel principal intermediar usuários e “parceiros” através de uma plataforma, isto é, via aplicativo. Em outras palavras, é uma empresa privada global de assalariamento disfarçado sob a forma de trabalho desregulamentado[7]. Além disso, a Uber também deixa claro o que ela faz e o que não faz[8], sendo o aspecto mais significativo a ausência de vínculo empregatício: “a Uber não emprega nenhum motorista e não é dona de nenhum carro”, além de não se responsabilizar pelos riscos inerentes ao trabalho (ex. casos de assalto, mortes, etc.). 

A empresa tem ocupado um espaço no mundo dos negócios e no mercado que é paulatinamente mais inóspito e desregulado em nossas vidas, bem como tem desempenhado um papel cada vez mais invasivo no processo de trocas[9]. Isto posto, ocorre a externalização dos custos, seguros e riscos para os “parceiros”, mediante a ausência de garantias trabalhistas e sociais. Esse é um processo que também reforça, progressivamente, a informalidade que já era crescente no Brasil.  

No que diz respeito aos custos, a empresa estabiliza cada vez mais seu sucesso em função de não cobrir os preços de seguro, combustível, manutenção e depreciação dos veículos, além de não fornecer um serviço universalmente acessível. Assim, a capacidade de oferecer aos consumidores um serviço barato e eficiente vem da maestria de operar com prejuízo[10] que financia seu crescimento. Sem contar que, quando a empresa começa a operar nas cidades pela primeira vez, ela oferece prêmios e subsídios para motoristas e consumidores para que seu serviço se espalhe de forma a se consolidar positivamente. Após a efetivação da empresa no local novo, ela passa a se apropriar de uma fatia maior de cada corrida. Ademais, os motoristas são colocados em situações de abuso[11] por parte das empresas de tecnologia, uma vez que são obrigados a cumprir metas estabelecidas, frequentemente, dormindo dentro dos carros à espera de uma corrida e perdendo o laço com a família, tendo como consequência adoecimentos, depressão e suicídio[12]

Como se não fosse suficiente a pressão por parte das empresas, os motoristas acabam tendo de tomar uma série de cuidados quanto ao seu comportamento e à qualidade do serviço que oferecem, pois são os consumidores (passageiros) que avaliam os parceiros por meio do aplicativo, sendo uma forma de a empresa saber como está sendo de fato a prestação de serviço. É claro que há muitos que dão notas baixas por motivos desnecessários, ou simplesmente porque o motorista conversou um pouco mais. Isso, por sua vez, estabelece um ambiente de constante vigilância por parte dos motoristas e entregadores, levando à expulsão daqueles cuja nota é inferior à média da região que operam, segundo Tom Slee.

O serviço que a Uber disponibiliza se assemelha ao zero hour contract, modalidade de contrato de trabalho presente no Reino Unido que não possui determinação mínima de horas e tem ganhado espaço pelo mundo. Nessa categoria, os trabalhadores das mais diversas áreas ficam à espera de uma chamada de serviço (just-in-time)[13], em que sua aceitação não é obrigatória. Um dos principais problemas para esse tipo de “contrato” é que o prestador de serviços deve estar à disposição sem receber por esse tempo, sendo que poderia estar fazendo outra atividade remunerada. A maior diferença é que os motoristas parceiros da Uber não podem recusar as corridas que aparecem, sendo passível de represálias por parte da empresa e um possível desligamento. 

O elemento da precarização do trabalho e da gradativa informalidade é uma característica estrutural do mercado de trabalho brasileiro e tem aumentado com o advento do neoliberalismo no Brasil, iniciado em meados da década de 1990, com o avanço da globalização, abertura econômica, desregulamentação dos mercados e da constituição da empresa moderna. Segundo Ricardo Antunes[14], “a precarização não é um elemento estático, mas um modo de ser intrínseco ao capitalismo”, podendo aumentar ou diminuir conforme a organização da classe trabalhadora.

A Uber tem operado no Brasil desde 2014, um ano antes de os indicadores e especialistas declararem a recessão que o Brasil mergulhava, sendo a posterior retomada, a mais lenta de sua história[15]. Contudo, sua predominância em grandes metrópoles e cidades menores se deu a partir de 2016, momento esse que diversos desempregados procuravam por uma renda. A recessão iniciada em 2015 intensificou o processo de precarização do mercado de trabalho brasileiro, devido à elevação do desemprego (até 2017), seguida por uma tímida queda nesse indicador, mas às custas do aumento da informalidade. 

Dessa maneira, a crise foi uma ótima oportunidade para a empresa de fato consolidar seu serviço em solo brasileiro. Para muitos dos que perderam seu emprego ou que acabaram de chegar ao mercado de trabalho, ser motorista tornava-se uma nova oportunidade de obter novos rendimentos. Além disso, para inúmeros trabalhadores que já possuíam ocupações com remunerações baixas, ser motorista ou entregador de aplicativo acabou se tornando um bico para complementar a renda. Há uma vasta quantidade de combinações entre trabalhos formais e informais para garantir a renda. 

As empresas de plataformas digitais, registradas no setor de tecnologia, se apresentam como intermediadoras entre os consumidores e ofertantes de serviços. Essas companhias apenas se responsabilizam pela manutenção das plataformas digitais, portanto, como dito, não assumem qualquer vínculo de relação de trabalho. Nesse sentido, a ausência de um vínculo empregatício põe luz a um aspecto de falsa liberdade ao trabalhador de que as empresas utilizam para reforçar o discurso de auto gerência da força de trabalho. Ao contrário dos pretensos benefícios dessa condição de trabalho, tem-se uma intensificação das jornadas de trabalho e, por conseguinte, sua precarização. Um exemplo é a inexistência de uma jornada de trabalho fixa, colocando aos trabalhadores a escolha em cumprir uma carga horária que melhor pode lhe satisfazer. No entanto, a remuneração é definida de acordo com um percentual de cada serviço realizado, o que torna todo o tempo possível um potencial de ganho, um tempo de trabalho. 

Além disso, essas novas formas de ocupações geradas pela economia do compartilhamento estabelecem que o trabalhador deve se submeter à autogerência de si e, portanto, à responsabilização sobre os riscos que corre. Assim, é imprescindível notar, nesse caso, a auto responsabilização do sujeito pelas suas condições básicas de reprodução e seu eventual fracasso, um aspecto presente no atual padrão de sociabilidade neoliberal[16].

Em meio à atual pandemia, em que as medidas por parte do Estado se mostram insuficientes para proteger aqueles que não possuem qualquer proteção social, esse caráter individualista e de crença que o sujeito pode fazer o melhor por si mesmo para encontrar a solução dos seus problemas se mostra mais presente. Não obstante, é colocado um difícil dilema para esses trabalhadores entre cuidar da sua saúde ou, então, manter seus rendimentos correndo risco de contágio do vírus. Na falta de opção, alguns não encontram outra saída a não ser continuar e, nesse caso, acabam ingressando nas plataformas como forma de enfrentar os desafios da atual conjuntura.

Nesse sentido, apesar dos riscos de contágio, o número de inscrições no iFood em março foi de 175 mil pessoas, ante 85 mil no mês anterior[17]. Atualmente a empresa conta com mais de 140 mil entregadores e 200 mil terceirizados[18]. No mesmo caminho, o número de entregas de supermercado também aumentou, sendo que, só em março, mês que as medidas de isolamento social ainda não eram tão restritivas, foram 400%. A Rappi alega um crescimento de 30% para o mesmo mês[19]

No entanto, um estudo realizado pela Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir)[20] indica que, mesmo trabalhando mais durante a pandemia, a remuneração dos entregadores teve uma redução significativa. A pesquisa apontou que mais de 60% desses trabalhadores alegaram ter uma redução em seus rendimentos e apenas 10% disseram ter obtido um aumento dos ganhos. A redução dos ganhos desses trabalhadores mostra uma maior intensificação das condições precárias de trabalho, principalmente entre aqueles que possuem uma maior carga de trabalho diária, podendo chegar a mais de 15 horas. Apesar do risco de contágio e a letalidade do vírus, as empresas de prestação de serviço por aplicativo pouco têm feito pela proteção de seus “parceiros”. Ainda de acordo com a Remir, mais de 60% alegam que as empresas não tomaram qualquer ação para proteção e cuidados com a saúde deles. 

Entretanto, todos esses trabalhadores enfrentam o mesmo problema: a insuficiência por parte das empresas em ajudar na proteção de suas saúdes. A maioria deles relata que as empresas-aplicativo não têm feito o suficiente para garantir um trabalho minimamente seguro durante a pandemia. Para os entregadores, algumas empresas têm oferecido álcool em gel e a medição de temperatura; já para os motoristas, além do álcool, eles devem atualizar frequentemente a foto do aplicativo antes de começar a viagem para comprovar o uso de máscara. Os consumidores têm a opção de pagamento via aplicativo como uma das saídas para evitar o contato físico. A relação existente entre tais empresas e seus parceiros é tão problemática que essas políticas para a garantia da saúde não podem se manter permanentemente, visto que pode ferir o contrato utilizado, isto é, de as empresas não terem qualquer vínculo com os trabalhadores.

 Além disso, a suposta ausência de uma subordinação da força de trabalho com os aplicativos impede a adoção de medidas para proteção dos motoristas e entregadores, como, por exemplo, a implementação de auxílios para o caso de contaminação e seguro de vida para as famílias que podem ficar desassistidas caso o trabalhador venha a óbito em virtude da doença. Empresas, como a Rappi e Uber, oferecem auxílio para quem for infectado, porém, essa medida tem sido insuficiente, uma vez que considera apenas os rendimentos dos últimos meses de trabalho e o limita a 14 dias[21]. Isso, por sua vez, pode acentuar a condição de vulnerabilidade e precarização do trabalhador, especialmente em um momento de saúde frágil.

Sequer estamos próximos do fim da pandemia e já ocorre uma série de resultantes da paralisação das atividades produtivas exacerbando, portanto, as contradições e os limites da relação capital-trabalho na sociedade contemporânea. As novas formas de flexibilização laboral compõem um novo estágio da exploração do trabalho por meio da uberização, a qual traz outro significado para a configuração das empresas e o controle e gerenciamento do trabalho. A atuação do capitalismo de plataforma integra uma frente ampla de empresas que prometem a melhoria da vida da classe trabalhadora, ao mesmo tempo em que há um Estado agindo ativamente para desregulamentar o ambiente propício para a atuação dessas empresas. 

Dessa forma, é de se reconhecer que a pandemia acelerou uma série de desigualdades que estavam sendo gestadas e mantidas na estrutura produtiva e social do país. Em meio à pandemia que afasta familiares e amigos, colapsa o sistema de saúde e custa milhares de vidas todos os dias, outros milhares de pessoas continuam a vagar pelas ruas dos centros urbanos sem a garantia de estar com seus entes no final do expediente, correndo o risco de contrair o vírus. Nem ao menos são reconhecidos como trabalhadores dignos de seus direitos por aqueles com quem estabelecem sua subordinação. Os trabalhadores por aplicativo, expressão das relações de trabalho contemporâneas, são apenas mais um exemplo de um modelo de vida que para existir precisa precarizar o outro.

NOTAS


[1] Graduando em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).

[2] Graduando em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), membro do subgrupo de Empregos e Salários (Conjuntura Ufes) e bolsista do Programa de Educação Tutorial (Pet Economia/Ufes).
[3]SLEE, Tom. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo, Editora Elefante, 2017.
[4] LAVAL, Christian; DARDOT, Pierre. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
[5] Isso remete à originalidade do título da obra de Tom Slee – What’s Yours is Mine: Against The Sharing Economy. Porém, com o propósito de mercantilização das mais simples interações sociais, acaba se tornando “o que é seu, é meu”, uma vez que as empresas aproveitam dos produtos alheios para obtenção de lucro.
[6] Tom Slee. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, cit. 
[7] ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: O novo proletariado de serviço na era digital. 2ª ed. Boitempo editorial, 2020.
[8] Fatos e Dados sobre a Uber, em Uber, 18 fev. 2020. Disponível em:<https://www.uber.com/pt-BR/newsroom/fatos-e-dados-sobre-uber/>
[9] Tom Slee. Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, cit. 
[10] Here Are the Internal Documents that Prove Uber Is a Money Loser [Aqui estão os documentos internos que provam que a Uber dá prejuízo], em Gawker, 5 ago. 2015. Disponível em:  <https://gawker.com/here-are-the-internal-documents-that-prove-uber-is-a-mo-1704234157
[11] Causos de trabalho: 8) Motorista de aplicativos (II). Em Passa Palavra, 16 fev. 20. Disponível em: <https://passapalavra.info/2020/02/129873/>
[12] Ricardo Antunes. O privilégio da servidão: O novo proletariado de serviço na era digital, cit.
[13] Entrevista Ludmila Costhek Abílio. Grupo de Conjuntura da UFES. Vitória, 7 jun. 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3dJtqgH>. 
[14] Ibidem, p. 61.
[15] A retomada da economia brasileira comparada às de crises anteriores. Em Nexo Jornal, 5 mar. 20. Disponível em:<https://www.nexojornal.com.br/grafico/2020/03/05/A-retomada-da-economia-brasileira-comparada-%C3%A0s-de-crises-anteriores>
[16] Christian Laval e Pierre Dardot. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, cit.
[17] Candidatos a entregador do iFood mais que dobram após coronavírus. Em Uol Economia, 1 abr. 20. Disponível em:<https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/04/01/candidatos-a-entregador-do-ifood-mais-que-dobram-apos-coronavirus.htm>
[18] Idem.
[19] Idem.
[20] Coronavírus: entregadores de aplicativo trabalham mais e ganham menos na pandemia, diz pesquisa. Em BBC News Brasil, 7 mai. 20. Disponível em:<https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52564246
[21] “Parceria” de risco: aplicativos lucram com o coronavírus pondo os entregadores em risco de contágio. Em The Intercept Brasil, 23 mar. 20. Disponível em: <https://theintercept.com/2020/03/23/coronavirus-aplicativos-entrega-comida-ifood-uber-loggi/?fbclid=IwAR328opwTXoB5roTmogLD0LLnUKQXwfNLpoVC12FNODTFc-Xtz9MmTPMJ7Q>

 

 

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ENTREVISTA LUDMILA COSTHEK ABÍLIO

Ludmila Costhek Abílio: Formada em ciências sociais pela USP, doutora em ciências sociais pela Unicamp, atualmente é pesquisadora do CESIT-IE/Unicamp. Realiza seu segundo pós-doutorado em economia, dedicando-se junto a outros pesquisadores aos estudos e à consolidação da uberização como um campo de pesquisa no Brasil. 
Por Ana Paula Colombi e Rafael Moraes.
 

Pesquisadora do CESIT-IE/Unicamp, Ludmila Costhek Abílio chama atenção, na entrevista a seguir, para a condição precária dos trabalhadores uberizados em plena pandemia. Chamando-os de trabalhadores just in time, Ludmila problematiza as novidades dessa forma de trabalho, desconstrói a ideia de “empreendedorismo” que paira sobre essas ocupações e revela que a uberização está generalizando o modo do viver periférico. 

1. Nos últimos anos muito se tem falado em “trabalhadores uberizados”. No que consiste este tipo de ocupação e em que ela se diferencia das formas tradicionais? No contexto da crise atual qual a situação destes trabalhadores?

A uberização trata de um novo tipo de informalização do trabalho. Neste sentido, ela se refere ao mesmo tempo a ocupações específicas do mundo do trabalho contemporâneo, tais como o motorista da Uber, o entregador do Ifood. etc… Mais centralmente trata-se de uma tendência que hoje atravessa as relações de trabalho em uma perspectiva global: um novo tipo de organização, gerenciamento e controle do trabalho, que subordina uma multidão de trabalhadores informais, desprovidos de direitos e proteções associados ao trabalho, e que arcam com riscos e custos da sua atividade. Podemos dizer que é um novo tipo de informalização devido aos meios técnico-políticos que operam aí, ou seja, a possibilidade de controlar, sob novas formas, todo o processo de trabalho, incluindo até mesmo a transferência subordinada de decisões sobre o trabalho para o próprio trabalhador, que passa a ser inteiramente responsável por sua sobrevivência. 

Podemos também chamá-los de trabalhadores just-in-time, ou seja, trabalhadores que são, então, reduzidos à pura força de trabalho a ser utilizada de acordo com a demanda. Estão disponíveis ao trabalho, mas não têm qualquer garantia sobre sua própria remuneração, tempo de trabalho necessário para sua reprodução, etc. A grave situação destes trabalhadores durante a crise fica muito evidente. Trata-se de não ter nada que garanta sua própria reprodução além do ganho cotidiano advindo do trabalho. Entretanto, esse ganho também não está garantido, independentemente do quanto esse trabalhador se engaje. A pandemia deixa então evidente não só a precariedade da vida do trabalhador uberizado – que não é só dele mas de grande parte dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros, que vivem no limite da sobrevivência – mas também essas formas atuais de subordinação, controle e exploração. Por exemplo, em recente pesquisa coletiva realizada no âmbito da REMIR, constatamos que apesar de os trabalhadores entregadores desempenharem um serviço essencial à população, as empresas de entrega estão aumentando significativamente seus lucros e faturamento em plena crise, enquanto os rendimentos dos trabalhadores estão sendo reduzidos. Isso, em plena pandemia! 

2. As noções de empreendedorismo, autonomia e liberdade estão associadas ao trabalhador multiplataforma. Isso corresponde com a realidade? As consequências da crise do Covid-19 estão contribuindo para desmistificar esses aspectos perante à sociedade? 

A noção de autonomia e liberdade hoje são pilares para que não se reconheça a subordinação destes trabalhadores e as responsabilidades da empresa. Entretanto, chamá-los de pilares já é um erro pois não são eles que estruturam essas relações. Em realidade, eles sintetizam a legitimação da transferência de riscos e custos para os trabalhadores, além do que venho definindo como autogerenciamento do trabalhador. Ou seja, esse permanece subordinado, não tem o menor poder de negociação sobre sua remuneração, sua carga de trabalho, seu tempo de trabalho. Entretanto, para ele é transferido parte do gerenciamento sobre o trabalho. Podemos entender esse gerenciamento de si também como estratégias de sobrevivência, que garantam sua permanência nessa atividade. Por exemplo, quando olhamos para entregadores ou motoristas uberizados, as supostas liberdade e autonomia se referem basicamente a estratégias que são traçadas pelo trabalhador – tais como definir o melhor período do dia para trabalhar, local de trabalho, tipo de veículo, forma de aquisição (alugado, financiado) etc. Todas estas decisões hoje são processadas e gerenciadas, ou seja, são dados administráveis no imenso cadastro de trabalhadores just-in-time. Tornam-se então elemento controlado da gestão. É aí que começamos a nos deparar com termos como gamificação do trabalho, que expressam essa administração informal e permanente sobre a vida dos trabalhadores. Por exemplo: está chovendo, o entregador tem a autonomia de não colocar sua vida em risco fazendo entrega com a moto, mas ele também pode decidir por tentar ganhar a bonificação que vem justamente quando começa a chover…

Juntam-se a estas noções a de empreendedorismo. Ou seja, você nem mesmo é um trabalhador, mas um chefe de si próprio, que se for forte, criativo, engajado, proativo, sobreviverá no mundo cão da concorrência. A noção de empreendedorismo traz consigo a normalização do risco, mas com um pequeno detalhe: é o risco para o detentor da força de trabalho e não do capital! Traz também a normalização de que o trabalhador – livre como um pássaro, como dizia Marx – sobrevive arriscadamente solitário na sua própria gestão, sem poder contar com qualquer rede de proteção social. Ser empreendedor é estar lançado à própria sorte em um mundo que não oferece qualquer garantia ou proteção; no caso da uberização, é não contar nem mesmo com a segurança sobre qual será a sua remuneração após 12 horas de trabalho. 

3. Você defende a tese de que a “viração” é um aspecto constitutivo da sociedade brasileira e da forma como a classe trabalhadora historicamente travou e trava a luta pela sobrevivência no país. No que se constitui o ato da “viração”? Se ele é constitutivo do mercado de trabalho brasileiro, o que há de novo nas formas atuais de precarização do trabalho? 

Essa questão nos possibilita olhar para nossas categorias de análise e nos interrogarmos sobre o quanto estamos conseguindo expressar a realidade do viver dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros. O primeiro cuidado que temos de ter é o de não associar a viração com o “viver de bicos”. A viração aqui opera como uma espécie de desafio e desestabilização de dualidades que estruturam nossas análises. Ela trata do trânsito entre trabalho formal e informal que vai costurando a vida dos trabalhadores, do engajamento em empreendimentos familiares, do envolvimento com trabalhos que mal são reconhecidos enquanto tais. Estamos em realidade descrevendo as tais estratégias de sobrevivência, que envolvem um autogerenciamento e o engajamento incerto e permanente nas oportunidades instáveis e precárias que vão garantindo o viver. É só olharmos com atenção para a trajetória de um motoboy: distante da figura do “jovem cachorro loko”, em realidade, costuma ser um “pai de família” de quarenta anos, que é motoboy há vinte. Um exemplo, o trabalhador já foi metalúrgico, técnico em telefonia, representante comercial, entre outras ocupações. Hoje é motoboy e, como ele mesmo se denomina, “sacoleiro”, ao mesmo tempo, combinando as entregas com compra e venda de produtos. Isto não é a exceção, é a regra do viver no Brasil. Uma identidade profissional estável, assim como uma trajetória que se orientaria pelo horizonte do trabalho formal são elementos que guiam muito das categorias de análise, mas estão distantes desta realidade. 

Agora, isso não quer dizer que não há nenhuma novidade, pelo contrário, é preciso compreender como estes modos de vida – que constituem a especificidade do desenvolvimento capitalista periférico – vão se atualizando e se transformando. A uberização traz algo de muito novo: este modo de vida periférico é agora subsumido de forma centralizada, monopolizada, gerenciada, administrada. Ou seja, esse modo do viver periférico está sendo incorporado como elemento central destas novas formas de controle e organização do trabalho, podemos ainda aventar que este modo está se generalizando. 

4. A reforma trabalhista, o aumento da informalidade e da exploração do trabalho têm desafiado a capacidade de representação do movimento sindical. Como isso se reflete, na sua opinião, nas formas de resistência desses “trabalhadores uberizados”, sobretudo diante da perda de espaço das organizações sindicais tradicionais? Como a crise atual tende a afetar este cenário? 

A reforma trabalhista mira com muita precisão e brutalidade as forças sociais do trabalho, abrindo ainda a porteira para uma série de medidas que seguem sendo desenhadas e implementadas (em plena pandemia!). Os trabalhadores uberizados, na condição desta multidão de trabalhadores informais, de saída aparecem fragmentados, individualizados, “empreendedores”, etc, distantes enfim, de organizações coletivas do trabalho. Mas o movimento é dialético, pois esse processo de informalização-monopolização também vai constituindo uma multidão que pode se reconhecer e se organizar enquanto tal. Aí são centenas de milhares, milhões de trabalhadores versus uma empresa. Começamos a ver greves mundiais, latino-americanas, entre outras, de categorias de trabalhadores uberizados. No caso da crise atual, se sobressaem os entregadores. Eles sabem que são informalmente transformados em categoria essencial para o isolamento. Ao mesmo tempo, enfrentam o rebaixamento do valor de seu trabalho (novamente, em plena pandemia!). Começamos a ver as manifestações em diferentes cidades do Brasil e também em diversos países do mundo. 

Mas veja que dilema para o trabalhador uberizado: o dia de manifestação é o dia em que ou ele não recebe nada ou que pode ter aumento nos ganhos devido a menor oferta de entregadores. A consolidação de estratégias de resistência e mobilização que consigam reconhecer esse viver cada dia mais arriscado é um desafio. 

 

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PEQUENOS NEGÓCIOS: ÓRFÃOS NA CORONACRISE

Fabrício Augusto de Oliveira¹

Os gestores da política econômica brasileira arvoram-se de entender de economia e de capitalismo. Logo no início da pandemia, o presidente do Banco Central anunciou que a instituição estava em condições de injetar 1,2 trilhão de reais na economia para atender a demanda de crédito das empresas e garantiu que não faltaria dinheiro para suas necessidades.

Na mesma toada, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) divulgou contar com expressivos R$ 55 bilhões para negociar tanto a suspensão do pagamento dos empréstimos contraídos pelas empresas como oferecer linhas especiais de financiamento para as pequenas e médias empresas, as companhias aéreas, o setor de turismo e os restaurantes, setores mais afetados com o avanço da pandemia.

Somados, os recursos do Banco Central e do BNDES representam 17% do PIB brasileiro, um número para ninguém botar defeito na ajuda que poderia ser prestada às empresas para atender suas necessidades de recursos diante de um faturamento em baixa, visando manter o emprego e conseguir fazer a travessia nessa crise. Faltou aos gestores da política econômica, no entanto, ao desenharem os programas de crédito, maior conhecimento da natureza da crise, da forma de financiamento do sistema bancário e dos critérios que este leva em conta para decidir sobre a concessão de empréstimos e também a heterogeneidade do universo das empresas que operam no sistema.

Como não há necessidade de ser economista para saber que não basta injetar liquidez na economia para expandir os empréstimos, já que outros critérios são utilizados pelos bancos para fornecê-los, o governo procurou criar algumas linhas especiais de crédito, com taxas de juros favoráveis para seus tomadores, entre as quais a mais importante foi a MP 944/20, por meio da qual foram disponibilizados R$ 40 bilhões (R$ 34 bilhões do Tesouro e R$ 6 bilhões dos bancos privados) para essa finalidade.

Para ter acesso a esse crédito, a contrapartida exigida pelo governo limitou-se à exigência de que as empresas se comprometessem com a manutenção do emprego por dois meses, mas transferiu para o sistema bancário – público e privado – tanto a responsabilidade como o risco das operações, dando-lhe liberdade para estabelecer outros critérios condizentes com sua forma de atuação.

Não deu muito certo para a maioria das empresas, principalmente as de pequeno e médio portes que necessitavam – e necessitam – desesperadamente de capital de giro para não naufragar durante a pandemia. Isso, por algumas importantes razões que merecem ser destacadas.

O programa vinculou os empréstimos ao pagamento de salários das empresas e estabeleceu que os mesmos fossem feitos diretamente pelos bancos aos trabalhadores, sem os recursos passarem, portanto, pelo seu caixa, burocratizando todo o processo e praticamente exigindo que as mesmas já tivessem algum relacionamento com o agente bancário ou, se não tivessem que passassem a tê-lo, com seus empregados tendo, também, de nele abrir contas. Ignorou, além disso, que além dos salários, as empresas suportam outros custos, como os que se referem, por exemplo, aos alugueis, à conta de luz, de água, reposição de estoques, entre outros, necessitando de capital de giro para seu pagamento.

Ao transferir a responsabilidade da operação para os bancos e também os seus custos e dar-lhes liberdade para definir outros critérios para a concessão dos empréstimos, permitiu que esses estabelecessem exigências de reciprocidade, contrapartidas e garantias do tomador, limitando seu acesso aos mesmos, principalmente para os pequenos e médios negócios que não dispõem de condições para atendê-las.

Não bastasse isso, limitou a concessão dos empréstimos às empresas com faturamento anual entre R$ 360 mil e R$ 4,8 milhões, excluindo de seu acesso um número altamente expressivo de micros, pequenas e médias empresas, que são responsáveis por uma parcela também altamente significativa do emprego no país e que, principalmente em virtude da paralisação das atividades econômicas, devido ao isolamento social imposto, viram simplesmente seus negócios e faturamento desabarem.

Nessas condições, não surpreende, assim, que o crédito não tenha chegado principalmente às pequenas e médias empresas. Depois de mais de 40 dias da aprovação deste programa apenas R$ 1,6 bilhão (4% do total previsto) haviam sido liberados pelos bancos que, temendo o elevado nível de inadimplência diante dos riscos colocados pela pandemia, simplesmente optaram por não fornecer estes empréstimos para quem dele mais precisa, criando uma série de dificuldades e exigências para o tomador, a não ser para seus clientes que possuem um histórico de boas notas de crédito.

Por essa razão, projeto do Senado Federal, de criação de uma linha de crédito especial para as micro e pequenas empresas, que terminou sendo confirmado pela Câmara dos Deputados, disponibilizou R$ 15,9 bilhões para a mesma, procurando corrigir alguns problemas da MP 944/20, estabelecendo a garantia pela União de 85% dos empréstimos concedidos e permitindo o uso destes recursos para ações que vão além do pagamento dos salários dos trabalhadores, caso das despesas com luz, água, alugueis, reposição de estoques, entre outras.

Apesar dessas melhorias, o projeto manteve, contudo, as faixas de faturamento para as empresas terem acesso a essa linha de crédito entre R$ 360 mil e R$ 4,8 milhões, excluindo, tal como na MP do Executivo, o universo dos pequenos negócios, com faturamento abaixo de R$ 360 mil. Sancionado pelo presidente da República no dia 19 de maio, tal projeto ainda aguarda regulamentação para entrar em operação, significando que muitas pequenas e médias empresas, que contam com limitado capital de giro e baixíssimas reservas de capital, dificilmente conseguirão escapar de uma situação de falência, carregando com elas o emprego – formal e informal – de milhões de trabalhadores.

Mais grave ainda é que nem a MP 944/20 nem o PL 1.282/20, o Pronampe, do Senado Federal contemplaram, como aponta Carlos Melles, presidente do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), as empresas que faturam de R$ 80 mil a R$ 360 mil, “como a quitanda da esquina, a padaria, o salão de beleza”, cujo universo é considerável e responsável por uma parcela apreciável da mão de obra empregada. Essas estão simplesmente, até o momento, sendo totalmente ignoradas pelo poder público e abandonadas sozinhas no turbilhão devastador da pandemia.

Se tivessem descido do pedestal e consultado o programa de crédito que os Estados Unidos criaram para salvar as pequenas empresas, o Paycheck Protection Program (PPP), a equipe econômica do governo poderia ter aprendido a lidar melhor com essa crise. Para este programa, para o qual foram destinados 670 bilhões de dólares em duas etapas, os empréstimos para essas empresas são 100% garantidos pelo governo – ou seja, o risco dos bancos é zero -, aos bancos é permitido a cobrança de uma tarifa para incentivá-los a ofertar o crédito, e a dívida contratada pode ser perdoada desde que 75% de seu total sejam destinados para o pagamento de salários e que as empresas mantenham o emprego por dois meses. Não é preciso dizer que os recursos do programa rapidamente se esgotaram e chegaram a quem mais dele precisa para manter-se em pé, juntamente com o emprego, na travessia da crise.

Mas é exigir demais de uma equipe econômica adepta do neoliberalismo extremado e disposta a negociar tostões para não ver as contas do governo desabarem, mesmo em plena pandemia, ter sensibilidade para enxergar o que representa a vida humana, e conhecimento do que representam os pequenos negócios para a economia e para o próprio capitalismo. Nessa visão estreita, vale o velho ditado dessa escola: se não têm competência melhor que não vivam e nem se estabeleçam.

NOTAS


¹Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Econômica, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”.
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PASSADO E PRESENTE: AS DESIGUALDADES ESTRUTURAIS DO MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO NA CRISE DO COVID-19

Subgrupo de Empregos e Salários¹

A cada dia que passa, as consequências econômicas resultantes da interrupção dos fluxos de renda em virtude do isolamento social reforçam as contradições da sociedade brasileira, agravando os dramas sociais[2]. Entre estes dramas estão as desigualdades estruturais entre homens e mulheres e entre brancos e negros, no mercado de trabalho brasileiro, como reflexo de sua constituição sobre bases escravista e patriarcal. Na medida em que a crise atual atinge o mercado de trabalho, é frente a esta realidade estrutural que ela o faz, atingindo os diversos grupos de trabalhadores e trabalhadoras de formas e intensidades diferentes. Apresentar esta face desigual do mercado de trabalho brasileiro e apontar como ela se relaciona com a crise atual, voltando o olhar para aqueles mais vulneráveis, seja pela natureza de sua ocupação, seja pela precariedade de sua situação econômica, são os objetivos deste texto. 

Como afirma Achille Mbembe[3], é da lógica do capitalismo operar segundo um cálculo que seleciona aqueles que podem ser descartados, tendo em vista que o próprio sistema “é baseado na distribuição desigual da oportunidade de viver e de morrer”. O neoliberalismo, que o autor prefere qualificar de “necroliberalismo”, acirra ainda mais esta lógica, na qual “alguns valem mais do que outros”. A questão é que dentre as vidas consideradas de menor valor sempre prevalecem as mesmas raças, as mesmas classes sociais e os mesmos gêneros[4]. Tendo em vista que a crise atual nos encontra como somos, suas consequências refletem e aprofundam o processo histórico de naturalização do papel subordinado da mulher e dos negros em uma sociedade injusta e desigual.

As assimetrias do mercado de trabalho brasileiro se evidenciam nos rendimentos médios, nas taxas de desocupação e de subutilização da força de trabalho, bem como no grau de formalização das relações trabalhistas. Por qualquer indicador que se investigue, mulheres e negros estão mais sujeitos à condição de precariedade. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), no último trimestre de 2019, a taxa de desemprego foi de 11%. As dificuldades em alcançar uma nova ocupação, no entanto, não se distribuem simetricamente entre homens e mulheres, brancos e negros. Conforme se vê na tabela abaixo, são as mulheres negras as mais atingidas pelo desemprego (15,6%). Este número é mais que o dobro da taxa de homens brancos que procuraram uma ocupação no mesmo período e não encontraram (7,4%). 

Tabela 1: Taxa de desocupação e de subutilização (2019).
 
* Categorias preta e parda da variável de cor/raça do IBGE;
** Desocupação, subocupação e força de trabalho potencial;
Fonte: PNAD Contínua. Elaboração com base nos dados coletados pelo CESIT/Unicamp.

Com base nos números da subutilização da força de trabalho, as mulheres negras aparecem, mais uma vez, como o grupo mais vulnerável (33,2%, no último trimestre de 2019). Isso significa que o contingente de desocupados, subocupados e de força de trabalho potencial[5] é maior, em termos proporcionais, entre as mulheres negras. Considerando os dados do último trimestre de 2019 com recorte de sexo, são cerca de 6,2 milhões de mulheres desocupadas, 3,6 subocupadas e 4,5 milhões de trabalhadoras na força de trabalho potencial. Em todos estes casos, o contingente de mulheres ultrapassa, em termos absolutos, o de homens. No corte por raça/cor, trata-se de 7,5 milhões de negros desocupados, 4,5 milhões subocupados e 5,5 milhões na força de trabalho potencial. Em todos os casos, o contingente de negros ultrapassa, em termos absolutos, o de brancos.

Outro indicador que evidencia a desigualdade no mercado de trabalho brasileiro é a informalidade. Embora o alto índice de trabalho informal seja um problema histórico do mercado de trabalho brasileiro, atingindo tanto homens e mulheres, como negros e brancos, ele prepondera entre a população negra. 

As trabalhadoras domésticas

O impacto é significativo sobre as mulheres negras, sobretudo em virtude do trabalho doméstico, já que elas representam cerca de 60% do total de trabalhadores nesta ocupação, conforme dados para o ano de 2019. Ao mesmo tempo, mais de 75% das mulheres negras que realizam trabalhos domésticos remunerados não possuem carteira de trabalho assinada, ou seja, são trabalhadoras que muitas vezes possuem jornadas de trabalho longas com baixa remuneração (cerca de R$ 800,00 em média, conforme dados de 2019). Levando em consideração apenas o corte por sexo, as domésticas são 90% dos trabalhadores nessa ocupação, sendo que mais de 70% encontra-se na informalidade, como mostra o gráfico abaixo. 

Gráfico 1: Percentual de trabalhadoras domésticas e nível de informalidade sobre o total da ocupação (2019)

 


Fonte: PNAD Contínua. Elaboração própria. 

O peso dos trabalhadores domésticos no mercado de trabalho no Brasil fica claro quando se percebe que no último trimestre de 2019, 6,6 milhões de trabalhadores estavam ocupados em alguma forma de trabalho doméstico remunerado, destes a maior parte era mulher e negra. Estes números, que levam o Brasil a ter a maior população de trabalhadores domésticos do mundo[6], refletem uma cisão social reproduzida a partir da escravidão. Em sociedades escravistas, toda forma de trabalho físico, inclusive o doméstico, é tida como imprópria para as elites brancas. Por esta razão, tornou-se comum a existência de batalhões de escravos domésticos primeiro nas Casas Grandes e, depois, nos sobrados urbanos. Com o fim da escravidão, esta mesma lógica foi sustentada, tendo como alicerce um enorme contingente de trabalhadores desocupados, o que permitia a manutenção das domésticas a um baixo custo. Os salários baixíssimos e condições de trabalho em extrema precariedade são os elementos que permitem que até hoje a contratação de empregadas fixas ou diaristas seja tão comum no Brasil, mesmo entre cidadãos das classes médias. 

Por outro lado, para um enorme contingente de trabalhadores, com pouca ou nenhuma escolaridade e difícil acesso a outras formas de ocupação, o trabalho doméstico aparece como a única possibilidade de remuneração. Este elemento fica claro no estudo realizado pelos economistas Virginia Rolla Donosco e Carlos Henrique Horn[7] que mostra como a desestruturação do nível de atividade econômica e do mercado de trabalho após a recessão iniciada em 2015 converge com um aumento do número de empregadas domésticas, sobretudo aquelas que não possuem carteira assinada. Os autores apontam que esse é um movimento que vai na via contrária ao que estava acontecendo no período precedente com acentuada redução do total de empregadas domésticas, demonstrando que o trabalho doméstico é uma alternativa concreta e em alguns casos única em tempos de crise. 

O exemplo das trabalhadoras domésticas evidencia como os problemas conjunturais vão se sobrepondo a uma estrutura historicamente assimétrica, reforçando essas desigualdades. É por isso que a precariedade estrutural da posição destas trabalhadoras no mercado de trabalho, que já vinha se agravando desde 2015, tende a ser aprofundada no atual contexto, seja pela perda de renda no caso daquelas que perderam suas ocupações, seja pela exposição à doença no caso das que seguem trabalhando[8]

Outro aspecto do trabalho doméstico é percebido nos casos em que as tarefas da manutenção da casa são realizadas pela própria família. Nestes casos, comuns dentre as famílias mais pobres, as horas de trabalho dedicadas, essencialmente pelas mulheres, ao preparo da alimentação, cuidados com a casa, cuidado das crianças e idosos da família não são remuneradas. Em diversos casos essas longas jornadas de trabalho reprodutivo somam-se às horas de trabalho remunerado levando a que a sobrecarga de trabalho entre as mulheres apareça como uma das principais dificuldades da manutenção das mulheres no mercado de trabalho. Não é possível entender esse fenômeno sem remeter à divisão sexual de trabalho, um conceito que expressa essa diferenciação entre o que é considerado socialmente como trabalho “de homem” e trabalho “de mulher”. O atual contexto de isolamento tem escancarado este problema já que, ao inviabilizar a contratação de trabalhadores domésticos, trouxe uma sobrecarga ainda maior às mulheres que antes podiam delegar essas tarefas a outras.

 A interface entre as desigualdades estruturais e a crise do coronavírus também se expressa nos chamados trabalhadores essenciais[9], sobretudo nas ocupações atreladas ao “cuidado”. É certo que todos os trabalhadores essenciais estão mais expostos ao vírus, pois acabam colocando em risco sua saúde, em maior ou menor medida, por lidarem diretamente com muitas pessoas todos os dias. No caso dos profissionais de saúde, essa exposição é ainda maior. A morte de 110[10] enfermeiros (as) até 21 de maio mostra o lado mais chocante desta exposição. Este número está muito acima do número de profissionais de saúde mortos em outros países com mais óbitos que o Brasil[11].

As profissionais do setor de saúde 

Os dados mostram que a maioria desses profissionais mortos são mulheres[12] (não há menção sobre a raça/cor) em conformidade com o perfil desta categoria. Os dados da PNAD Contínua de 2019 mostram que as mulheres são 86% das técnicas de enfermagem e 83% das enfermeiras com nível superior. Os brancos são maioria entre os enfermeiros com nível superior, enquanto entre os profissionais de enfermagem de nível técnico, o predomínio é de negros, com 57,2% frente a 42,8% de brancos. Entre os médicos é substantivo o predomínio dos brancos (81,5%), sendo a divisão por sexo mais equilibrada (52,2% de homens e 47,8% de mulheres). Em geral os profissionais da área de saúde apresentam alta taxa de formalização nas relações de trabalho. Em relação à remuneração, se destaca a renda média dos médicos que no final de 2019 chegava a R$ 15.726,80, enquanto a de enfermeiros correspondia a R$ 4.605,20 e a dos técnicos em enfermagem à R$ 2.109,70. A renda média da população ocupada no mesmo período era de R$ 2.340,00. 

Estes números refletem as características estruturais da sociedade brasileira cuja natureza mostra como as desigualdades de classe, gênero e raça estão profundamente entrelaçadas. É possível perceber o predomínio de mulheres em atividades ligadas ao cuidado. Essa atribuição de papéis diferenciados coloca as mulheres sempre na condição inferior, a exemplo do trabalho vinculado às atividades de cuidado ao qual é atribuído menor valor social e monetário. No exercício da medicina, mais bem remunerado, prevalece homens brancos, enquanto entre os técnicos de enfermagem, cuja remuneração média corresponde a 13% da renda dos médicos, prevalecem mulheres negras. 

Para além das desigualdades estruturais, o cenário da pandemia trouxe uma piora da condição de trabalho destes profissionais. É o caso de enfermeiras que relatam que diante da escassez de equipamentos de proteção, usam fraldas durante o trabalho de modo a não precisarem se desparamentar dos equipamentos de segurança cada vez que necessitam ir ao banheiro. Os relatos de jornadas extenuantes, de picos de estresse e de contato direto com a morte ilustram as páginas de jornais desde o início do agravamento da crise sanitária no Brasil[13]

Os entregadores à domicílio 

Os profissionais da saúde, pela natureza da profissão, são os mais vulneráveis ao vírus, mas não são os únicos. O caso dos entregadores à domicílio tem tido destaque pelo aumento do uso deste serviço em meio a pandemia. Nesta categoria, em que prevalecem homens com baixa remuneração e sem direitos trabalhistas, as condições de trabalho têm piorado nos últimos meses. Os trabalhadores relatam que apesar de estarem trabalhando mais durante a pandemia, tiveram uma redução significativa do salário e não receberam equipamentos de proteção das empresas[14]

Não se sabe quantos trabalhadores estão nessa condição, seja como motofretistas, bike boys e motoristas ligados ao transporte de pessoas. Estudos indicam que quatro milhões de pessoas trabalham para essas plataformas no Brasil[15]. O crescimento dos serviços providos por aplicativos de celular de transporte de pessoas por carro particular e de entregas por meio de motocicletas ajuda a explicar a forte elevação do emprego informal e das ocupações por conta própria nos últimos anos. Por meio da PNAD Contínua é possível visualizar o perfil dos trabalhadores ocupados como condutores de automóveis e condutores de motocicleta, dentre os quais certamente se encontram grande parte dos profissionais aqui mencionados. No caso dos condutores de motocicleta, 97,2% são homens e 67,9% negros. O percentual de informais é muito alto (77,6%). Entre os condutores de automóveis, a informalidade atinge 71,9% dos ocupados. 

Como o perfil dos trabalhadores da saúde e dos transportes demonstra, a precarização do trabalho é um fenômeno que atinge a homens e mulheres em diferentes medidas a depender do tipo da ocupação. Em todos os casos os negros e negras são os profissionais mais expostos, com ocupações mais precárias e de menor rendimento. Tal fenômeno é consequência da construção desigual do mercado de trabalho brasileiro. Neste caso, se percebe a reprodução ao longo do tempo tanto dos padrões de comportamento de uma sociedade patriarcal, quanto dos reflexos dos mais de 300 anos de escravidão. 

Diante do que foi apresentado, fica claro como as históricas desigualdades da sociedade brasileira interferem e são intensificadas na crise atual. O mercado de trabalho no Brasil, reproduzindo a lógica patriarcal e racista, opera um sistema de exclusão e invisibilização de alguns trabalhadores que os efeitos da pandemia escancaram. Outra vez, como em todos os momentos de crise aguda, o cerceamento do direito à vida de mulheres e negros, grupos historicamente marginalizados, só se aprofunda. 

NOTAS


[1] Contribuíram diretamente para a redação desta nota Ana Paula Colombi, Gisele Furieri, Otavio Luis Barbosa e Rafael Moraes.
[2] Estima-se que a economia brasileira poderá encolher até 11% em 2020, quadro em que 14,7 milhões de empregos seriam perdidos. Conforme: PIB pode cair até 11%, prevê UFRJ. Disponível em: https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/05/05/pib-pode-encolher-ate-11-preve-ufrj.ghtml
[3] MBEMBE. A. Necropolítica. Brasil pela N-1 edições, 2018.
[4] Pandemia democratizou poder de matar, diz autor da teoria da ‘necropolítica’.
Disponível em: 
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica.shtml
[5] Grupo que reúne as pessoas que procuram um emprego, mas não estariam aptas a assumir caso encontrem, ou as pessoas que estão disponíveis para trabalhar, mas não procuram emprego.
[6] O que faz o Brasil ter a maior população de domésticas do mundo. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-43120953.
[7] Evolução recente do emprego doméstico no Brasil. Disponível em: http://www.dmtemdebate.com.br/evolucao-recente-do-emprego-domestico-no-brasil/
[8] A prefeitura de Belém, diante do bloqueio total de atividades não essenciais, em meio à crise atual, decretou o serviço doméstico como atividade essencial.
[9] São eles: médicos, enfermeiros, vendedores e atendentes de farmácias, padarias e supermercados, motoristas e entregadores a domicílio, garis, porteiros, dentre outros
[10] Dados do Observatório da Enfermagem, do Cofen. Disponível em: http://observatoriodaenfermagem.cofen.gov.br/
[11] Brasil já perdeu mais profissionais de enfermagem para o coronavírus do que Itália e Espanha juntas. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-06/brasil-ja-perdeu-mais-profissionais-de-enfermagem-para-o-coronavirus-do-que-italia-e-espanha-juntas.html
[12] No caso dos 137 enfermeiros mortos registrados pelo Cofen, 70 são mulheres (64%) e 40 homens (36%).
[13] A luta contra o coronavírus tem o rosto de mulheres. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-02/a-luta-contra-o-coronavirus-tem-o-rosto-de-mulheres.html
[14] Coronavírus: entregadores de aplicativo trabalham mais e ganham menos na pandemia, diz pesquisa. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52564246
[15] Dormir na rua e pedalar 12 horas por dia: a rotina dos entregadores de aplicativos. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48304340

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DESCONSTRUINDO FALSAS VERDADES EM TEMPOS DE PANDEMIA – PARTE II

Vinícius Vieira Pereira
Prof. Departamento de Economia da UFES
Tutor do Programa Pet Economia/UFES

Na primeira parte desse artigo, apresentamos um contraponto à ideia bastante recorrente de que, após passada a crise do coronavírus, deveríamos voltar à normalidade da vida pré-crise. Questionamos o que chamamos de normalidade e apresentamos alguns esforços no sentido de construir cenários alternativos de organização econômica e social futuras, distintos daquele que ora rege a vida na sociedade capitalista contemporânea. Agora é a vez de desconstruir uma segunda “verdade”, que está implícita na forma como a grande mídia vem noticiando a causa da pandemia e da crise econômica dela resultante, isto é, que uma vez provocada por um microrganismo, um vírus, a tragédia que ora nos oprime teria, portanto, sua origem em um fator exógeno ao sistema socioeconômico em que vivemos. Logo, tratar-se-ia de um elemento estranho, externo à sociedade capitalista e, desse modo, suas causas deveriam ser buscadas não no modo como produzimos a nossa vida material e dispomos das forças produtivas, mas, sim, no campo das ciências da natureza, da biologia. Esse pensamento permite, inclusive, referendar o argumento de que tudo ia muito bem, até que um vírus…

Atribuir causas aos fenômenos sociais leva-nos, obrigatoriamente, à construção de determinadas inferências em relação às possibilidades observáveis. Assim, elencamos e definimos as hipóteses que consideramos válidas como sendo as causas mais prováveis. É nesse momento que a escolha de um fator externo como sendo a causa principal do fenômeno emerge como a explicação mais fácil e conveniente. No caso da Covid-19, que expõe a vergonha da barbárie do capitalismo contemporâneo e a fragilidade de sua estrutura social, a atribuição de uma causalidade exógena torna-se a alternativa mais confortável, em especial, para os apologetas do capitalismo neoliberal, seus beneficiários e boa parte da imprensa mundial que não tardam em laçar mão de um velho jargão da ortodoxia econômica e afirmar que a pandemia deve ser tratada como um choque externo. E, nesse caso, caberia ao próprio mercado apontar os mecanismos de correção adequados para um retorno menos turbulento ao equilíbrio e à antiga normalidade. Porém, nada mais desonesto com a realidade dos fatos do que sustentar tal afirmação. Basta apenas um olhar pouco mais crítico.

Começaremos afirmando que a Covid-19 não caiu do céu como um meteoro. Não se trata de um incidente aleatório, ou de um evento causal originado fortuitamente na esfera das ciências naturais. O coronavírus e a sua capacidade de disseminação e destruição originaram-se como parte dinâmica e indissociável do nosso atual sistema social, onde a organização da produção da nossa vida material, ou, a forma como vivemos e produzimos nossa subsistência, obedece aos estímulos que emanam da necessidade de valorização do capital e não das necessidades vitais para a preservação do bem-estar dos indivíduos e a conservação do nosso habitat.

Alinhado a esse pensamento, o professor Jorge Grespan, da USP, afirma que a pandemia apenas potencializou os problemas e as contradições já presentes em nossa sociedade e que estes constituem a essência do modo capitalista de viver. Para ele, os últimos trinta ou quarenta anos de neoliberalismo apenas exacerbaram os antagonismos sociais já existentes no capitalismo, a partir do momento em que se destruiu a capacidade dos governos de gerir com competência os sistemas públicos de saúde e intervir com rapidez e eficiência na produção de mercadorias e serviços para a população em geral. Portanto, para ele, a crise do coronavírus é uma crise endógena ao capitalismo e, assim, suas causas devem ser buscadas na forma de vida e produção em que vivemos[1]

Fazendo um paralelo histórico, a peste negra, que dizimou de um terço à metade da população da Europa ocidental em meados do século XIV, também não pode ser tratada como uma causa externa da crise que marcou o início do fim da sociedade feudal europeia. A peste bubônica, transmitida por uma bactéria ainda ignorada pela ciência até aquele momento, foi gestada no seio de uma sociedade em plena transformação, cujas contradições em processo se transformavam em antagonismos insuperáveis frente ao desenvolvimento do modo feudal de produção. Parecia haver chegado o limite de reprodução material daquele modelo societário.

Muitos foram os fatores internos ao modo feudal de produção que corroboram esse argumento, uma vez que foram responsáveis pela origem das condições propícias ao surgimento e à disseminação da peste bubônica naquela região. O crescimento do número de cidades e a intensificação das feiras, do comércio e das trocas no feudalismo europeu se, por um lado, significaram uma maior aproximação entre as comunas e o estreitamento das relações humanas e de intercâmbio econômico[2], por outro, exigiram a aceleração dos processos de produção de mercadorias, equipamentos e moradias num ritmo muito superior à capacidade de reprodução do sistema feudal[3]. Os avanços tecnológicos registrados na Baixa Idade Média, como os observados nas velas, remos e mastros das galeras para navegação, a rotação de três campos, a carroça de eixo móvel com quatro rodas, o atrelamento de animais, a tração equina, e a canga frontal para os bois, a pavimentação de estradas, o moinho e a roda d’água, bem como o moinho de vento, todos voltados à moagem de cereais, o poço artesiano, a chaminé, a roca em lugar do fuso, a vela e o círio, o alambique clássico para destilação, o álcool e o carbonato de potássio, o relógio mecânico de peso, a arquitetura gótica[4], entre tantos outros, ao mesmo tempo em que ampliaram a capacidade de produção por parte da sociedade, foram incapazes de compensar a depredação ambiental, o esgotamento das matérias primas e a exploração agrícola extensiva e predatória resultantes, de modo que os recursos naturais foram tornando-se escassos e, por fim, exaurindo-se[5]. Além disso, as técnicas de armazenamento e estocagem de grãos, bem como os problemas existentes para a circulação da produção, incompatíveis com o aumento da produção, favoreciam a perda rápida de gêneros perecíveis; a extração da madeira, essencial para construção civil, fabricação de ferramentas, equipamentos e como combustível, bem como a busca por outras fontes de energia provocavam graves desequilíbrios ambientais[6]. A derrubada de florestas e o desmatamento acelerado, a poluição de rios e córregos, a drenagem de regiões pantanosas influenciavam na recorrência das tempestades de areia, dos longos períodos de seca e das chuvas torrenciais. O esgotamento do solo e da natureza, dessa forma, somava-se a esse cenário e respondia, por sua vez, com a queda na produção, enquanto o crescimento populacional pressionava a disputa pelo excedente agrícola e pelas terras aráveis disponíveis, gerando conflitos sangrentos na luta pela terra[7]. Áreas de enormes vazios demográficos passaram a conviver com regiões intensamente povoadas, marcadas pelas aglomerações humanas[8]

Frente a esse processo, a necessidade da ampliação do território econômico e da conquista de novas terras férteis, aráveis ou ricas em metais preciosos provocou um primeiro movimento de expansão mundial. Mesmo as Cruzadas, que embora se constituíssem em expedições militares calcadas em uma disputa religiosa, mostraram, ao longo dos séculos XII e XIII, tratar-se de uma guerra contra o oriente muçulmano pela conquista de áreas econômica e politicamente estratégicas. Pode-se arriscar que daí tenha resultado um primeiro e importante processo de aproximação econômica, comercial e financeira entre as civilizações ocidental e oriental, onde acordos comerciais, trocas monetárias, emissões de letras de câmbio, contratos de fretes e seguros, que tornavam tão lucrativas as “sagradas” expedições para as classes nobre e burguesa, criaram um fluxo perene de mercadorias e pessoas através da Eurásia[9], movimento que, ao ser profundamente estudado pelo historiador Jaques Le Goff, levou-o a identificar, nas práticas e na mentalidade racionalista dos mercadores banqueiros medievais, características semelhantes às dos capitalistas que surgiriam alguns séculos depois[10]. O mundo parecia se integrar em velocidade e intensidade jamais vistas até então.

Mas, se a dinamização do mercado externo e o comércio internacional encurtavam as distâncias, facilitavam o acesso às novas mercadorias e aos serviços e criavam novos hábitos de consumo para as nobres elites encasteladas e endinheiradas, também possibilitavam a disseminação mundial de micro-organismos e doenças antes peculiares apenas a uma determinada região. Afinal, as classes produtoras, formadas pelos pequenos artesãos e operários das oficinas urbanas, servos e, também, pelos camponeses miseráveis que viviam nas terras comunais às margens dos feudos, encontravam dificuldades para se manterem alimentadas e aquecidas, tornando-se organismos frágeis e vulneráveis em um ambiente hostil e favorável à disseminação de moléstias. 

Em suma, a prosperidade e o desenvolvimento econômico que brindaram a sociedade feudal na Europa ocidental a partir do século XI, ao ponto deste período ser equiparado ao de uma revolução comercial[11], também criaram as condições que, três séculos depois, transformar-se-iam em antagonismos capazes de gerarem a própria crise e a destruição dessa sociedade. Crise que se manifestava na impossibilidade de se garantir as condições mínimas de vida, alimentação, higiene e saneamento básico nos núcleos urbanos cada vez mais numerosos e nos feudos mais prósperos. Uma horda de seres fragilizados e expostos à fome, à desnutrição, às moléstias e epidemias que porventura surgissem. Paralelamente, uma medicina pública abandonada, praticamente inexistente, que misturava parcas observações científicas com rituais xamanísticos e influências espirituais[12]. O modo de produção feudal aproximava-se de seu fim e havia produzido, ao longo de três séculos, do XI ao XIV, abundância e vulnerabilidade simultaneamente. Criara, internamente, as causas de sua própria destruição, entre elas, as condições favoráveis à epidemia da peste negra.

Ora, no seio dessa sociedade feudal, o surgimento e a proliferação da bactéria Yersinia pestis, transportada dos ratos para os humanos por meio das pulgas, não podem ser tratados como eventos externos ao modelo societário característico da Baixa Idade Média. Do mesmo modo que o novo coronavírus, que atinge agora a espécie humana e se alastra com tamanha força e facilidade, não pode ser dissociado da forma como vivemos e produzimos nossa vida material nos dias atuais. Se hoje, os que defendem a causação externa da pandemia buscam nos chineses o alvo preferido, na era medieval, a culpa pela peste negra recaiu sobre os judeus, os leprosos e os estrangeiros que, de modo geral, migravam para a Europa Ocidental. Como vemos, a história se repete, mudam-se apenas as personagens.

O capitalismo contemporâneo tratou também de produzir suas próprias contradições, ou as condições necessárias para que surtos pandêmicos de doenças agressivas como a Covid-19 se disseminem de modo letal. Não precisamos de causas externas, pois se quisermos encontrar as causas dessa tragédia, devemos buscá-las na dinâmica interna dos mecanismos de reprodução da sociedade capitalista. Em sua essência, uma sociedade que se move em torno de um sistema cujo funcionamento se pauta nas vantagens e no lucro privados. Como meios de alcançá-los, temos o mercado, a concorrência, a livre iniciativa e o consumo de massa como promessas de felicidade. Baseado no liberalismo econômico clássico, qualquer planejamento da produção social, ou interferência do estado em relação às necessidades sociais, é peremptoriamente rechaçado. O interesse individual e a autossatisfação das necessidades, aliados à mentalidade racional e maximizadora de utilidades do self-made man, fazem do mercado o lócus do prazer ou da dor, e o único alocador eficiente de recursos. O mercado é quem define do que precisamos. Tal sociedade dispensa, inclusive, a interferência do estado.

Assim, em nome do livre mercado, mercantilizou-se tudo, a medicina, os cuidados com a saúde e a vida das pessoas, os alimentos, a educação, a natureza, o meio ambiente. Tudo passou a servir aos negócios e a obedecer rigorosamente aos critérios da contabilidade e dos lucros. Os processos produtivos se adequaram a essa lógica única que norteia a vida da nossa sociedade. Nenhum estado, nenhum governo que esteja sob o domínio do capital e do livre mercado poderá se imiscuir nos assuntos da produção. Segundo essa lógica, o estado deve eximir-se da tarefa de fazer políticas agrícolas e de manter sistemas públicos de saúde, por exemplo. Deve abster-se da educação e da pesquisa, e deixar a construção de moradias por conta dos interesses privados do mercado imobiliário e da construção civil. Deve evitar gastos com hospitais, laboratórios e centros de pesquisa, afinal, o interesse privado é capaz de fazer o mesmo com maior competência. Os medicamentos devem ser produzidos sobre critérios puramente mercadológicos. Disseminou-se até mesmo que o estado sério e o governo comprometido com a ética e o povo não interferem nas cadeias produtivas, não direcionam incentivos para setores de interesse público, não se intrometem nas cadeias de suprimentos e nem na logística da distribuição da produção, ao contrário, preocupam-se apenas em manter as regras do jogo bem claras e suas contas em equilíbrio. Os gastos públicos devem estar sempre em níveis compatíveis com impostos bem baixos. O Estado verdadeiramente preocupado com o seu povo, segundo o mesmo discurso, deve deixar todas as decisões nas mãos dos capitalistas, pois esses, na luta por seus interesses egoístas, acabarão por levar bem-estar e felicidade a todos. Ainda que o façam sem saber que o fazem, afinal, vícios privados se transformam, nessa sociedade mágica, em benefícios públicos[13]. O resultado disso é que o capitalismo, ao longo dos séculos, assim como vimos no caso do feudalismo, produziu antagonismos que ora parecem insuperáveis e insustentáveis.

As políticas de cunho neoliberal, baseadas nos manuais de economia ortodoxa, e as teorias que justificam a necessidade do equilíbrio nas contas públicas e da austeridade fiscal a qualquer custo obrigaram os governos a abandonarem muitos dos setores ligados aos serviços públicos de cuidados básicos de atenção à saúde, alimentação, moradia, saneamento básico e higiene. O resultado é que as pesquisas e a produção de bens ligados à saúde pública, os serviços preventivos e gratuitos ficaram no mais completo abandono. Sucateados foram os hospitais públicos e as UPA’s, as populares unidades de pronto-atendimento, únicas aliadas dos mais pobres nos momentos de aflição. 

Segundo afirma o professor Jorge Grespan, na mesma entrevista já citada, a prova maior das consequências dessas políticas liberalizantes é que os países que mais estão sofrendo com a crise da Covid-19 são aqueles que, proporcionalmente às suas estruturas produtiva e populacional, mais aprofundaram as condições acima listadas. EUA, onde sequer um programa de auxílio de saúde público e gratuito para a parcela mais pobre da população foi aprovado pelo Congresso; Itália e Espanha, que sofreram sobremaneira as exigências de austeridade fiscal impostas pela União Europeia como forma de enfrentar os efeitos da crise de 2008. E para além desses citados por Grespan, não podemos deixar de citar a própria “fornalha chinesa”, Wuhan, assim chamada por se tratar de um dos quatro maiores centros industriais da China, e onde a produção se pauta num autêntico modelo concorrencial internacional, apesar de se tratar de um país socialista, governado por um partido comunista.

Recente reportagem da revista Forbes alertou para um fato que comprova como a estrutura produtiva na sociedade capitalista contemporânea é uma das principais causas da disseminação da pandemia. Inconformado com a incapacidade da economia de redirecionar recursos produtivos e gerar equipamentos de proteção individual na velocidade requerida pela rapidez de contágio da Covid-19, o colunista em questão, especialista em logística de produção, considerava inaceitável o fato de não conseguirmos, após meses de pandemia, produzir cotonetes de algodão para testes de coronavírus, máscaras e álcool gel na quantidade necessária para mitigar os efeitos da doença. E afirma, categoricamente, que a estrutura da produção capitalista mundial precisa ser mais eficiente, resiliente e flexível, capaz de se adaptar e atender às demandas sociais no momento em que isso se fizer necessário, além de gerar menos poluentes, o que somente seria possível com uma mudança radical nas cadeias de suprimentos, que deveriam se tornar mais simples e curtas, capazes de reagirem mais rapidamente às crises[14].

De fato, é inconcebível que uma indústria que se aproxima de sua quarta revolução industrial, a dos robôs, da internet das coisas, da inteligência artificial, da vida digital, não tenha capacidade de produzir cotonete de algodão, máscaras simples de pano e elástico, álcool, equipamentos médicos de proteção. Mas, o problema reside não na capacidade de se adequar, como afirma o especialista da Forbes, mas no interesse de fazê-lo! O que adiantaria modificar toda a cadeia produtiva para atender uma eventualidade? E quando a pandemia passar? Terá sido o tempo suficiente para amortizar o capital investido? E os lucros dos bancos e dos acionistas, terão sido eles atendidos de maneira satisfatória? Talvez, a pergunta que devêssemos fazer é: que tipo de sociedade o modo capitalista de produção forjou? Se tentarmos responder a essa questão, chegaremos bem próximos das causas reais da pandemia. Todas elas internas à economia capitalista. 

Ora, o uso da medicina e da farmacologia com o propósito de atender aos interesses do mercado subordinou os profissionais de saúde, os laboratórios, as universidades e os centros de pesquisa, os hospitais e as fábricas de medicamentos, bem como os gastos em pesquisa e inovação aos critérios puramente financeiros e mercadológicos. A contraface desse processo foi o completo abandono dos sistemas públicos de saúde, incapazes de prover atendimento hospitalar, cuidados preventivos e medicamentos gratuitos quando a tragédia bate à porta. Com o agravante de que o crescimento desordenado das cidades e a precária condição de alimentação, moradia e saneamento básico nas suas zonas periféricas estimulam hábitos propícios à maior propagação de doenças, como a causada pelo novo coronavírus.

Enquanto os laboratórios de medicamentos trabalham exaustivamente para lucrarem com as doenças, a racionalidade econômica ordena o abandono do investimento em pesquisas sobre prevenção. Para especialistas no setor, “a indústria trilionária dos medicamentos não necessariamente atende aos interesses dos pacientes ou de governos, nem mesmo em tempos de pandemia”. Garantindo acesso desigual a remédios mundo afora, “os investimentos em pesquisa priorizam sempre a medicação de uso contínuo e os princípios ativos mais rentáveis do que antibióticos e vacinas”. Além disso, os mesmos especialistas são categóricos em afirmar que o coronavírus expôs um lado obscuro do mercado farmacêutico, qual seja, “o elevado grau de concentração e internacionalização do setor[15], onde um pequeno punhado de poderosas empresas guiam seus negócios movidos por interesses financeiros, e não pelo interesse em proporcionar bem-estar frente às necessidades de bens e serviços peculiares ao campo dos cuidados de saúde[16].  

Mas as causas internas da pandemia não param por aí. O intenso processo de urbanização, inerente ao capitalismo industrial e acelerado pela especulação imobiliária, desenvolveu hábitos alimentares, de vida e de higiene que tornam nossa saúde e nosso sistema imunológico vulneráveis ao ataque de microrganismos mais resistentes. Os alimentos produzidos pela lógica do menor custo-benefício e os remédios ingeridos diariamente, via automedicação e estimulados pelas publicidades lucrativas do tipo “pague 2 e leve 3”[17], aliados às rotinas de trabalho que privilegiam o aumento da produtividade, tronaram-se fatores de risco à saúde das pessoas. Afetando a resistência do corpo em momentos de ameaça viral ou bacteriana, esse modo de vida deixou os indivíduos mais expostos ao contágio de moléstias variadas. Assim, tornaram-se comuns entre nós as doenças funcionais, respiratórias e cardiovasculares, a obesidade, a depressão, a carência de vitaminas e proteínas, a diabetes, entre outras que, agora, são elencadas entre as comorbidades patogênicas e prognósticas que afetam grande parte da população mundial. Sem falar na agricultura, ou melhor, no agronegócio, que abusa do uso de agrotóxicos e se concentra na produção de matérias primas para o mercado externo em lugar da preocupação com a soberania alimentar e com a qualidade do alimento que vai para as mesas das famílias.

Aliada inseparável dessas causas, a intensificação dos fluxos de pessoas e mercadorias entre as mais diferentes regiões do planeta e a rapidez e dinamicidade desses deslocamentos criaram as condições necessárias para a rápida transformação de um surto em epidemia e, desta, para pandemia. De natureza intrínseca e indissociável do sistema econômico e social em que vivemos, a busca incessante por lucros faz com que a essência do capital seja a de dar vazão à sua vocação, expandir-se sobre a maior área possível do globo, reduzindo o tempo de produção e circulação com o intuito de completar o ciclo de valorização do investimento no menor tempo possível. O capital, seja em sua forma industrial, comercial ou financeira, está constantemente derrubando barreiras e desmanchando limites geográficos, diplomáticos e institucionais. Forçando a redução de tributos e a desregulamentação sobre seus movimentos e transações, seus detentores têm exigido, cada vez mais, a flexibilidade das regras que limitem a livre mobilidade de mercadorias e investimentos. E esse processo de integração de pessoas e coisas que confere ao capitalismo sua face cosmopolita precisa se ampliar constantemente, como forma de garantir a manutenção das taxas de lucro, mesmo em momentos críticos. Mas, essa natureza do capitalismo tem suas consequências contraditórias. O primeiro caso confirmado de coronavírus no mundo ocorreu em 17 de novembro de 2019, na província de Hubei, cuja capital, Wuham, importante centro comercial e industrial da República Popular da China, ficou marcada como a cidade de origem da Covid-19. Naquele momento, tratava-se de uma pessoa de 55 anos de idade[18]. Passados seis meses, já são mais de cinco milhões de pessoas infectadas em 182 países no mundo e, aproximadamente, 300 mil mortes confirmadas, mais de 20 mil delas só no Brasil, de acordo com dados de 21 de maio, sem contar os recorrentes problemas de subnotificação. Portos, aeroportos e entradas de cidades estão sendo fechados como forma de conter a disseminação ainda maior do vírus. Mas, barrar a disseminação do vírus significa o mesmo que impedir a valorização do capital, processo suicida para a forma de organização da sociedade contemporânea.

A destruição da natureza e seus biomas deve também ser listada entre as causas da Covid-19, assim como a venda ilícita de animais silvestres que desrespeita as leis protetoras dos animais e eleva a vulnerabilidade às doenças zoonóticas em virtude da destruição de habitats selvagens[19]. Devastação de floretas e áreas de preservação, mudanças climáticas, assoreamento de rios e pesca predatória são apenas alguns fatores internos que têm levado à migração forçada de espécies selvagens para regiões próximas às de criação de animais para consumo humano. As evidências das recorrências de processos semelhantes são muitas. Em reportagem bastante elucidativa, Juliana Gragnani, da BBC, mostra em detalhes como o coronavírus pode estar repetindo o mesmo processo que levou o vírus Nipah, na Malásia, em 1998, a infectar e levar à morte centenas de pessoas na Malásia, Cingapura, Bangladesh e Índia, a partir do momento em que a migração de morcegos famintos levou-os a uma área próxima à de criação de porcos e o vírus, até então presente apenas no morcego, contaminou os porcos, sofreu mutação no organismo suíno e transformou-se em um vírus letal para os seres humanos. Richard Ostfeld, do Cary Institute of Ecosystem Studies, dos EUA, é um dos dez especialistas que, na mesma matéria, afirma que o desmatamento, a ampliação de abertura de áreas para a agricultura e pecuária, e os agrupamentos estranhos de espécies que nunca haviam ocorrido na natureza estão provocando o surgimento de doenças na raça humana derivadas de outras espécies. E Ostfeld conclui que “nós estamos negligenciando o cenário maior (…) pois a alta densidade populacional dos seres humanos e a intensa conexão entre indivíduos e animais silvestres favorecem o surgimento e espalhamento das doenças”. Segundo os especialistas ouvidos na reportagem, devemos conservar a biodiversidade, levando-a mais a sério. “Não deveríamos subsidiar indústrias que não se preocupam com os resultados provocados por suas atividades, afinal, a ciência está nos dizendo que devemos reavaliar nosso relacionamento com a natureza”[20]. Enfim, o fato de não se respeitar os habitats naturais dessas espécies e transformar tudo em arena de lucros são causas inequívocas da pandemia que ora devasta a humanidade. 

Portanto, chegamos a uma conclusão muito semelhante a que havíamos chegado na primeira parte dessa matéria, publicada neste blog, ou seja, ou alteramos o nosso modo de viver ou continuaremos gerando causas internas para fenômenos cruéis e trágicos como o da Covid-19. O cineasta israelense, Amos Gitai, assinou, recentemente uma petição que circula em nível mundial entre artistas e cientistas cuja palavra de ordem é “Não à normalidade”, petição que havia se iniciado no começo de maio, por iniciativa da atriz francesa, Juliete Binoche. A conclusão à qual Gitai chega é a de que precisamos entender qual é a mensagem indireta que esse vírus está tentando passar para a humanidade, de modo geral. Além disso, segundo ele, “esta pandemia exige uma profunda reflexão sobre o nosso modo de viver”, pois “no mundo do depois” não deveria haver lugar “para práticas que destroem a Amazônia”[21]. O primeiro passo para isso, no entanto, é aceitar que precisamos parar de produzir as causas de nossa própria destruição.

Na terceira e última parte deste artigo, trataríamos, inicialmente, de analisar criticamente outro argumento bastante difundido nos primeiros meses da pandemia, o de que a Covid-19 era uma doença democrática, ou seja, atingia igualmente e sem fazer distinções, ricos e pobres, brancos e negros, trabalhadores e patrões. No entanto, a evidência dos fatos falou por si mesma e, aos poucos, foi se tornando cada vez mais difícil e desonesto sustentar tal afirmação. Assim, ao invés de desconstruir essa falsa verdade, uma vez que ela mesma já foi solapada em toda a sua base de sustentação pela evidente e irrefutável desproporção com que a tragédia vem atingindo a grande maioria da população pobre de modo muito mais rigoroso do que o faz com a parcela bem menor e menos frágil de nossa sociedade, nossa argumentação se pautará em demonstrar essa característica trágica e cruel da pandemia que, associada à “eficiência” do mercado, ao abandono das funções por parte do estado, à desigualdade econômica e à indiferença social, tem levado dor e sofrimento à classe trabalhadora e aos desempregados, aos moradores de rua e aos encarcerados, aos pobres, negros e marginalizados de nosso país![22]

Até breve…

NOTAS


[1] Tutaméia entrevista Jorge Grespan. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=OxypqCEDPwY
[2] PIRENNE,  Henri. História econômica e social da Idade Média. São Paulo, Mestre Jou, 1982
[3] ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1991
[4] CALAINHO, Daniela Buono. História medieval do ocidente. Editora Vozes Limitada, 2019.
[5] WALLERSTEIN, Immanuel. O sistema mundial moderno. Porto: Afrontamento, 1990.
[6] BLOCH, March. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1982
[7] ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1991
[8] DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo. São Paulo: Abril, 1985
[9] HUBERMAN, Leo. A História da riqueza do homem. Rio de janeiro: Zahar, 1981
[10] LE GOFF, Jacques. Mercadores e banqueiros da idade média. Lisboa: Gradiva, 1982
[11] LE GOFF, Jacques. O Apogeu da Cidade Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
[12] LEVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 1967, p. 113. Disponível em:   https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5224782/mod_resource/content/1/L%C3%89VI-STRAUS S%2C %20Claude.%20Antropologia%20Estrutural%20%281%29.pdf.
[13] MANDEVILLLE, Bernard. A fábula das abelhas ou vícios privados e benefícios públicos. São Paulo: Unesp, 2017
[14] The Coronavirus Pandemic Showed Why We Need Shorter, Simpler Supply Chains. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/michaelmandel1/2020/05/12/the-need-for-shorter-simpler-supply-chains/# 6d5c5d165290
[15] Combate ao coronavírus expõe concentração da indústria de medicamentos. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2020/04/30/combate-ao-coronavirus-expoe-concentracao-da-industria-de-medicamentos.htm
[16] SANTOS, Sílvio César Machado. Melhoria da equidade no acesso aos medicamentos no Brasil: os desafios impostos pela dinâmica da competição extra-preço. [Mestrado] Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública; 2001. 180 p. Disponível em: https://portalteses.icict.fiocruz.br/ transf.php?script=thes_chap&id=00004304&lng=pt&nrm=iso
[17] Propaganda de medicamentos na internet e nas redes sociais. Disponível em: https://ascoferj.com.br/noticias/propaganda-de-medicamentos-na-internet-e-nas-redes-sociais/
[18] Primeiro caso do novo coronavírus. Disponível em:  https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/ primeiro-caso-novo-coronavirus/
[19] Doenças zoonóticas, as que passam de animais para humanos. Disponível em: https://mar semfim.com.br/doencas-zoonoticas-passam-de-animais-para-humanos/.
[20] Do vírus Nipah ao coronavírus. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/bbc/2020/04/07/do-nipah-ao-coronavirus-destruicao-da-natureza-expoe-ser-humano-a-doencas-do-mundo-animal.htm.
[21] Para cineasta Amos Gitai, a pandemia exige uma reflexão sobre nosso modo de viver. Disponível em: https://www.msn.com/pt-br/noticias/mundo/para-cineasta-amos-gitai-a-pandemia-exige-uma-reflexão-sobre-nosso-modo-de-viver/ar-BB14pWQj?ocid=spartan-dhp-feeds.
[22] Agradeço às fundamentais contribuições dos professores Ana Paula Fregnani Colombi, Gustavo Moura de Cavalcanti Mello, Henrique Pereira Braga e Rafael Moraes, integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisa em Conjuntura, do Departamento de Economia da UFES, para a construção deste texto, não sem antes isentá-los de quaisquer erros que, porventura, o autor tenha cometido.

 

 

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ESTADO E CRESCIMENTO: a recuperação em V, L e U

Fabrício Augusto de Oliveira¹

Uma das principais indagações que têm surgido na atual crise econômica causada pela pandemia diz respeito à forma como o Estado vai resolver o problema do elevado nível de endividamento que viu exacerbado com as políticas de expansão de seus gastos exigidas tanto para salvar vidas como empresas do tormento mundial causado pelo novo vírus.

Para o pensamento econômico dominante, se essas políticas foram mais do que necessárias para evitar o colapso do sistema e evitar o pior, mesmo por ser o único agente do sistema em condições de implementá-las para enfrentar a crise, a realidade pós-epidemia deverá se impor, exigindo ajustes severos em suas finanças para impedir que a instabilidade se instale no sistema, apenas substituindo a crise sanitária por outra crise também grave.

De acordo com as projeções do FMI, os orçamentos e as dívidas públicas, que já destoavam de todas as recomendações feitas pela teoria econômica ortodoxa mesmo antes da crise do coronavírus, devem apresentar-se preocupantemente elevadas ao final dessa pandemia.

No mundo, a relação dívida PIB pode chegar, conforme suas projeções, a 96% do PIB, nas economias desenvolvidas a 122,4%, enquanto a dos Estados Unidos deve conhecer um aumento de 20 pontos percentuais, indo para 131%.

Nas economias emergentes, projeta-se um crescimento de 53% para 62% e, na América Latina, de mais 7,5 pontos percentuais, com a mesma se elevando para 78%. No Brasil, essa relação subiria de 89,5%, na metodologia de cálculo dessa relação utilizada por essa instituição, para 98,2%. A grande pergunta que a teoria econômica vai ter de responder é a seguinte: o que fazer diante deste imbróglio? A este respeito, são três as alternativas que merecem ser examinadas.

A primeira, do pensamento econômico ortodoxo, é a de que o Estado deve retornar à sua condição de agente passivo e retomar o controle dos gastos e dar continuidade à redução de seu tamanho. Só com a sinalização de que se reconstruirão os pilares fiscais, os investidores se sentirão confiantes para retomar os investimentos e relançar a economia numa trajetória de crescimento. A recuperação se daria, de acordo com essa visão, na forma de V, tal como as projeções de crescimento para 2021 que foram feitas pelo FMI, ou seja, de que o crescimento retornará rapidamente e de forma acelerada após a pandemia.

Guiada mais pela fé e pela crença, essa alternativa desconhece a natureza dessa crise, os estragos que têm provocado – e que ainda poderá provocar – sobre a aparelhagem do funcionamento idealizado do sistema econômico, com a falência de muitas empresas, o enfraquecimento financeiro de outras, a queima de capital e o aniquilamento da demanda causada pela queda da renda e do emprego, dado o isolamento social, acreditando numa resposta rápida do capital privado, como sugeriu recentemente, no Brasil, o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Se for por este caminho, provavelmente a economia permanecerá por muito tempo no inferno do baixo crescimento e muitos países no da recessão, com a recuperação assumindo a forma de L, ou seja, com uma recessão prolongada, já que todos os motores do crescimento se encontram desligados, sem que haja uma força capaz de religá-los. Devido ao enfraquecimento e à queima de capital provocado pela crise, à fraqueza da demanda e às incertezas que continuam predominantes sobre a duração da epidemia e o futuro da economia, não há como despertar o animal spirit dos empresários para uma aventura dessa natureza.

A segunda, uma alternativa mais na vertente keynesiana, recuperada na forma da Moderna Teoria da Moeda e, na crise atual, defendida até mesmo por alguns economistas filiados à ortodoxia, de que o Estado, além de cumprir um papel-chave para enfrentar seus desafios, pode ser o único agente também em condições de reaquecer os motores do crescimento, por meio do aumento de seus gastos, mesmo que aumentando expressivamente seu endividamento.

Para essa corrente, não existem riscos do financiamento de seus gastos, mesmo que por meio da emissão de moeda, gerar inflação devido à elevada capacidade ociosa da economia e à fraqueza da demanda. À medida que essa capacidade ociosa for sendo ocupada e as pressões inflacionárias começarem a ser sentidas, a esterilização dos meios de pagamento com a venda de títulos públicos, à taxa de juros inferior ao do crescimento do PIB, juntamente com o aumento da arrecadação dele decorrente, pode muito bem colocar a relação dívida/PIB numa trajetória de declínio.

Se seguida, essa política pode abreviar consideravelmente a recessão, dependendo do tempo de duração da pandemia, e garantir uma recuperação na forma de U, ou seja, com uma recuperação mais rápida do que a situação que ocorreria com a primeira alternativa, considerando que a reorganização da produção e do mercado de trabalho demanda algum tempo e que o próprio Estado terá de lidar, por um período, com finanças mais combalidas.

A terceira, que não exclui a segunda, e que não é ventilada pelos governos e gestores de política econômica, especialmente no Brasil, é a que propõe lançar boa parte do ônus da crise sobre uma (pequena) fração da sociedade detentora da riqueza, que lhe garante apropriar-se de uma parcela expressiva da renda gerada.

Trabalho publicado na Plataforma de Política Social, com o título Tributar os ricos para enfrentar a crise, de autoria de instituições representantes do fisco, estima que a cobrança de impostos adicionais, alguns em caráter temporário, sobre a renda dos indivíduos, os lucros de alguns setores econômicos, os dividendos e as grandes fortunas, têm potencial para aumentar em R$ 270 bilhões a arrecadação. 

Embora a proposta tenha tido como objetivo apontar caminhos e fontes para a constituição de um Fundo de Emergência de R$ 100 bilhões para Estados e Municípios conseguirem dar respostas aos desafios colocados de reforço da capacidade e atendimento do SUS, sua importância é a de revelar, no quadro atual, onde esses recursos podem ser obtidos sem provocar grandes desarranjos para o sistema econômico do ponto vista macroeconômico, apenas deixando os ricos um pouco menos ricos.

Não se trata de nenhuma novidade histórica. Em situações semelhantes à que vivemos, como a da Grande Depressão da década de 1930 e da Segunda Guerra Mundial, os impostos sobre a renda e o patrimônio foram consideravelmente elevados para financiar os gastos ampliados do Estado e, ao contrário do que defendia o pensamento conservador, a economia não somente foi retirada do atoleiro em que se encontrava como inaugurou-se um período de crescimento econômico extraordinário, que se prolongou por cerca de trinta anos e, também importante, com maior harmonia social.

No entanto, a teimosia da ortodoxia em continuar a defender que a cobrança de impostos sobre o capital e os ricos termina sendo prejudicial para a economia e de que o Estado constitui uma fonte de instabilidade para o sistema, com teorias divorciadas do mundo real, mas recebendo o aplauso das classes dominantes por protegerem seus interesses, levou à reversão deste processo a partir da década de 1970, conduzindo novamente o mundo para uma trajetória de aumento persistente da desigualdade e da pobreza.

Se for este o caminho, o que infelizmente não parece nada provável, até mesmo pela escassez de propostas neste sentido, a recuperação na forma de U poderia até ser menos amarga e mais acelerada por que contaria com um Estado com finanças mais equilibradas e em melhores condições não somente de contribuir para continuar reerguendo a economia, mas também para diminuir os efeitos da hecatombe que se abateu sobre as camadas mais vulneráveis da população.


¹ Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma Política Social, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”.
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PARA ALÉM DO CORONAVÍRUS: A MORTE NOSSA DE CADA DIA

Rafael Moraes
Professor do Departamento de Economia CCJE/UFES
Populus, meu cão
O escravo, indiferente, que trabalha
E, por presente, tem migalhas sobre o chão
Populus, meu cão
Primeiro, foi seu pai
Segundo, seu irmão
Terceiro, agora, é ele, agora é ele
De geração, em geração, em geração
Antonio Bechior (1977)

[1]Quando as recentes mortes causadas pelo novo Coronavírus se contam aos milhares[2] e frente a elas o Presidente da República reverbera um estrondoso “e daí”[3], é inegável um sentimento de indignação. Ainda que uma terça parte da população brasileira pareça seguir endossando tudo o que faz e diz o presidente, percebe-se o crescimento da revolta diante de sua, digamos, falta de sensibilidade, frente à morte de milhares de brasileiros.

Antes de nos perguntarmos, contudo, qual a razão da falta de empatia presidencial e de nos revoltarmos diante da naturalização da morte em nome do progresso econômico, deveríamos nos perguntar como foi possível chegarmos a esta situação. Seriam o presidente e seus seguidores, especialmente odiosos, mesmo quando comparados aos neoliberais que até ontem cerravam fileiras a seu lado? Ou seria Bolsonaro apenas a face mais despudorada dentre os entusiastas de uma estrutura social que se acostumou a matar? Nos parece que a última alternativa é mais fiel à história e este breve texto se propõe a demonstrar isso.

Quase nada do que se escreverá aqui deve ser visto como uma especificidade brasileira. O fato de tomarmos nosso país como objeto de análise não se deve a nenhuma característica especial. Quase tudo o que se conclui aqui poderia ser dito sobre qualquer outro país. É certo, contudo, que “do lado de baixo do equador” todo terror é desprovido de pudor. Aqui vemos mais de perto e melhor.

Se procurássemos defender que a naturalização da morte em nome da economia, que o presidente parece reverberar, fosse uma especificidade de seu nefasto governo, portanto, totalmente incompatível com a sociabilidade capitalista moderna, teríamos que demonstrar que tal fenômeno não aparece em outros momentos de nossa história, tratando de uma infeliz exceção à regra. Tal engenho, seria certamente uma tarefa inglória. O fato é que a naturalização da morte não aparece ocasionalmente em nossa história, mas se impõe como a característica mais marcante de nossas vidas desde a formação disso que chamamos Brasil. 

Não se trata de questionar aqui a existência em si da morte, enquanto uma condição própria a tudo o que é vivo, mas sim de analisar a forma como a morte do outro foi sendo assimilada como uma condição necessária à sobrevivência do organismo social. Não seria possível reduzir esta forma de sociabilidade que se alimenta da morte ao sistema capitalista, tendo em vista que a morte como resultado do embate entre diferentes grupos sociais está presente ao longo de toda a história da humanidade. A novidade advinda a partir desta nova organização social centrada no capital está na precificação da morte, ou seja, na justificativa monetária para o acúmulo de cadáveres. E nesta História, o Brasil ocupa um capítulo central. 

Constituída como uma empresa mercantil destinada a ofertar recursos naturais aos recém criados Estados europeus[4], a economia brasileira já nasceu contaminada pelo pecado original do extermínio dos índios. A despeito das dificuldades em se avaliar o número de habitantes do território onde hoje é o Brasil, antes da chegada dos portugueses, as estimativas mais conservadoras[5] apontam que viviam aqui em torno de 2,5 milhões de nativos. Após a ocupação, em meados do século XVII, essas populações não chegavam a 10% desse número, dizimadas por conflitos, trabalhos forçados e, principalmente, por diversas doenças trazidas pelos europeus, frente às quais não tinham imunidade. O massacre de pelo menos 2 milhões de nativos[6], em nome do ingresso do Novo Mundo na economia mercantil europeia foi nosso batismo em uma história repleta de cadáveres produzidos pelo progresso econômico.

Ao mesmo tempo em que nativos eram mortos, o sucesso da produção açucareira, e depois mineira e cafeeira, demandava cada vez mais braços. O sequestro e posterior tráfico de africanos para trabalharem nas Américas atendeu a essa necessidade do capital europeu. De 1514 a 1853 chegaram ao Brasil por volta de 5,1 milhões de homens e mulheres negros escravizados. Não bastasse a tragédia contida apenas neste número, ele oculta uma faceta das mais cruéis da história do tráfico negreiro durante o período colonial. Os dados referentes ao transporte de cargas humanas entre a África e o Brasil registram uma diferença de quase 800 mil homens entre o número de embarcados nos portos africanos e o total desembarcado no Brasil. Esta diferença reflete o grande número de negros que embarcavam, mas não chegavam vivos ao destino, tendo seus corpos atirados no mar[6]. Ao longo do século XIX, com as pressões inglesas pelo fim do tráfico, o número de mortes durante a viagem seria ainda mais elevado, pois tornou-se comum a prática de lançar ao mar toda a carga de homens ainda vivos, destruindo assim qualquer prova que pudesse levar a um processo por descumprimento à proibição ao tráfico[8]. O fato de o tráfico não ter cessado mesmo diante desta revoltante prática só reforça a percepção do enorme volume de recursos angariados pelos comerciantes de gente. A morte em suas formas mais apavorantes era apenas um detalhe em meio a tanto ouro. 

A situação dos que chegavam aos portos de Recife, Salvador ou Rio de Janeiro certamente não era muito superior à daqueles que ficavam pelo caminho. Uma vez desembarcados no Brasil, os negros esperavam por horas ou dias nos diversos mercados de homens espalhados pelas regiões portuárias destas cidades até serem comprados e levados a seu local de trabalho. A maioria dos escravizados no Brasil trabalhavam em fazendas, minas ou engenhos. O extenuante trabalho praticado nestes campos fazia com que a morte por excesso de trabalho, doenças ou mesmo resultado da violência dos senhores fosse a regra. Em meados do século XIX, dizia-se que após três anos da compra de um lote saudável de homens, pouco mais de um quarto dele ainda permaneceria vivo nas fazendas. Em torno de 88% dos nascidos sob a escravidão não passavam da infância. A violência física era a lei nas relações entre senhores e negros escravizados. Os casos de rebeldia eram punidos com brutalidade exemplar e algemas, argolas, palmatórias, troncos, chicotes, anjinhos[9], e, no limite, a morte eram instrumentos recorrentes no controle da força de trabalho[10]. O sangue dos negros no eito ou no tronco era o combustível das moendas, das minas e dos cafezais. Como nenhum alquimista ousaria imaginar, no Brasil colonial se aprendeu a transformar sangue em ouro. A morte seguia do nosso lado, oculta e invisível em meio à opulência. Era o custo do sucesso da empresa colonial.

Liberto da submissão política à Coroa Portuguesa desde 1822, em 1850 o Brasil contava com pouco mais de 7 milhões de habitantes, dos quais 2,5 milhões eram negros escravizados. Em 1872, quando a população brasileira chegava aos 10 milhões, o número de trabalhadores cativos havia sido reduzido a 1,5 milhão e às vésperas da abolição era ainda menor, pouco mais de 700 mil. Essa redução no contingente de escravizados entre 1850 e 1888 decorreu principalmente de alforrias concedidas por acordo[11], das mortes[12] e das fugas[13] crescentes, especialmente na década de 1880. Neste contexto, a Lei Áurea longe de ser uma redenção aos negros, significou o abandono pela parcela mais dinâmica da aristocracia rural de um sistema agonizante[14]. Como consequência disto, após a libertação definitiva daqueles que seguiam como escravos em 13 de maio de 1888, nada lhes foi oferecido como recompensa pelos anos de trabalho forçado. Deixados à sua própria sorte, estes homens e mulheres viram-se da noite para o dia “livre[s] do açoite da senzala, [e] preso[s] na miséria da favela”[15].

“Livres”, os libertos do 13 de maio se juntavam aos milhões de sertanejos, caboclos, negros e mulatos, que erravam país a fora em busca de um pedaço de terra, de um cortiço ou ao menos de uma causa pela qual viver. Perdidos em meio à miséria absoluta, se multiplicavam pelos rincões do Brasil, santos e demônios, heróis e bandidos, como ícones condensadores das últimas esperanças de um povo. Filhos da fome, tanto os seguidores do messianismo religioso de Antonio Conselheiro quanto os do banditismo contestador de Virgulino Lampião pagaram com suas vidas pela ousadia de desafiarem a ordem, o latifúndio, a integridade do território e a lei. Era a contribuição do Estado Republicano para engrossar o rastro de sangue de quilombolas, Cabanos, Sabinos e Balaios[16] produzido pelos fuzis imperiais.

Derrubado o Império, o Brasil adentrava o século XX como uma República liberal. A mão de obra livre, composta em sua maioria de imigrantes, permitia o grande crescimento das lavouras no interior do país. O dinamismo da economia impulsionado pelo café tornaria a então pequena cidade de São Paulo o maior centro econômico do país em poucos anos. A pobreza, a espoliação e a morte seguiriam de mãos dadas com o progresso. No campo e nas cidades, condições de trabalho extenuantes seguiram matando aos milhares. 

No maior centro urbano do início do século XX, a cidade do Rio de Janeiro, a perseguição aos negros, aos seus cultos e à sua cultura se inseria em um contexto de “modernização” e de busca de uma nova moral do trabalho pós-escravidão. Apontados como vadios, pouco propensos ao trabalho livre e indisciplinados estes homens foram aos poucos sendo expulsos para periferia da cidade, passando a ocupar regiões suburbanas ou encostas de morros. A miséria aparecia então nos morros, nos subúrbios ou nas prisões, já que a criminalização das formas de vivência de negros foi utilizada como recurso para a construção de uma sociabilidade tida como “moderna”[17].

Sem garantia nenhuma de acesso à moradia, saneamento, educação e trabalho, estas pessoas se tornaram uma massa totalmente marginalizada frente ao progresso econômico. Em lugar dos castigos da escravidão, a fome; em lugar da morte pelos capitães do mato, a morte pelas forças pública de justiça; em lugar do trabalho incessante no eito, o trabalho precário nas piores ocupações. 

Pelos rincões do país a situação não era diferente. Enquanto o café produzia reis e barões em São Paulo, ao norte se produziam campos de concentração. Em meio à seca nordestina, a pobreza levava à fome e com ela ao desespero. Temerosos com o que hordas de famintos pudessem realizar, entre 1915 e 1933 foram construídos diversos campos de isolamento de retirantes no interior do Ceará para impedir sua chegada à capital, Fortaleza. Estes campos que seguiram existindo ao longo da primeira metade do século XX, produziram cadáveres aos milhares. A distância entre os escolhidos para viver e os escolhidos para morrer era tão grande que um novo cemitério foi construído apenas para receber essas vítimas. Nem mesmo mortos, os pobres retirantes eram dignos de se juntarem à “civilização”[18].

O “progresso” continuava e, em plena década de 1950, durante o auge da industrialização brasileira, no maior centro econômico do país, na Favela Canindé, às margens do rio Tietê, uma catadora de papel apontava a insensibilidade de Juscelino frente à pobreza e escrevia para espantar a fome[19]. Na mesma época, muito longe dali, no engenho da Galileia, em Vitória de Santo Antão, a falta de caixões para enterrar seus mortos era o estopim para uma rebelião no interior de Pernambuco. A ordem não podia tolerar rebeliões e, não bastasse a seca e a pobreza, os fuzis impunham o veredicto a cabras marcados para morrer[20] no Sertão Nordestino. A economia seguia de vento em popa. Os números do PIB eram mais que suficientes para que as mortes e o sofrimento de negros, pobres e sertanejos fossem rapidamente esquecidas. Em meio aos pátios transbordados de automóveis recém produzidos, de estradas rasgando de Norte a Sul o país, no sertão e nas favelas as vidas eram secas e as mortes invisíveis. 

Aos rebeldes sempre são guardados requintes de crueldade. Nestes casos a morte apenas não basta, é essencial o exemplo. O extermínio físico aqui cumpre uma função disciplinadora, ele deixa de ser apenas natural e legítimo, mas passa a ser necessário para a manutenção da ordem. Neste contexto, o sadismo e o terror passam a ser aceitos como parte da engrenagem que garante o funcionamento do sistema. Ao longo dos 25 anos de ditadura militar no Brasil, vimos de forma bem clara como essa máquina opera. Mais carros, mais estradas, mais energia justificavam e ocultavam mais mortes. Mortes de pobres e negros nos sertões e nas favelas, mortes de índios de Norte a Sul e mortes e torturas de rebeldes nos porões. A economia ia bem, mas o povo ia mal[21]. O bolo crescia, mas não era fatiado[22]. O “milagroso” crescimento econômico dos anos 1970 contrastava com a miséria crescente nos campos e nas cidades. O arrocho salarial e o aumento da concentração de renda[23], somados às mais de 400 mortes[24] e desaparecimentos praticados pelo Estado, são a face oculta dos anos dourados da economia nacional. A morte seguia sendo justificada em nome da prosperidade econômica. 

No final da década de 1980, a crise econômica fez com que os governos militares não fossem mais capazes de alimentar o brilho nos olhos de uma elite já acostumada a matar[25]. A tortura e a morte nas prisões voltaram ao seu lugar de origem, aos lugares de onde ninguém as vê, às periferias, morros e favelas. Após a redemocratização, em meio a uma nova onda de “modernização”, a democracia, agora neoliberal, seguiu convivendo muito bem com a morte. Enquanto o Plano Real causava euforia ao conter a aceleração inflacionária, empresários aplaudiam a abertura comercial[26] e a engrenagem assassina continuava produzindo cadáveres aos milhares. 

Estima-se que em 1995, mais de 22 milhões[27] de pessoas estivessem abaixo da linha da extrema pobreza no Brasil. Isso significa que um em cada sete brasileiros não tinha renda suficiente para consumir a quantidade de calorias considerada necessária para sua sobrevivência. Esse número era menor que os 28,7 cidadãos nestas condições registrados em 1993. A queda deveu-se certamente a contenção da aceleração inflacionária que corroía a renda das famílias mais pobres. A redução na miséria advinda da nova política econômica pós-ditadura, no entanto, parou por aí e, em 2002, o número de miseráveis seguia em 23,8 milhões. 

A convivência com estes números assombrosos não se fez sem a naturalização de uma realidade que se mostrava cada dia mais clara diante dos olhos. A pobreza deixava os sertões e os morros e chegava aos centros das principais cidades do país, na forma de um crescente contingente de miseráveis vagando e vivendo pelas ruas[28]

O crescimento da violência era a outra faceta desta tragédia social. “Quem tem fome tem pressa” era o slogan da “Ação da Cidadania[29], organizada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. A pressa dos famintos muitas vezes podia levar à subversão da ordem no que ela tem de mais sagrado, a propriedade privada. Neste contexto, o Estado sempre é convocado para deter indivíduos, reintegrar posses e, no limite, matar, afinal, sempre que preciso for uma metralhadora alemã ou de Israel estraçalha ladrão que nem papel[30]. Era possível naturalizar a pobreza e a miséria, mas não suas consequências que colocassem em risco à ordem. Aos pobres era imposto morrer calado. 

Para garantir o sucesso dessa higienização social, depurando a sociedade dos que ousavam se revoltar, chacinas se espalharam pelo país. Em 1992, 111 reclusos da Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Penitenciária de Carandiru, foram mortos após a invasão da prisão pela Tropa de Choque da Política Militar para “conter” uma rebelião[31]. Em 1993, oito adolescentes foram assassinados por policiais militares que atiraram nos mais de 70 moradores de rua que dormiam em frente à Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro[32]. Um mês depois, outros 21 jovens foram assassinados por policiais e ex-policiais militares, durante a madrugada, na favela de Vigário Geral, zona Norte do Rio de Janeiro[33]. Em 1996, policiais militares do estado do Pará assassinaram 19 trabalhadores rurais sem-terra, em Eldorado dos Carajás[34]

Por mais que estas formas de ação possam ser tratadas como excessos de setores radicalizados das forças públicas de segurança e de suas milícias paramilitares que já se formavam neste contexto, não é possível entender o avanço destas práticas, sem percebermos uma crescente aquiescência social frente a elas. No fundo tais fenômenos sempre foram vistos com feridas dolorosas e difíceis de serem encaradas, mas considerados necessários para a manutenção da ordem. Tal percepção não se cristaliza, contudo, sem corroer ainda mais as estruturas orgânicas de uma sociedade já dividida de cima a baixo. Conviver com todas estas mortes sem colapsar a ordem social, exige que suas vítimas sejam colocadas em um local a parte. A elas é reservado o lugar do “outro”, aquele que não importa, que é descartável para o organismo social[35]. Foi assim, com o indígena “bárbaro e violento”, foi assim com o negro “selvagem e desumanizado”, foi assim com “mestiço de sangue viciado”, foi assim com trabalhador nacional “vadio e desqualificado”, tem sido assim, com os marginais, “incapazes de viver em sociedade”. Constrói-se um enredo em que todos estes podem morrer, já que nada produzem, são estéreis do ponto de vista econômico e ainda deformam a ordem social. 

Por todas estas razões, tais chacinas não foram casos isolados. Em 2020, matar e morrer em nome do progresso econômico segue prática comum. São crescentes os movimentos em prol da facilitação à posse de armas, ao mesmo tempo em que cresce o número e o poder de milícias de matadores de aluguel. Nada mais próximo do Brasil atual que a constatação de Achille Mbembe quanto à realidade de diversos Estados africanos no final do século XX, nos quais “milícias urbanas, exércitos privados, exércitos de senhores regionais, segurança privada e exércitos de Estado proclamam, todos, o direito de exercer violência ou matar.[36]”

Na zona rural, a expansão da fronteira agrícola segue matando e escravizando em nome do sucesso do agronegócio. Segundo dados do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2019 ocorreram 32 execuções no campo[37], a maior parte delas de lideranças sindicais e de trabalhadores rurais. Já são 247 assassinatos registrados pela CPT desde 1985. No mesmo ano, segundo a CPT, denúncias levaram à descoberta de 880 pessoas em condições análogas ao trabalho escravo no Brasil, das quais 745 foram libertadas[38]. A solução destes casos nem sempre é fácil, tendo em vista as enormes dificuldades e riscos envolvidos na tarefa daqueles que se dispõem a fiscalizar e denunciar os casos de exploração do trabalho. O destino destes agentes de fiscalização muitas vezes também é a morte[39]. A estas mortes somam-se tantas outras originadas pela expansão agrária que leva à proliferação de conflitos entre latifundiários e pequenos produtores e/ou indígenas[40]. Os recentes cortes no número de fiscais e auditores do trabalho, o sucateamento e dirigismo ideológico em órgãos como Ibama, ICMBio[41], Funai[42] e Incra, assim como a criminalização dos movimentos sociais, como o MST[43] apontam para um genocídio de proporções ainda maiores nos próximos anos. 

Em pleno século XXI, esse clima de terra sem lei também é a regra nas maiores metrópoles do país, onde se mata e se morre indiscriminadamente. Segundo o Atlas da Violência 2019, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 houve 65.602 homicídios no Brasil. Foram 180 mortes por dia, em média. Estas mortes não despertam atenção. Elas são mais que invisíveis, elas são naturalizadas, por tratarem em geral de jovens negros e pobres moradores das periferias das grandes cidades. Dos assassinatos ocorridos em 2017, 75,5% vitimaram indivíduos negros[44]. Quando aparece na grande imprensa, basicamente em jornais sensacionalistas, não raramente esse extermínio é endossado por um discurso de limpeza social: “um bandido a menos”, especialmente quando a morte é causada em conflitos com a polícia. 

Nos últimos anos, como consequência do acirramento da disputa por poder entre grupos criminosos, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), tem sido recorrente a execução de grupos rivais dentro de unidades prisionais[45]. Nestes casos, a morte, mesmo qualificada por uma brutalidade terrível, choca ainda menos. Tornamo-nos uma sociedade sádica, despudorada que não apenas aceita estas mortes, mas vibra com elas. A morte deve entrar em casa, tomar café e almoçar todos os dias com cada um de nós e não mais assustar. Tal sadismo toma forma a partir do crescente número de programas jornalísticos sensacionalistas, sucessos de audiência, centrados no espetáculo da violência. O medo da violência não desperta indignação, mas alimenta o ódio ao “outro”, reforçando a cisão social. Neste sentido, percepção reproduzida nos últimos anos de uma sociedade dividida entre “cidadãos de bem” e “marginais” aparece como a versão mais moderna da polarização entre a Casa Grande e a Senzala.

Se as mortes reveladas por cadáveres decepados e corpos carbonizados[46] apresentados nestes programas não causam terror, o que dizer daquelas que ocorrem silenciosamente nas milhares de casas sem saneamento básico, em hospitais sem médicos e nas ruas. O acesso à saúde tão vivamente lembrado nos últimos dias não é um problema novo para o brasileiro pobre, que depende do Sistema Único de Saúde. Seus problemas passam pelo insuficiente número de médicos e sua desigual distribuição pelo país, pela carência de leitos hospitalares, pela demora no agendamento de consultas e exames, dentre outros[47]. O crescimento da taxa de mortalidade infantil[48] em 2016, após anos em queda, indica o quanto as políticas de austeridade fiscal dos últimos anos têm comprometido ainda mais o fragilizado sistema de saúde brasileiro. 

O que dizer então das milhares de mortes de hoje e de amanhã causadas pela destruição ambiental, pela poluição, por agrotóxicos, pelo desalojamento de comunidades, pela destruição de rios e mares, pela enxurrada de lama causada pelo rompimento criminoso de barragens, pelo deslizamento de construções em encostas, dentre tantas outras mortes evitáveis. Morrer e matar não tem sido um problema há anos. Por que seria agora?

Assim, olhar para trás é condição necessária para entender por que diante das filas em cemitérios para enterrar mortos, da escassez de caixões em algumas cidades e de leitos hospitalares em outras, alguns insistem em se preocuparem mais com a “morte dos CNPJs”. Não se passa impune por uma história assentada sobre cadáveres. De 1500 até aqui, não apenas aprendemos a conviver com eles, como aprendemos a aceitar o quanto são importantes para nossa evolução. “As pessoas morrem”. “A economia não pode parar por 5 ou 7 mil mortes”. Ninguém quer “arrastar um cemitério de mortos nas [suas] costas”. “A roda da economia precisa voltar a girar”. São pensamentos exalados por cabeças de hoje como poderiam ter sido ditos há 20 anos ou em qualquer dia de nossa história.

Dentro deste contexto, a atual política eugenista de Bolsonaro, ainda que na contramão de praticamente todo o mundo, não paira no ar. Ela se sustenta em um aparato ideológico que vê a morte do outro como uma redenção, uma solução final, em nome da evolução social. Sua adesão a esta ideologia tampouco se deu agora, ela já se mostrava clara ao longo de toda a sua carreira política. Já era possível percebê-la quando, ainda deputado, Bolsonaro defendia em 1999, a necessidade de “matar uns 30 mil”, começando pelo então presidente Fernando Henrique, em “trabalho que o regime militar não fez” ou quando dedicou a um torturador seu voto pelo impeachment de Dilma Roussef, em 2016, para ficar em apenas dois exemplos[49].O fato de ainda assim, grande parte da população, a começar por suas elites econômicas, não ter enrubescido em endossar seu discurso durante a campanha eleitoral diz muito mais sobre nós, enquanto sociedade, do que sobre ele. 

Se isso tudo é verdade, ainda que se contrapor à política de morte representada pelo atual governo seja hoje um imperativo, qualquer tentativa de remover cirurgicamente o presidente do posto em que se encontra, não nos transformará em uma sociedade melhor. Para tanto, se faz necessário muito mais que isto. Para iniciarmos a construção de um futuro menos cruel para depois crise, será necessário, desde já, começarmos a nos desinfectar de um vírus muito pior que o que hoje nos assola, do qual temos sido contaminados em massa hereditariamente há séculos, e que nos tem impedido de ver no outro uma parte de nós mesmos. Que se chame a esta doença de capitalismo, ou de qualquer outro nome que se queira dar, o fato é que precisamos reunir esforços urgentes para encontrarmos coletivamente a sua cura.

NOTAS


[1] Agradeço aos colegas do Grupo de Conjuntura Econômica da Ufes, Ana Paula, Henrique, Gustavo e Vinícius, pela leitura e sugestões ao texto, isentando-os de qualquer responsabilidade sobre seu conteúdo.
[2] O número de mortos causados por Coronavírus no Brasil passou dos 16 mil, em 17 de maio de 2020, a partir de informações resultantes de números certamente subnotificados. Ver mais em “Subnotificação: 6 indicadores de que há mais casos de Covid-19 no Brasil do que o governo divulga” Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/29/subnotificacao-4-indicadores-de-que-ha-mais-casos-de-covid-19-no-brasil-do-que-o-governo-divulga.ghtml
[3] Sua indiferença frente às consequências da doença para milhões de brasileiros se materializa não apenas por meio de seus discursos, mas também pelas medidas tomadas até aqui, que deixam clara a opção em proteger empresas e rentistas, ainda que em detrimento dos mais vulneráveis. Ver mais sobre isso em: “Breves comentários sobre a EC 106”, disponível em:  https://blog.ufes.br/grupodeconjunturaufes/2020/05/15/breves-comentarios-sobre-a-ec-106/ e “Pandemia e precariedade: a naturalização dos dramas sociais”, disponível em:  https://blog.ufes.br/grupodeconjunturaufes/2020/04/20/607/
[4] Caio Prado Junior. Formação do Brasil Contemporâneo (1942) 
[5] Leslie Bethell. História da América Latina (vol. 1) publicado pela Edusp e pela Funag em 2012 (2ª ed.). Notas sobre as populações americanas às vésperas das invasões europeias.
[6] Eram mais de 30 milhões em toda a América, como se vê em Nicolás Sanches-Albornoz (A população da américa Espanhola colonial) em História da América Latina (vol. 2) organizado por Leslie Bethell e publicado no Brasil pela Edusp/Funag em 2008. 
[7] As estimativas mais aceitas apontam para 12,5 milhões de embarcados na África e 10,7 desembarcados nas Américas de 1514 até 1866. São praticamente 2 milhões de mortos durante a travessia do Atlântico. Ver: https://slavevoyages.org/.  
[8] Ver sobre isso em Caio Prado Junior. História Econômica do Brasil (Ed. Brasiliense, 1945, p. 109). Eric Willians mostra ainda que a prática de atirar negros ainda vivos ao mar já era utilizada por traficantes mesmo antes do século XIX, seja para conter movimentos de rebelião de negros durante a viagem, seja para evitar o alastramento de doenças a bordo. Nestes casos, o assassinato em massa era retribuído com o pagamento de seguro aos comerciantes pela carga perdida (Capitalismo e Escravidão, Ed. Americana, 1975, pg. 52). 
[9] Argolas nas quais eram presos os dedos polegares da vítima comprimindo-os por meio de um parafuso. 
[10] Ver, de Emília Viotti da Costa, “Da Monarquia a república” publicado pela Editora da Unesp em 2010 (9ª edição) p. 290-294.
[11] Percebendo que o regime escravista estava perto do fim, muitos fazendeiros procuravam reduzir suas perdas, reinventando formas de manter o trabalhador preso às suas fazendas. Logo alguns percebem que libertar o cativo, antes que a lei o fizesse, podia ser um bom negócio.  É o que vemos por exemplo, em uma carta escrita pelo fazendeiro paulista Paula Souza ao médico e político baiano Cézar Zama. Diz Souza, “tenho em minha família exemplos concretos. Meu irmão libertou todos [os negros escravizados] que possuía. Alguns destes saíram e foram procurar serviço longe. Oito dias depois me procuraram, ou a meu próprio irmão e acomodaram-se conosco, trazendo impressões desfavoráveis da vida de vagabundo que levaram durante esses oito dias. […] Como te disse, tenho com os meus ex-escravos o mesmo contrato que tinha com os colonos. Nada lhes dou: tudo lhes vendo, inclusive um vintém de couve ou leite! Compreendes que só faço isto para moralizar o trabalho, e para que eles compreendam que só podem contar consigo, e jamais por ganância”. Excertos de carta escrita em 19 de março de 1888, publicada no jornal A Província de São Paulo no mesmo ano e reproduzida por Florestan Fernandes em A integração no negro na sociedade de classes (Editora Globo, 2008, vol. I, p. 48-49)
[12] As altas taxas de mortalidade dos trabalhadores escravizados se explicam pela péssima condição de vida e pela dureza e precariedade do trabalho nas fazendas. Além disso, é valido registrar a existência de um número, para o qual há poucas estimativas, de negros escravizados que se alistaram para combaterem na Guerra do Paraguai (1864-1870) entusiasmados com a possibilidade de alforria, e não voltaram vivos. 
[13] O apoio às fugas de trabalhadores escravizados tornou-se prática comum de parcela do movimento abolicionista ao longo da década de 1880. Foi o caso dos Caifazes, liderado por Antonio Bento, em São Paulo. Ver em “Alencastro: abolição, manobra das elites”, disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/alencastro-abolicao-manobra-das-elites/
[14] “Foi o fazendeiro quem se libertou do escravo, e não o escravo quem, propriamente, se libertou do fazendeiro. A proposta da Abolição, em tese, não se destinava a remir o cativo, mas a dele libertar o capital, que se contorcia nas limitações, impedimentos e irracionalidades da escravidão.” José de Souza Martins, O cativeiro da terra (Contexto, 2010, pg. 227).
[15] “Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão”, samba-enredo do desfile de 1988, da GRES Estação Primeira de Mangueira. Composição de Hélio Turco, Jurandir e Alvinho.
[16] Referem-se a três dentre as dezenas de rebeliões transcorridas no período regencial do II Império, todas elas massacradas pelas forças militares imperiais: Cabanagem (Grão-Pará – 1835-1840), Balaiada (Maranhão, 1838-1841) e Sabinada (Bahia, 1837-1838).
[17] Ver, de Sidney Chalhoub, “Trabalho lar e botequim”, publicado pela Editora da Unicamp em 2012.
[18] Ver mais em “Quando a seca criou os ‘campos de concentração’ no sertão do Ceará”, disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/08/politica/1546980554_464677.html
[19] Ver o livro “Quarto de Despejo: diário de uma favelada” escrito pela catadora de papel e escritora Carolina Maria de Jesus, ao longo dos anos 1950 e publicado originalmente em 1960. Destaque para a passagem: “Despertei. Não adormeci mais. Comecei sentir fome. E quem está com fome não dorme. Quando Jesus disse para as mulheres de Jerusalém: – ‘Não chores por mim. Chorae por vós’ – suas palavras profetizava o governo do senhor Juscelino. Penado de agruras para o povo brasileiro. Penado que o pobre há de comer o que encontrar no lixo ou então dormir com fome” p. 134.
[20] O filme “Cabra marcado para morrer” (1984) de Eduardo Coutinho narra a morte do camponês João Pedro Teixeira, em 1962, com tiros de fuzil em suas costas no município de Sapé, na Paraíba. João Pedro era uma liderança camponesa local e foi morto a mando de fazendeiros envolvidos em conflitos agrários.  
[21] Era o que concluía, em 1970, Emílio G. Médici, terceiro presidente do regime militar que governou entre 1969 e 1974. Ver: http://memoria.bn.br/pdf/030015/per030015_1970_00285.pdf
[22] Ideia atribuída a Antonio Delfim Netto, economista que foi Ministro da Fazenda entre 1967 e 1974, durante o período do “Milagre Econômico”. 
[23] Ver “50 anos do AI-5: Os números por trás do ‘milagre econômico’ da ditadura no Brasil”, disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45960213.
[24] Ver Relatório final da Comissão Nacional da Verdade, disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_3_digital.pdf
[25] Ver mais em “O elo da Fiesp com o porão da ditadura” disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/o-elo-da-fiesp-com-porao-da-ditadura-7794152 e em “Volkswagen admite laços com a ditadura militar, mas falha ao não detalhar participação, diz pesquisador”, disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/15/politica/1513361742_096853.html
[26] Ver: Documento Fiesp “Livre para crescer: proposta para um Brasil moderno” (1990).
[27] Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, disponível em www.ipeadata.gov.br
[28] Ver mais na reportagem “Em 1990, miseráveis invadiam as grandes cidades do país” disponível em https://veja.abril.com.br/blog/reveja/em-1990-miseraveis-invadiam-as-grandes-cidades-do-pais/.
[29] Ver mais em https://www.acaodacidadania.com.br/nossa-historia
[30] “Diário de um detento” (1997), rap escrito por Pedro Paulo Soares Pereira (Mano Brown) e Josemir Prado, ex-detento do Carandiru. 
[31] Ver mais em “Sobrevivente do Carandiru: ‘Se a porta abrir, você vive. Se não, vou te executar’”, disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/14/politica/1497471277_080723.html.
[32] Ver mais em “Maioria de sobreviventes morreu, diz ativista, 25 anos após chacina”, disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-07/nao-consegui-salvar-aquelas-criancas-diz-ativista-25-apos-chacina
[33] Ver mais em “Sobrevivente da chacina de Vigário Geral diz que PM queria matar crianças”, disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/08/29/sobrevivente-da-chacina-de-vigario-geral-diz-que-pm-queria-matar-criancas.htm
[34] Ver mais em “Polícia massacra em Eldorado dos Carajás”, disponível em: http://memorialdademocracia.com.br/card/policia-massacra-em-eldorado-dos-carajas
[35] Ver a respeito “Necropolítica” de Achile Mbembe, publicado no Brasil pela N-1 edições em 2018.
[36] Necropolítica, Achille Mbembe (2018, p.53). 
[37] Ver mais em Comissão Pastoral da Terra, disponível em: https://www.cptnacional.org.br/component/jdownloads/send/5-assassinatos/14169-assassinatos-2019?Itemid=0
[38] Ver mais em Comissão Pastoral da Terra, disponível em: https://www.cptnacional.org.br/component/jdownloads/send/12-trabalho-escravo/14174-trabalho-escravo-2019?Itemid=0
[39] Ver a chacina envolvendo fiscais do Ministério do Trabalho, em 2004, na cidade de Unai/MG. https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2019/07/30/chacina-de-unai-apos-15-anos-justica-federal-mantem-condenacao-de-tres-mandantes-do-crime.ghtml
[40] Ver mais em “Genocídio de povo Guarani-Kaiowá no MS é incontestável, conclui missão do Parlamento Europeu e CDHM”, disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/genocidio-de-povo-guarani-kaiowa-no-ms-e-incontestavel-conclui-missao-do-parlamento-europeu-e-cdhm
[41]  Ver mais em “Portas abertas para a devastação do Brasil”, disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/o-campo-minado-da-fiscalizacao-ambiental/
[42] Ver mais em “A asfixia da Funai e o genocídio anunciado” de Karen Shiratori, disponível em:: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/08/opinion/1494269412_702204.html
[43]  Ver mais em “Bolsonaro sobre MST e MTST: ‘Invadiu, é chumbo’” , disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-diz-que-e-melhor-perder-direitos-trabalhistas-que-o-emprego,70002317744
[44]  Ver mais em: http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019
[45] Chacinas como as ocorridas no Presídio de Pedrinhas/MA, em 2010 (18 mortos), em vários presídios no Ceará, em 2016 (14 mortos), na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo/RR (10 mortes), na Penitenciária Ênio dos Santos Pinheiro/RO, em 2016 (8 mortes), no Complexo Penitenciário Anísio Jobim/AM, em 2017 (60 mortes) e no Centro de Recuperação Regional de Altamira, em 2019 (57 mortes).
[46]  Ver mais em “Cabeças cortadas, corpos carbonizados – o que está por trás da violência extrema na guerra de facções”, disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49181204
[47] Ver mais em “Demografia Médica no Brasil 2018”, publicado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, disponível em: http://jornal.usp.br/wp-content/uploads/DemografiaMedica2018.pdf e em “Falta de médicos e de remédios: 10 grandes problemas da saúde brasileira”, disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=33176:uol-noticias-falta-de-medicos-e-de-remedios-10-grandes-problemas-da-saude-brasileira&catid=131:sem-categoria&directory=1.
[48] Ver mais em “Mortalidade infantil retorna com aumento das desigualdades sociais”, disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/mortalidade-infantil-retorna-com-aumento-das-desigualdades-sociais/
[49] Sobre isso ler mais em “Dentro do pesadelo” de Fernando Barros e Silva, disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/dentro-do-pesadelo-2/
 

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BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A EC 106

Henrique Braga
Gustavo Mello

Vamos para dois meses de isolamento social no Brasil em decorrência da pandemia da COVID-19. Em meados de maio já passamos de 11.000 mortes por essa doença. Nesse quadro de profunda crise de saúde pública, temos até o momento dois conjuntos de medidas econômicas anunciadas pelo governo. O primeiro conjunto engloba tanto a liberação da renda básica emergencial de 600 reais para trabalhadores precarizados (auxílio disponível para até duas pessoas por família ou 1.200 reais para mães solo)[1] quanto as medidas de suspensão do contrato de trabalho e de redução de jornadas e dos salários dos empregados formais do setor privado[2]. O segundo conjunto compreende  as medidas de socorro financeiro aos capitalistas – isto é, aos representantes do capital, cuja forma principal são as grandes corporações financeiro-produtivas, que articulam os representantes de menor volume de capital. De acordo com o Banco Central do Brasil, esse segundo grupo de medidas foram desenhadas para “oferecer as condições especiais para que as instituições financeiras possam rolar as dívidas dos setores afetados pela crise, monitorando os créditos que saírem do sistema financeiro, com o intuito de evitar eventuais contágios[3].”

Dentre elas, a medida mais recente é a Emenda Constitucional nº 106, promulgada pelo Congresso Nacional no dia 07 de maio deste ano. Popularmente chamada de “PEC do Orçamento de Guerra”, ela traz uma série de dispositivos para “liberar” a capacidade de gasto do Estado brasileiro. No que diz respeito à política monetária, chama a atenção o seguinte trecho:

Art. 7º O Banco Central do Brasil [BCB], limitado ao enfrentamento da calamidade pública nacional de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional, e com vigência e efeitos restritos ao período de sua duração, fica autorizado a comprar e a vender: 
I – títulos de emissão do Tesouro Nacional, nos mercados secundários local e internacional; e 
II – os ativos, em mercados secundários nacionais no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos, desde que, no momento da compra, tenham classificação em categoria de risco de crédito no mercado local equivalente a BB- ou superior, conferida por pelo menos 1 (uma) das 3 (três) maiores agências internacionais de classificação de risco, e preço de referência publicado por entidade do mercado financeiro acreditada pelo Banco Central do Brasil[4].

A compra de títulos financeiros por parte do BCB segue a linha da política monetária sugerida pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em recente análise sobre as medidas econômicas necessárias ao enfrentamento da COVID-19[5]. Essa política econômica vem se somar àquelas medidas anunciadas em 23 de março deste ano, as quais liberariam, segundo o BCB, 1,2 trilhão de reais[6], por meio da redução das exigências de crédito em diversos segmentos e, a mais importante, liberação de “empréstimo com lastro em letras financeiras garantidas por operações de crédito” que poderiam chegar à soma de 670 bilhões de reais. Diante desse conjunto de medidas, cabe a pergunta: elas seriam suficientes para enfrentar a desarticulação da produção de mercadorias catalisada pelo isolamento social?

Para responder essa questão, devemos entender como funcionam as operações propostas pelo BCB. Para compreendermos a EC 106, devemos diferenciar os mercados primários dos mercados secundários de títulos financeiros. Enquanto no primeiro a negociação ocorre entre o emissor do título financeiro e seu comprador, perfazendo operações de emissão de novos títulos ou recompra de títulos já em circulação, o segundo comporta a negociação com títulos já emitidos, não envolvendo o seu emissor. Uma operação no mercado primário ocorre, por exemplo, quando o BCB negocia novos títulos públicos federais com os bancos privados (seus dealers), enquanto a negociação desses títulos entre os bancos e os demais “agentes econômicos” caracterizam uma operação no mercado secundário.

A partir da EC 106, o BCB poderá atuar no mercado secundário, do qual estava excluído até então. Neste caso, pode atuar não apenas comprando títulos financeiros de origem pública (I), mas também comprando tais títulos de origem privada (II). Uma operação desse tipo significa a monetização, por parte do Banco Central, das apostas sobre a produção e consumo futuros, de modo que as grandes corporações recuperarão apostas dadas como perdidas em seus balanços, aliviando aquelas em posições deficitárias. Por exemplo, as empresas detentoras de “a) debêntures não conversíveis em ações; b) cédulas de crédito imobiliário; c) certificados de recebíveis imobiliários; d) certificados de recebíveis do agronegócio; e) notas comerciais; e[/ou] f) cédulas de crédito bancário;[7] podem ter esses títulos comprados pelo Banco Central, pois todos são negociados em mercado secundário. Isso pode significar a recuperação de cerca de 1 trilhão de reais em “créditos podres”, que já estavam perdidos[8]

Pensando na recuperação da acumulação de capital, a fragilidade desse mecanismo está na monetização das dívidas sem exigir que os setores favorecidos aloquem esses recursos nos meios necessários para se enfrentar a crise econômica. Note-se, em particular, que não há qualquer mecanismo de garantia de que os pequenos e os médios capitais sejam beneficiados, e são justamente eles os responsáveis por empregar, formalmente ou não, os setores mais vulneráveis da força de trabalho brasileira. Além disso, também parece não haver qualquer garantia de que o conjunto do sistema produtivo será articulado para dar conta da produção e da distribuição dos suprimentos médicos, da atividade de pesquisa e dos meios de vida básicos. Tal tarefa, como já apontada neste espaço no começo desta crise[9], é incontornável nesse momento crítico que vivemos, que, ao que tudo indica, durará ainda alguns meses e cujos efeitos serão sentidos por anos na economia brasileira. 

Importa pontuar que essa forma de recuperação da acumulação de capital tem se mostrado insuficiente porque não há evidências de que as medidas adotadas em 23 de março estão surtindo o efeito previsto pelo BCB. Embora as concessões de crédito para pessoa jurídica tenham crescido em 60% no mês de março, saltando de 140,6 bilhões de reais para 224,9 bilhões de reais, há indícios variados de que as pequenas e médias empresas estão tendo dificuldades para tomarem empréstimo junto aos bancos privados. [10]Note-se, por exemplo, que dos 40 bilhões previstos para auxiliar os pequenos e médios capitais com o pagamento dos salários dos seus trabalhadores, apenas 1% foi liberado em decorrência do desenho equivocado da medida, e essa constatação é feita por diferentes grupos de empresários[11]. Com a situação econômica de incerteza quanto aos ganhos futuros dos capitais investidos, não surpreende tanto que as instituições financeiras preservem os recursos monetizados consigo, emperrando o circuito da acumulação de capital. Por isso, tem se mostrado um equívoco apostar tanto na acumulação de capital quanto na sua forma aleatória de alocação de recursos como meios para lidarmos com os efeitos da crise[12].

Do ponto de vista da política monetária, enfrentar a crise passa pelo uso dos bancos públicos disponíveis, sejam da União ou dos Estados, para financiar a produção e a distribuição dos meios imprescindíveis para superarmos uma das piores crises econômicas que enfrentaremos em nossa história. A EC 106 seria mais adequada para enfrentar a crise caso aplicasse, por exemplo, uma alíquota de 100% sobre as apostas monetizadas, utilizando esses recursos para financiar, por um lado, um amplo programa de crédito destinado ao pequeno e ao médio capital, a taxa de juros zero e com carência de pelo menos 12 meses para pagamento dos empréstimos. Por outro lado, caberia utilizar esses recursos para rearticular todos os setores da economia, promovendo a reconversão industrial e dos serviços – que não é feita do dia para noite, é bom lembrar –, em direção aos setores essenciais para enfrentarmos a pandemia. Isso sem descuidar da segurança dos trabalhadores e dos meios necessários às atividades de cuidado, higiene, alimentação e habitação. É evidente que esse conjunto de medidas teria como uma de suas tarefas fundamentais garantir renda e capacidade de consumo para os grandes contingentes da população que já perderam e que ainda irão perder seus empregos – formais e informais -e ter suas fontes de rendimentos comprometidas. Logo, a provisão de uma renda básica emergencial haveria de ser transformada em renda básica universal e seu valor elevado; por outro lado, teriam de ser desdobradas as políticas estatais de manutenção do emprego e suspensas as medidas que ensejaram cortes salariais e suspensão de contratos.

Nestes termos, o grande capital poderia contribuir, efetivamente, para amenizar os efeitos da crise, uma vez que teria seu poder de comando sobre trabalho direcionado para onde a sociedade necessita nesse momento, ao invés de terem assegurados o recebimento de seus direitos de propriedade sobre o futuro – um futuro no qual eles apostaram de modo tão deliberado quanto equivocado, e, por isso, deveriam ser os únicos responsáveis por sua situação[13]. Entretanto, a EC 106 e as medidas de 23 de março parecem cumprir outro papel. Elas estão a proporcionar às grandes corporações financeiro-produtivas[14] a segurança de que a crise será mais uma ótima oportunidade de negócios. A propósito, a declaração de Roberto Setubal, um dos donos do Banco Itaú, é cristalina a esse respeito: historicamente, diz ele, “o Itaú passou muito bem pelas crises. A gente comprou muitos bancos em momentos de crise[15]. Além do mais, tamanha segurança não deixa dúvidas de quem pagará pela crise, já que “O pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo[16], palavras de Guilherme Benchimol, presidente e fundador da XP Investimentos.

Diante desse quadro, o pós-pandemia que se desenha desde agora não será apenas de luto pelos mortos por causa da COVID-19 e de desalento em razão do desemprego elevado e da recessão econômica. Também parece que o pós-pandemia comportará uma elevação da centralização dos capitais, um aumento das desigualdades que já vem avançando significativamente desde 2015[17], e um avanço das práticas de extermínio para aqueles que se mostram inúteis para o capital[18]. Nesse cenário, cabe reivindicar um outro futuro, no qual, dentre outras coisas, não devêssemos trabalhar continuamente mais para que outros, empenhados nas negociações de nosso trabalho futuro, tivessem seu modo de vida garantido. Talvez seja o caso de asseguramos outro modo de vida para nós, no qual a produção, a distribuição, a troca e o consumo garantissem um presente saudável. Vamos começar a pensar nesse futuro?

NOTAS


[1] MINISTÉRIO DA CIDADANIA. Auxílio de 600 reais.
Disponível em:
https://www.gov.br/cidadania/pt-br/servicos/auxilio-emergencial/auxilio-emergencial.
[2] PANDEMIA E PRECARIEDADE: A NATURALIZAÇÃO DOS DRAMAS SOCIAIS.
Disponível em:
https://blog.ufes.br/grupodeconjunturaufes/2020/04/20/607/.
[3] Medidas de combate aos efeitos da COVID-19. 23 mar. 2020.
Disponível em:
https://bit.ly/3alirHH.
[4] DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 106. 07 maio 2020.
Disponível em:
http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/emenda-constitucional-n-106-255941715
[5] COVID-19 Crisis Poses Threat to Financial Stability.
Disponível em:
https://bit.ly/2XNYHd5.
[6] Medidas de combate aos efeitos da COVID-19. 23 mar. 2020.
Disponível em:
https://bit.ly/3alirHH.
[7] Na primeira versão da EC 106, esses eram os ativos listados para compra. Ver: SENADO FEDERAL DO BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição n° 10 de 2020. 17 abr. 2020. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8096966&ts=1588942429796&disposition=inline
[8] Ver: Retomada da economia pode destravar carteira de R$ 1 tri em ‘créditos podres’. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/economia/retomada-da-economia-pode-destravar-carteira-de-r-1-tri-em-creditos-podres/

PEC 10 Acoberta lavagem de trilhões de papéis podres acumulados há 15 anos nos bancos e você pagará a conta. Disponível em: https://auditoriacidada.org.br/conteudo/pec-10-acoberta-lavagem-de-trilhoes-de-papeis-podres-acumulados-a-15-anos-nos-bancos-e-voce-pagara-a-conta/

Ativos privados que BC pode comprar caso PEC seja aprovada somam R$ 972,9 bilhões
. Disponível em: https://www.moneytimes.com.br/ativos-privados-que-bc-pode-comprar-caso-pec-seja-aprovada-somam-r-9729-bilhoes/.

 [9] Nota sobre os impactos econômicos e sociais da COVID-19.
Disponível em:
https://blog.ufes.br/grupodeconjunturaufes/2020/04/02/nota-sobre-os-impactos-economicos-e-sociais-da-covid-19/ .
[10] O embate entre empresas e bancos pelo acesso ao crédito na crise. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/01/O-embate-entre-empresas-e-bancos-pelo-acesso-ao-cr%C3%A9dito-na-crise.
[11] Linha de crédito para o pagamento de salários tem só 1% liberado a empresas. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,linha-de-credito-para-o-pagamento-de-salarios-tem-so-1-liberado-a-empresas,70003296117.
[12] Salvando o PIB ou Vidas? Disponível em: http://brasildebate.com.br/salvando-o-pib-ou-vidas/.
[13] Nas palavras de Roberto Setubal: “[…] no capitalismo não tem garantia de retorno nem de estabilidade, é a vida”. Fonte: “Não dá para salvar todo mundo, alguns setores vão se ajustar”, diz Setubal.
Disponível em:
https://www.infomoney.com.br/negocios/nao-da-para-salvar-todo-mundo-alguns-setores-vao-se-ajustar-diz-setubal/.
[14] Lembremos que desde de meados dos anos de 1970, a grande empresa moderna tem sua produção, distribuição, troca e consumo articulados com o sistema financeiro internacional, de forma que a modificação de seu modelo produtivo para o “pronta entrega” com plantas espalhadas por todos o globo ocorreu porque pode movimentar livremente seu capital na forma monetária – em especial com as chamadas zonas offshore.
[15] “Não dá para salvar todo mundo, alguns setores vão se ajustar”, diz Setubal. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/negocios/nao-da-para-salvar-todo-mundo-alguns-setores-vao-se-ajustar-diz-setubal/.
[16] Pico de Covid-19 nas classes altas já passou; o desafio é que o Brasil tem muita favela, diz presidente da XP.
Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/brasil-esta-indo-bem-no-controle-do-coronavirus-e-pico-nas-classes-altas-ja-passou-diz-presidente-da-xp.shtml.
[17] Um país ainda mais desigual. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/um-pais-ainda-mais-desigual/.
[18] Pandemia democratizou poder de matar.
Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica.shtml.

 

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O QUE ESPERAR DE 2021?

Fabrício Augusto de Oliveira

Um dos maiores desafios colocados pela crise do coronavírus no período pós-pandemia, tanto para os economistas como para os governantes, será o de definir as melhores políticas que devem ser seguidas para reerguer a economia e recuperar a capacidade do sistema econômico de recriar os empregos que foram varridos com o aniquilamento de empresas provocado pela paralisação de muitas atividades econômicas. Não será uma tarefa fácil. Isso porque, além do inevitável gradualismo com que deve se dar a retomada, à medida que a ameaça do vírus levará um bom tempo para ser afastada, impedindo a normalização completa de muitas atividades, muito capital terá sido queimado, empresas, principalmente as de pequeno e médio porte, fechadas, o investimento privado altamente enfraquecido, sem poder contar com incentivo diante de uma demanda agregada também desfalecida, dado o elevado nível de desemprego, da queda do nível de renda e com as finanças dos Estados no mundo, em geral, destroçadas e, também grave, com um considerável aumento da pobreza e da desigualdade.

Apesar do otimismo de muitas instituições que projetam uma forte recuperação da atividade econômica em 2021, não são pequenos os riscos de que o mundo poderá permanecer numa zona de baixo crescimento e muitos países mesmo em recessão mais prolongada, dependendo das políticas que forem eleitas para a retirada da economia deste atoleiro, num quadro em que todos os motores do crescimento se encontram seriamente danificados e desligados.

O FMI, por exemplo, projeta uma taxa de crescimento da economia mundial de 5,8% em 2021, com as economias avançadas crescendo 4,5%, a União Europeia 4,8%, a Zona do Euro 4,7% e as economias emergentes 6,6%. Países como os Estados Unidos, para o qual se prevê uma expansão de 4,7% no ano, Alemanha, de 5,1%, França, de 4,5%, Itália, de 4,8%, Espanha, de 4,3%, Reino Unido, de 4%, Japão, de 3%, China, de 9,2%, Índia, de 7,4%, e até mesmo o Brasil, de 2,9%, aparecem, com essas estatísticas, nessas projeções, para confirmar este otimismo, sugerindo que, já neste ano, ter-se-á saído do inferno da recessão de 2020 e recuperado boa parte das perdas provocadas pela crise do coronavírus. Mais otimista, ainda, a Comissão Europeia, prevê uma expansão da Zona do Euro de 6,3% em 2021, e expansão de 6,5% para o PIB da Itália, 7,4% para o da França, 7% para a Espanha, e 5,9% para a Alemanha, sob a hipótese de que o confinamento será flexibilizado gradualmente a partir de maio.

Essas projeções parecem ignorar, contudo, os estragos provocados pelo tsunami da pandemia sobre a economia, o emprego, o nível de renda e sobre o próprio capital, amparadas na hipótese que o retorno à normalidade econômica após a pandemia religará automaticamente todos os motores da vida econômica. Não é bem assim.  Ao contrário das crises cíclicas clássicas em que injeções de liquidez, acompanhadas de estímulos à demanda agregada reinjetam forças no sistema econômico, propiciando sua redecolagem, a crise atual, diante da paralisação quase completa de muitas atividades econômicas, deve produzir, como resultado, uma carnificina de muitas empresas, com faturamento em baixa, lucros em declínio e elevada capacidade ociosa, principalmente nos segmentos das de pequeno e médio porte, além de outras de grande porte mais afetadas, como as aéreas, por exemplo, que não terão condições de responder rapidamente à retomada até mesmo por falta de capital que, em alguma medida, deve ter simplesmente evaporado. Nessa situação, não se pode contar, como essas projeções sugerem, que o investimento privado esteja em condições de dar respostas rápidas à retomada num cenário dominado por grandes incertezas, escassez de capital, elevada capacidade ociosa e demanda enfraquecida.

O consumo, por outro lado, deve demorar a se reerguer depois dessa catástrofe. Primeiro, porque o desemprego deve aumentar consideravelmente no mundo em decorrência da crise. Os pedidos de seguro-desemprego nos Estados Unidos, que ultrapassaram os 30.000 até o final de abril, indicam que o mesmo poderá superar a casa dos 20% da força de trabalho no país, nível equivalente ou superior ao projetado para países da Zona do Euro, como Espanha (19%), Grécia (20%) ou menor, mas elevado, como na França (10%), Itália (12%) próximos ao da crise do subprime e da dívida soberana europeia que levaram anos para serem reduzidos.

Em segundo lugar, porque a renda dos trabalhadores sofreu uma brutal redução na crise, principalmente a dos trabalhadores informais que simplesmente viram cessar seus ganhos com o isolamento. No caso dos trabalhadores formais que conseguiram manter seus empregos, houve, em muitos casos, reduções de seus salários que foram compensados, parcialmente, por alguma complementação dada pelos governos, enquanto os que foram demitidos passaram a receber o seguro-desemprego, via de regra com um valor inferior ao salário. Em se tratando dos informais, estes tiveram de se contentar, onde isso ocorreu, com algum auxílio prestado pelo governo, para continuar apenas sobrevivendo.

É provável que essa situação deve ter minguado as poupanças dos que as possuíam e aumentado os níveis de endividamento e de inadimplência das famílias, como se constata em muitos pesquisas veiculadas, ampliando as incertezas sobre o futuro e diminuindo sua intenção de gastar, tendência que só pode ser revertida com a volta da confiança na economia. Pesquisa realizada no Brasil pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), encomendada ao Instituto FSB Pesquisa, confirma que 50% dos brasileiros tiveram perda total ou parcial de renda, o que levou a um expressivo aumento de seus níveis de endividamento e, por esse motivo, à maior prudência na intenção de retornar ao mesmo patamar de compras que fazia antes da crise, mesmo com a normalização da situação.

Não bastasse isso, o tranco dado na atividade produtiva, afetando o nível de ocupação principalmente dos trabalhadores informais e limitando a política de transferência de renda dos Estados para as classes mais vulneráveis, deve empurrar uma parcela não pequena da população para a condição de pobreza e de extrema pobreza. A Cepal projeta, para a América Latina e Caribe, um aumento de 30 milhões de pessoas que passariam, com a crise, a integrar estes contingentes na região. No Brasil, onde, segundo o IBGE, de acordo com os dados do módulo Rendimento de Todas as Fontes, da PNAD contínua, divulgada no dia 06 de maio, metade dos brasileiros sobrevivia, em 2019, com apenas R$ 438 mensais (R$ 15 por dia), a situação deve se agravar ainda mais, limitando até mesmo o consumo de produtos mais essenciais.

Os cenários desenhados para o comércio exterior são também desalentadores para amparar o otimismo de uma recuperação em níveis tão elevados em 2021, como apontam essas pesquisas. Em função das hipóteses assumidas sobre o tamanho da recessão mundial, que afeta a demanda e o preço dos produtos comercializados, do período previsto de isolamento e das restrições impostas aos meios de transportes em cada país por causa da crise, estima-se uma retração que varia entre 15% e mais de 30%, um nível superior a que se registrou na crise do subprime, prevendo-se uma recuperação de 7% a 12% em 2021, insuficiente para recuperar as perdas do ano anterior. Ou seja, não se vislumbra, nessas condições, contribuição importante deste componente da demanda agregada para sustentar as projeções otimistas sobre o crescimento em 2021, notadamente para os países exportadores de commodities, cujos preços, já baixos, desabaram na crise por falta de demanda.

Restaria, assim, apenas o Estado como agente em condições de dar o impulso necessário para reerguer a economia, por meio do aumento de seus gastos, financiados pela emissão de moeda ou de títulos da dívida pública, mas seus orçamentos se encontram destroçados, comprometidos com elevados déficits e níveis de endividamento muito além do que recomenda o pensamento ortodoxo, em virtude dos esforços realizados para salvar a economia desde a crise do subprime e, agora, do coronavírus,

Esse, o dilema colocado no momento para a teoria econômica, o que é simplesmente ignorado nas projeções de crescimento para 2021 feitas por essas instituições: como essas se baseiam em hipóteses equivocadas, considerando que as ondas da crise vão gradualmente se enfraquecendo e acionando automaticamente os motores do crescimento, basta deixar a economia seguir seu curso natural para a superação da crise, tratada apenas como um ponto fora da curva e não como um fenômeno novo, diferente de outras crises, que danificou toda a aparelhagem de funcionamento idealizado do sistema econômico.

Se prevalecer a proposta do pensamento ortodoxo de que no pós-epidemia o Estado deve voltar a preocupar-se em implementar sérias medidas de ajuste fiscal para reduzir seus níveis de endividamento, o que tem sido defendido também no Brasil pela equipe econômica do governo Bolsonaro, dificilmente essas projeções otimistas sobre o crescimento mundial em 2021  se materializarão, sendo mais provável que o mundo continue prisioneiro do baixo crescimento ou até mesmo da recessão em vários países por um bom tempo, já que não se removerão as forças a ele contrárias. Se, por outro lado, continuar concedendo-se ao Estado a liberdade para atuar nessa situação, mesmo aumentando ainda mais seu endividamento, como recomendaria Keynes e defende a Moderna Teoria da Moeda, aumentam as chances do mundo sair mais rapidamente dessa crise, adiando a definição para o futuro de como essa conta será paga. Mas essa é outra questão.

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