“O neoliberalismo como ideologia e política econômica não deverá entrar em colapso”. ENTREVISTA COM PAULO NAKATANI

Por Gustavo Mello e Henrique Braga

Professor titular do Departamento de Economia da UFES, Paulo Nakatani comenta, na entrevista a seguir, sobre os desdobramentos socioeconômicos da crise da sociedade capitalista, acelerada pela pandemia do COVID-19. Em especial, o professor chama a atenção, por um lado, para as medidas “draconianas”, que já estavam em curso e serão intensificadas, de piora das condições de trabalho, da redução dos salários e do flagelo do desemprego.  Por outro, para o papel do Estado que atua para salvar a acumulação de capital, explicitando sua “unidade orgânica” com esse último.  

  1. À luz das contradições do capitalismo contemporâneo gostaríamos que você analisasse a relação entre a pandemia de Covid-19 e a profunda crise econômica mundial que ela inaugura.

Essa pandemia surgiu em um contexto em que o capitalismo contemporâneo se encontra mundializado, em um estágio de superacumulação de capital que se concentra na esfera financeira e acumulando-se principalmente em diferentes formas fictícias. Além disso, a concentração da riqueza e da renda em escala mundial, e particularmente no Brasil, chegou a um estágio extremamente elevado, constituindo sociedades nas quais uma parcela importante de suas populações são desnecessárias, supérfluas, para a reprodução do capital, tanto como força de trabalho quanto como mercado consumidor. Temos, então, como consequência, a enorme pressão ao aumento da taxa de exploração da força de trabalho, pela desregulação das relações de trabalho, sua precarização e a destruição das instituições, das políticas e programas sociais.

A crise de 2007-2008 apareceu como se fosse uma crise financeira, com a desvalorização maciça do capital monetário portador de juros em suas diferentes formas fictícias. Mas, a rigor, teve seu fundamento no mercado imobiliário (construção e venda de novos imóveis) dos Estados Unidos, quando as famílias mais pobres não conseguiram mais manter o pagamento das prestações dos financiamentos que haviam contratado, devido ao aumento da taxa de juros. A resposta à crise foi uma brutal intervenção do Estado através dos bancos centrais, o Federal Reserve nos EUA, o Banco Central Europeu, o Banco da Inglaterra, o Banco do Japão, que se destacaram pela política de facilidades monetárias (quantitative easing) com a maciça criação monetária para o resgate de capitais particulares, bancos e empresas diversas e a redução das taxas básicas de juros, geralmente negativas em termos reais. Essa intervenção possibilitou a retomada de atividades produtivas e a recuperação das formas fictícias do capital monetário portador de juros, em poucos anos. Um dos resultados foi a conversão de parcelas do capital fictício na forma da dívida pública. Os impactos dessa crise espalharam-se por todo o mundo e se estenderam no tempo, e algumas economias se mantiveram, em média, relativamente estagnadas, até este ano de 2020. Sem contar que, nos países mais avançados, a reprodução do capital em geral estava necessitando de uma nova rodada de desvalorização, que vinha sendo anunciada por  muitos estudiosos.

A eclosão da pandemia de Covid-19 surgiu nesse contexto de uma nova crise potencial que ainda estava latente, adicionando novas variáveis. 

A primeira variável foi a busca de manutenção da legitimidade dos governos que deviam, ou deveriam, atender às necessidades sanitárias e de saúde da população, pois, em termos concretos, se refere à própria possibilidade de morte de centenas e milhares de pessoas. Para tanto, os diferentes governos, em diferentes momentos, decretaram o confinamento mais ou menos maciço da população, e alguns mais outros menos, o controle e o bloqueio de viagens, tanto internas quanto internacionais. Em primeiro lugar, esta medida interrompeu o fluxo e o movimento do capital nas atividades de comércio, de serviços não essenciais e parte da produção material. Em segundo, bloqueou a circulação do capital em suas formas autonomizadas de capital comercial, capital monetário e capital produtivo. Este bloqueio, tem como consequência a suspensão de atividades de produção de valor e mais valia, de realização, ou venda, das mercadorias produzidas e o desemprego em massa dos trabalhadores.

A segunda variável foi a demonstração efetiva de que as sociedades submetidas ao modo de produção capitalista não têm como objetivo as necessidades humanas, mas a própria reprodução do capital. Se aceitamos que as determinações de confinamento são mais adequadas à redução das mortes, uma parcela daqueles que são contrários estão se manifestando por todas as partes. O retorno dos trabalhadores para a produção de valor e mais valia é mais importante do que a vida de uma parte da população.

  1. Diante do colapso da produção e dos mercados financeiros pelo mundo afora, criou-se um pretenso consenso em torno da necessidade da intervenção do Estado, com vistas a minimizar os efeitos da crise e reduzir sua duração. Como você avalia o sentido geral das medidas estatais que estão sendo implementadas? Com base na experiência histórica recente é possível especular sobre seus efeitos de curto e médio prazo?

O debate a favor ou contrário à intervenção do Estado na economia refere-se ao campo da economia burguesa, entre ortodoxos e heterodoxos. Seu fundamento é a separação entre a esfera da economia e da política ou do público e privado. Para os marxistas, Estado e Capital constituem uma unidade orgânica e não tem sentido discutir se a intervenção é necessária ou não, a não ser ao nível da aparência. A gênese das diferentes formações econômico-sociais capitalistas, a formação do Estado capitalista e o desenvolvimento das relações capitalistas de produção e das classes sociais fundamentais ocorreram ao mesmo tempo.

As ações estatais sobre as unidades particulares de capital, no curso das crises, foram sendo desenvolvidas historicamente, com teorias, modelos e instrumentos, em particular a partir da grande depressão dos anos 1930. Assim, as medidas de política econômica resolvem em parte as contradições próprias ao capital em geral através de medidas voltadas a certas unidades particulares do capital, mas engendram novas contradições. Dessa maneira, no período entre o final da Segunda Guerra Mundial e a década de 1970, conhecido como os anos dourados, o sistema mundial foi relativamente regulado e controlado pelo Estado. Foi um período também chamado de economia mista, em que aparentemente as crises haviam sido superadas. Entretanto, o capitalismo não deixou de funcionar de forma cíclica, e as elevadas taxas de crescimento deveram-se fundamentalmente à reconstrução dos capitais após a maciça destruição física dos capitais e da riqueza acumulada antes da guerra, principalmente da Europa e Japão, e à gigantesca destruição da força de trabalho.

As medidas de política econômica adotas na crise atual são condicionadas pelas condições atuais da acumulação capitalista, além dela estar sendo diagnosticada como uma crise sanitária. Por um lado, observamos novamente a ação estatal voltada para o sistema de crédito, em particular a criação de moeda, o quantitative easing, para reduzir a destruição do capital em suas formas fictícias, o mercado acionário e de dívidas privadas, e para preencher os espaços na circulação dos capitais particulares, através do crédito a taxas de juros reduzidas ou subsidiadas e da manutenção de uma parte da renda dos trabalhadores. Por outro lado, a caracterização da crise como uma crise sanitária, traz como fator de legitimação a suposta ajuda aos pobres.

No curto prazo, as medidas de política econômica deverão amenizar o impacto da crise do capital. Deve reduzir a destruição das unidades particulares de capital e amenizar os efeitos dos bloqueios e supressão de parte das cadeias produtivas. No longo prazo, tanto a concentração do capital anteriormente existente, quanto as desigualdades na distribuição da riqueza e da renda não serão reduzidas, ao contrário pode tornar-se ainda mais aguda. Isso porque a gigantescas unidades particulares de capital, as grandes corporações, têm recursos acumulados que não só permitem que se mantenham como tendem a receber mais benefícios das políticas econômicas. Mas, as micro, pequenas e médias unidades de capital deverão sofrer mais intensamente os impactos da crise, muitas destas unidades deverão desaparecer ou passar por um novo processo de centralização. 

  1. O que essas medidas estatais revelam sobre a relação entre Estado e economia?

Elas revelam a unidade orgânica entre Estado e Capital. Revelam, igualmente, que a gestão do capital e da força de trabalho são realizadas por grupos e instituições estatais que não têm conhecimento das determinações fundamentais do modo capitalista de produção. Mas essas determinações fundamentais aparecem mediadas pelo processo histórico que produziu em cada sociedade uma relação conjuntural de forças entre as classes sociais e pelas diferentes formas de comportamento, sejam elas solidárias ou egoístas. Esses comportamentos aparecem, tanto no tratamento médico imediato da parcela da população infectada pelo vírus, quanto nas mais diversas ações de apoio e distribuição de doações aos mais necessitados. Aparecem, também, no comportamento da parcela que defende seu capital particular, suas rendas individuais e as formas e padrões de vida mais sofisticados da sociedade de consumo capitalista.

  1. Você considera que estamos diante do colapso do neoliberalismo? E, nesse caso, parece plausível uma espécie de revitalização do keynesianismo e do Estado de bem-estar social?

O neoliberalismo como ideologia e política econômica não deverá entrar em colapso. Isso porque respondem às necessidades do capital no estágio atual do capitalismo. O neoliberalismo não significa uma oposição à chamada intervenção estatal, sempre que necessário, há intervenção estatal para salvar capitais particulares em momentos de crise. O neoliberalismo significa que a forma e os instrumentos de intervenção foram modificados. As desregulamentações, chamadas de três D (desregulamentação, desintermediação e descompartimentalização) exigiram uma profunda e feroz intervenção estatal, que não serão revertidas, pois significariam amarras e limites à exploração capitalista.

O keynesianismo e o Estado de bem-estar social foram desenvolvidos em um momento particular da história, a reconstrução do pós-guerra na segunda metade do século XX. Por um lado, pelas necessidades da própria acumulação de capital e por outro, pela aguda luta de classes no pós-guerra, combinada com a necessidade de recuperação da força de trabalho destruída durante a guerra. Ao contrário do que foi muito disseminado, os sucessos dos anos dourados do pós-guerra não foi, a rigor, resultado de políticas econômicas keynesianas, mas à retomada da acumulação de capital determinado pelas condições concretas da reconstrução no período.

Para o capital, o bem-estar das classes trabalhadoras não tem nenhuma importância, salvo quando, no plano concreto, as condições de vida destas classes possam leva-las até uma situação de desobediência civil e insurreição. No momento atual, as frações de classe mais extremadas defendem condições para acabar com o bem-estar das classes trabalhadoras, isso quando não defendem políticas para exterminá-las.

A ideia de uma revitalização do keynesianismo encontra muitos problemas. É comum atribuir esse adjetivo à uma política de gastos públicos, com déficits orçamentários, que trariam benefícios à classe trabalhadora. Considero que esse ponto de vista é um equívoco. Os diferentes governos, nas condições atuais da crise do capital, aguçada pelo novo coronavírus, estão efetuando gastos públicos para atender à conjuntura particular da disseminação do vírus. Muitos poderão desmontar o sistema criado especialmente para atender aos imperativos da acelerada infecção de enormes massas populacionais em busca de uma legitimidade, mesmo que não tenham nenhuma noção desta busca. Ademais, o keynesianismo, de Keynes, nunca avançou no sentido de realmente superar as condições subalternas da classe trabalhadora. Keynes esperava que o mercado, comandado pelos capitais, atingisse um estágio do que poderíamos chamar de capitalismo bonzinho, que reduzisse a jornada de trabalho e criasse um tempo livre para as pessoas. Não tinha ideia do que isso era para os trabalhadores, pois exemplifica com as madames de seu círculo pessoal.

  1. Estaríamos, ao contrário, diante de limites intransponíveis do próprio capitalismo? Nesse caso, quais as perspectivas que se abrem?

Não estamos em limites intransponíveis para o capitalismo. A unidade Estado e Capital deverá propiciar as condições de reprodução ampliada do capital, em particular em suas formas fictícias e acentuar a exploração da força de trabalho. É a maior parte da sociedade que deve estabelecer os limites ao capital. Infelizmente não é o que se observa no momento. Do ponto de vista da sociedade e da maioria da população mundial, o capitalismo já atingiu seus limites há décadas e deveria ser superado por uma nova forma de organização social.

Infelizmente, considero que as perspectivas que se abrem não são muito animadoras, se acompanhamos análises e interpretações sobre a crise atual. Uma parte importante de analistas e intelectuais não estão colocando a questão da superação do capitalismo. Aliás, esta questão não é necessariamente aquela que responde aos interesses das grandes massas de trabalhadores. Além disso, massas gigantescas de trabalhadores estão se defrontando com o desemprego e desaparição das possibilidades de obtenção de alguma forma de renda em todas as atividades chamadas ou de informais ou eufemisticamente de empreendedorismo.

Em termos do capitalismo, é mais um momento de uma crise extremamente grave no movimento cíclico do capital. Mas não representa, necessariamente uma situação intransponível para o capital. Os diferentes governos estão atuando, não só com respostas à crise sanitária, mas com ações para a recuperação e reconstituição do capital em geral e das principais unidades particulares. Esta crise está permitindo que, para a reprodução do capital, mais medidas draconianas de repressão aos trabalhadores, de redução de suas condições de vida e a supressão de muitas décadas de vitórias nas relações trabalhistas estejam sendo efetivamente pulverizadas em curtíssimo prazo.

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UM VÍRUS ENTRE DUAS CRISES

*Texto publicado no blog da Revista Espaço Acadêmico

Fábio Campos¹

“Today, tomorrow, and yesterday, too
The flowers are dyin’ like all things do”
Bob Dylan 

A pandemia do coronavírus nos deslocou repentinamente para um estado de choque e desterro típicos de guerra, em que o uso da palavra colapso passou a ser difundido de maneira deliberada. Poucas vezes na história recente, ou de nossas gerações, presenciamos algo com tamanha gravidade no sentido dos acontecimentos, daí o senso comum procurar significados no passado, sejam no espectro sanitário como a Peste Negra (1347-1353) e a Gripe Espanhola (1918-1920); sejam na economia e suas implicações sociopolíticas como na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ou nas Crises de 1929, 1973 e 2008. Do ponto de vista pessoal, de uma hora para outra, nos vimos confinados em nossos lares diante de inúmeras incertezas, inclusive em relação à própria sobrevivência. Porém, em muitos meios educacionais buscam-se manter a normalidade na forma de ensino à distância implementado às pressas, quando um abismo existencial se abre abaixo de nossos pés. Em outros, tentam manter a engrenagem da produção e dos serviços por desumanas formas de transporte, home office e delivery. Ao embalarem-se por “ressignificações”, “simbolismos”, “subjetividades”, “novas narrativas”, “pós-isso ou pós-aquilo”, também os modismos do pensamento neoliberal denotam ainda o elevado nível de alienação que nos acomete diante das desventuras do capital.

Em sintonia com a diária contagem de cadáveres e do falecimento da produção e do consumo capitalista que impõe uma explosão planetária do desemprego e da precarização da vida dos mais miseráveis, estamos no Brasil sob a vigência de um governo que significa a última geração na gestão do neoliberalismo, ao desconhecer qualquer escrúpulo de representação democrática burguesa em nome da manutenção dos mais variados negócios das classes dominantes que o apoiam. Na pior crise sanitária do século, temos a mais atroz representação governamental brasileira da classe dominante, o que denota a intersecção de dois vetores da mesma realidade: os limites civilizacionais do modo de produção capitalista e sua expressão universal bárbara com a experiência brasileira.

Antes do vírus, no entanto, já havia a combinação de duas crises em nossa regressão civilizacional. Por de trás de duvidosas projeções de crescimento da economia e do comércio mundial, mesmo diante de uma massa de capital fictício que nem o solavanco de 2008 fez parar de crescer, ou da disputa sino-estadunidense pela hegemonia financeira, energética e militar, o capital estava e está sob o curso de uma estrutural crise. O Brasil se insere como parte dela apresentando suas dimensões idiossincráticas que dizem respeito, sobretudo, ao colapso de sua formação nacional definido por algumas décadas, cuja estagnação econômica de quase meio século reflete somente a face mais aparente do problema. 

O arsenal de controle capitalista que sempre encontrou no Estado proteção monetária para casos extremos de fricções e crises, bem como impôs o policiamento regular de insurgentes via meios militares que se viabilizavam por enormes financiamentos, se vê confrontado por um vírus que desafia as vidas humanas espelhando os baixos investimentos em saúde pública, até mesmo nos mais cobiçados estilos de desenvolvimento do planeta. Simultaneamente se descortinam o desespero mundial por materiais médicos de toda complexidade para a sobrevivência de seus povos, que como numa guerra, cai o véu legalista burguês, exprimindo a disputa imperialista, agora, por exemplo, para interceptar o comércio de ventiladores respiratórios. Está a caminho a revelação capitalista eclipsada pelo pensamento mágico burguês: uma economia de abundância em bens supérfluos, como smartfones de última geração na casa dos bilhões de aparelhos consumidos no mundo, e a ausência de abastecimento regular de materiais hospitalares para enfrentar a crise sanitária.

No espaço neocolonial brasileiro, cuja rotina em breve estará mais próxima das sesmarias do século XVII, também o vírus evidenciou para os incautos qual é a genética de nossa classe dominante concebida no mando da escravaria. Em meio a uma tentativa precária e mal formulada de estratégia de isolamento social para conter a pandemia, setores da burguesia brasileira, desde o agropecuário, industrial, passando pelo comércio, financeiro, até os “milicianos-espirituais”, desafiam qualquer racionalidade que possa converter parte de nossa tragédia anunciada em algo menos penoso. Enquanto classe dominante de uma formação nacional destroçada na qual nem a economia, nem a política, pode apresentar móveis seguros de reprodução social, o gerenciamento da anomia se impõe pela necessidade de ampliação da alienação, violência e repressão, metamorfoseando política pública em projeto de holocausto. O foco genocida se volta para as camadas sociais mais vulneráveis que estão nas modernas senzalas das periferias brasileiras dos grandes centros, ou nas cercanias desassistidas de nossos sertões. Aqueles hereges que em maior ou menor intensidade porventura venham a denunciar tal calamidade, também poderão ser enquadrados como comunistas, aptos, dessa forma, a integrar o “grupo de risco” junto dos demais miseráveis infectados ou não.

Desse modo, a despeito do vírus ser biologicamente uma casualidade imperativa da natureza, sua compreensão enquanto pandemia social só pode ser dimensionada na linha histórica do tempo com suas contradições seculares. Mundialmente, o vírus se insere em uma crise particular que, de um comportamento cíclico de reprodução ampliada do capital que vinha desde o século XIX, intermediado por expansão e recessão, tornou-se, no último quartel do século XX até hoje permanente, estrutural. Do ponto de vista econômico, não obstante alguns picos de crescimento do PIB, ou da especialização manufatureira chinesa na nova divisão internacional do trabalho, uma estagnação econômica se colocava de forma perene, em que as gigantescas capacidades ociosas das corporações se combinavam com a produção de mais-valor por meios inéditos e pretéritos de exploração da força de trabalho. Esse mais-valor garantia e garante a crescente apropriação, desde a simples remuneração de lucros, até à fetichizada seiva financeira de juros e dividendos que brota dos retornos líquidos do capital fictício. Diferente de antes, entretanto, em que havia um caráter cíclico de reciclagem econômica da crise, ou seja, queima e nova criação de capital, a partir dos anos 1970 ela se transmutou em uma crise regular, em que a produção e apropriação para assegurar, respectivamente, geração e circulação de mais-valor, dependem igualmente da destruição incessante do mercado da força de trabalho, da natureza e do gênero humano. 

A crise do capital, portanto, não pode ser subnotificada, porque o nível de letalidade é de tal ordem que acomete as engrenagens econômicas e políticas do sistema diante de uma transnacionalização do capital que subordinou os sistemas econômicos nacionais ao seu império de retroalimentação. O modo de produção se converteu em modo de exportação da morte em todas as dimensões da existência: economia, política, cultura, arte, religião, direito, meio-digital, clima, natureza e genética. Do ponto de vista de sua superestrutura, a origem do pandemônio capitalista se forjou na mutação imperialista desde o fim do século XIX em que duas guerras mundiais no século XX pariram um poderoso complexo industrial militar lastreado no capital financeiro, sendo a corporação transnacional a plataforma dessa força. Nasceu desse marco uma contrarrevolução mundial que funcionaria como uma superestrutura de controle, cooptação e opressão, no exato momento que potencialmente o fim absoluto da humanidade seria decretado pela corrida nuclear. Tamanho choque à modernidade permitiu por um tempo exímio coexistir socialdemocracia nas economias centrais capitalistas, mesmo à custa das reservas coloniais e neocoloniais; por outro lado, concedeu um certo prazo de validade para o “socialismo real” que não passava de um burocratismo capitalista soviético; assim como cedeu para alguns países subdesenvolvidos a oportunidade de industrialização, ainda que sob dominação do capital internacional. A serviço da oligarquia do capital financeiro e das inovações tecnológicas desenvolvidas em teatros de guerra, a conversão do controle social do capital em uma racionalidade neoliberal nas economias centrais transformou o socialismo soviético em um gangsterismo capitalista, bem como transpôs alguns processos de industrialização periférica em reversão neocolonial.

Como não poderia deixar de ser, um país como o Brasil, secularmente doente por sua dependência externa e segregação, e, com ideias necrosadas pelo nosso desarmado e desdentado pensamento social, se insere nessa crise do capital contribuindo com sua própria variante: uma crise de formação como nação – num sentido mais básico que se possa entender, ou seja, o de preservar vidas em um território historicamente delimitado ante as pragas biológicas, bélicas, econômicas, tecnológicas e sociais que possam proliferar. Nessa crise estrutural do capital, em que se pronuncia a nossa crise de formação, faz com que o Brasil se integre globalmente pelo seu maior diferencial estratégico de barbárie: a herança escravocrata. Desde o momento em que se tentou e não conseguiu conciliar nos termos da domesticação capitalista: soberania, igualdade social e democracia com o Golpe de 1964, ficou clarividente que emancipação nacional e capitalismo não andam juntos por aqui. 

Mesmo que a industrialização se mantivesse por um tempo com a ditadura, e a burguesia brasileira pudesse legitimar sua dominação política à custa de um crescimento econômico expressivo, a conexão da nossa estrutura econômica e social com o processo de transnacionalização estava sendo fecundada, pois parte da crise do capital já estava sendo precocemente assimilada em nossa vida econômica diante do elevado nível de subordinação ao capital internacional. Tão logo a indústria deixou de ser o principal negócio e passou a ser a inflação para o capital internacional e seus sócios nativos, ou a ditadura se converteu em democracia restrita; tanto a formação econômica do Brasil colapsou, quanto um aparelho contrarrevolucionário poderia subsistir sem a subcontratação militar, mantendo até um certo verniz de “cidadania” com a Constituição de 1988. Depois da violenta crise da dívida externa e sua reciclagem que fizeram do desenvolvimentismo um moribundo, nos anos 1990 em diante, foi quando o Brasil estava pronto para se submeter integralmente ao novo padrão mundial de acumulação nascido com a crise dos anos 1970. Adaptado, por assim dizer, para desindustrializar e reprimarizar sua economia, bem como impor uma regressão ocupacional do emprego formal, tal qual praticar uma saturação do pacto federativo diante da disputa fiscal, ou ainda, catalisar a depredação ambiental em favor do complexo agromineral e pecuário. Sem falar, do aprisionamento do pensamento social a uma estrutura especializada e burocratizada, que aparece nos partidos, atravessa os sindicatos, e, acomete as universidades. Com isso, a contrarrevolução cumpriu por aqui seu desiderato: i)- uma formação econômica do país implodida diante de um controle imperialista maior; ii)- grande parte da população e da natureza submetida à destruição; iii)- e, a incapacidade coletiva de sequer imaginar uma transformação radical por meio da revolução brasileira.

Como representante local de interesses transnacionais que encarnam o capital nesta crise, nossa burguesia pode se inserir oferecendo o que há de mais avançado na extração de riquezas e repressão social que é o nosso passado, passado violento, mercantil, portanto, colonial, que nunca foi superado. Negócios internacionais poderão ser realizados aqui das formas mais espúrias, tanto na produção e circulação de mais-valor, assim como em relações de trabalho que serão crescentemente estabelecidas por renovadas formas de escravidão, estando as camadas populares, supérfluas, famintas e indignadas, destinadas à morte com a ajuda da Covid-19. Nossa imunização só terá efeito duradouro se conseguirmos reabilitar a única vacina inventada pela humanidade contra a peste da opressão – hoje imposta pelo capital, que é a revolução; caso contrário, o vírus ajudará as duas crises interconectadas destruírem todas as flores que restam, tal como o poeta acima ilustra.


¹ Professor e coordenador da pós graduação na área de História Econômica do Instituto de Economia da Unicamp e membro do IBEC.
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EDUCAÇÃO PÓS-PANDEMIA E URGÊNCIA DE UMA NOVA DIREÇÃO

Profa Neide César Vargas
Departamento de Economia/UFES

Até fins de 2019 não se imaginava que a COVID-19 pudesse se transformar numa pandemia, disseminando-se pelo mundo inteiro. Mesmo em 30 de janeiro, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a doença como sendo uma emergência de saúde pública de preocupação internacional[1], não houve grandes mudanças de rumo na maioria dos países. As ações governamentais inicialmente foram tímidas, condicionando os aspectos de saúde pública aos imperativos econômicos, deixando de seguir as recomendações relevantes da OMS já claras desde janeiro. Alguns países inclusive escolheram atacar a OMS, retirando-lhe autoridade e seguindo com políticas de manter tudo funcionando, numa linha de darwinismo social.

Mudanças importantes ocorreram a partir de inicio de março de 2020, com o espraiamento da doença, a consideração da OMS de que a COVID-19 já havia se transformado numa pandemia[2] e o aparecimento de estudos contundentes indicando a necessidade de isolamento social[3]. Desde então, países como EUA e UK passaram a alterar as suas estratégias de enfrentamento da questão. O novo contexto denotou os limites da atuação segundo a lógica do mercado e fortaleceu a adoção de medidas associadas às prerrogativas do Estado Soberano. De acordo com Dardot e Laval (2020)[4] elas englobam a imposição governamental de disciplina e controle social somada à atuação independente e mesmo competitiva em relação ao exterior. Em alguns países, à atuação competitiva entre Estados Nacionais, disputando insumos e equipamentos médicos, se soma uma acirrada disputa interna entre governos centrais e subnacionais por equipamentos e por ganhos políticos com o desenlace da doença, como vem ocorrendo nos EUA e no Brasil. 

A via da intervenção governamental, a despeito de ser a única conhecida e ser de mais fácil e rápido acionamento, parece insuficiente para lidar de maneira sustentável com a questão e seus desdobramentos. O momento sinaliza que a cooperação internacional e as ações globais são caminhos essenciais. O simples retorno do Estado intervencionista por meio dos vultosos créditos e dos gastos públicos envolvidos com socorro de empresas, de bancos e, em menor volume – de pessoas, são apenas medidas de curto prazo. Aprendemos com a crise de 2008 que a alta conta será posteriormente repassada, por meio da dívida pública, ao desmonte da própria estrutura do Estado e aos segmentos mais frágeis da sociedade. 

Adicionalmente, apostar todas as fichas nos Estados Nacionais, quaisquer que sejam as suas ações, tende a intensificar o isolacionismo dos países e a xenofobia, em certos casos alimentando visões políticas conspiratórias, que buscam bodes expiatórios em inimigos internos e externos para justificar os já esperados graves impactos que ocorrerão em termos de perdas de vidas bem como do ponto de vista econômico e social. Também por essa via a intensificação do uso de mecanismos eletrônicos para controle dos indivíduos coloca poderes imensuráveis nas mãos de governos cuja lógica de atuação está longe de ser o bem comum.

A racionalidade neoliberal consolidada nas últimas cinco décadas atingiu amplas esferas da existência humana, moldando o conteúdo e a forma de atuação dos governos, empresas e pessoas[5]. Imprimiu uma lógica de curto prazo generalizada, intensificando a concorrência nas organizações e entre sujeitos. Ampliou-se a interdependência econômica entre países ao mesmo tempo minimizando na agenda dos mesmos as questões atinentes ao bem estar social e aos riscos globais do modelo de sociedade. 

Conforme Dardot e Laval (2020), a pandemia em curso, apesar de afetar a solidariedade social no seu sentido mais básico, não representa o fim do Neoliberalismo e de sua lógica, como alguns tem preconizado. Ela apenas explicita as questões de fundo, obrigando empresas, governos e pessoas a mudarem, que seja no curto prazo, a forma como operam. De qualquer modo, enseja uma oportunidade para refletirmos acerca dos limites do modelo de sociedade que conhecemos, incapaz de garantir adequadamente e a todos, a provisão de serviços públicos básicos como a saúde e a educação. Os serviços públicos, de acordo com os mesmos autores, tendem a ser insuficientemente atendidos sob o princípio da soberania dos Estados. Por se guiarem pelo princípio da solidariedade social a sua dimensão pública não se vincula necessariamente a amplificação do poder do Estado ou a uma aposta anacrônica na sua provisão como um favor do Estado.

Considerando também a hipótese mais provável de não ocorrer significativa reversão da mundialização financeira e produtiva, a sua própria extensão, o significativo fluxo de bens, serviços, capital e de pessoas, faz com que a chance de ocorrência de novas pandemias se amplie. Esse é mais um fator a exigir uma nova direção global e sustentável para a provisão de serviços públicos básicos como a saúde, não redutível a saídas estritamente nacionais e de cunho estatal. 

Não obstante, o que temos visto na prática mundial é o protagonismo do Estado Soberano, inclusive nos países que escolheram adotar medidas menos enérgicas. Dentre o leque de medidas de controle governamental aparecem os diferentes graus de isolamento social, envolvendo fechamento de escolas e de locais de trabalho. Não se questiona, neste texto, a eficiência dessas medidas governamentais e de curto prazo para minimizar a disseminação da doença, fato comprovado pela experiência dos países que já passaram por fases mais agudas da epidemia bem como por estudos recentes[6]

O objetivo deste texto é, tomando o fechamento das escolas como um dado, identificar algumas contradições já em curso na Educação e o seu acirramento com a adoção dessa medida, favorecendo um aprofundamento do direcionamento segundo a lógica do mercado e da concorrência. No que tange ao curto prazo destacaremos três frentes de manifestação: a relação entre o perfil socioeconômico das famílias e o fechamento de escolas/faculdades/universidades; a relação das organizações ligadas à educação (governamentais e privadas) entre si e delas junto aos professores; e, particularmente, os impactos do fechamento de escolas sobre os mecanismos usuais de pesquisa científica. A partir dessas frentes, serão esboçadas possíveis tendências de longo prazo, cujo desenlace numa direção diferente da mais provável depende do perfil de atuação e da capacidade de mobilização dos movimentos sociais e militantes pró-educação.

Estimativas da UNESCO indicam que no ponto máximo, em 25 de abril de 2020, perto de 1,7 bilhão de estudantes, da pré-escola ao ensino superior, tinham sido afetados pelo fechamento de escolas em função das políticas de isolamento social adotadas pelos governos. Para termos uma noção da generalização dessa medida pelo mundo a mesma fonte nos mostra que ela chegou a abarcar 90,2% dos estudantes e 191 países. Não as adotou apenas a Bielorússia, o Cazaquistão e o Turcomenistão e os casos de adoção localizada também foram poucos: os EUA, a Rússia, a Austrália e a Groelândia. A China reverteu recentemente sua posição para um fechamento localizado. No Brasil, envolve quase 53 milhões de estudantes sendo 5,1 milhões da pré-escola, 11 milhões do ensino fundamental, 23 milhões do ensino secundário e 8,6 milhões do ensino superior.

Quando se discute a relação das famílias com o fechamento das escolas devemos considerar que famílias são organizações multifacetadas, a depender do nível de renda, de aspectos sociais, políticos e culturais. Pobreza, violência doméstica e demais problemas pré-existentes tendem a se intensificar em momentos de crise. De qualquer forma, para as famílias como um todo, o custo econômico de manter as crianças em casa tendeu a se elevar. Nicola et al (2020)[7], citando estudos da Brookings Institution, sugerem que o fechamento de escolas nas maiores cidades dos EUA correspondeu a um custo médio de U$ 142 por estudante. Em Nova York, em particular, o custo de fechamento das escolas por quatro semanas foi estimando em U$ 1,1 bilhão. Na mesma fonte cita-se que o fechamento de escolas por uma semana em Taiwan, em 2009, por conta do surto de H1N1, fez com que 27% das famílias não pudessem trabalhar, sendo que 18% perdeu renda.  

No caso específico de crianças de famílias de baixa renda, os efeitos são ainda mais devastadores. Muitos pais não são dispensados do trabalho, como tende a ocorrer no Brasil com empregadas domésticas, faxineiras, jardineiros, porteiros e, no mundo todo, trabalhadores em atividades essenciais, notadamente na área de saúde. Além desses, os trabalhadores na informalidade, que atingem cerca de 40% da PEA brasileira, não tem essa “opção”, necessitando seguir trabalhando para garantir renda para sua família. Ao ônus de continuar trabalhando, quando é possível, se agrega o fato de necessitarem de apoio familiar ou incorrerem em gastos adicionais para o cuidado com suas crianças.

Daí a importância de políticas emergenciais de renda mínima como tem sido adotadas em muitos países. No Brasil tais políticas já foram decididas mas não ainda totalmente operacionalizadas, estando muitas dessas famílias ao desamparo.

Além da questão econômica, nas famílias de baixa renda em que os pais seguem trabalhando, as crianças em casa estão sob maior risco de contaminação. Dados até 17 de abril para a cidade de São Paulo, acerca do perfil dos contaminados pela COVID-19 por bairros, gênero e faixa de idade, mostram que quem mais se contamina são mulheres de 30 a 39 anos, seguidas das de 40 a 49 anos e as de 20 a 29 anos e os óbitos ocorreram principalmente nos bairros periféricos[8]. Além disso, a dependência das famílias de baixa renda da alimentação oferecida nas escolas para as crianças amplia os riscos de faltar condições mínimas de sobrevivência para as mesmas. Por outro lado, tendo em vista que a escola funciona, em muitos casos, como espaço protetivo dos direitos das crianças, também se eleva o risco de agressões domésticas às mesmas.

Outra questão para esse tipo de famílias é a adoção de tarefas escolares em casa sendo que os pais muitas vezes não estão presentes e, os que estão, nem sempre tem o preparo para dar o apoio que a criança necessita. Mas também em famílias de classe média/alta o fato dos pais trabalharem em regime de home office pode dificultar o acompanhamento das crianças. Agrega-se a isso o uso do ensino digital. Em função da desigualdade social, segmentos significativos de estudantes, especialmente nas escolas públicas, não têm acesso doméstico à internet e muito menos a posse de computadores/celulares[9]. Esse problema se reproduz para o ensino superior, num contexto de um número significativo de estudantes universitários de baixa renda. Isso complica o uso das aulas remotas, generalizadas em faculdades privadas. 

Uma segunda frente que esse texto quer destacar é o impacto do fechamento das escolas nas organizações educacionais e junto aos professores. Ampliou-se em muito a pressão para a adoção de formas remotas de ensino visando garantir um mínimo de continuidade das atividades escolares. Como exemplo, nas escolas públicas do município de São Paulo foi firmada uma parceria com a Google e a Foreducation EdTech para o uso de uma ferramenta tecnológica complementar denominada G Suite for Education[10]. Com isso passou-se a contar com ferramentas digitais gratuitas para serem utilizadas pelos estudantes, em casa e de maneira complementar, durante o enfrentamento da pandemia. A iniciativa deve atingir estudantes de todas as etapas (Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos), envolvendo mais de 1 milhão de estudantes e 80 mil professores da Rede Municipal.

De acordo com informações do site da prefeitura a implantação dessas ferramentas tecnológicas envolve dois elementos: a criação das Contas Google Educacionais para docentes e estudantes, usando-as como canal de comunicação entre estudantes, famílias e educadores; a formação técnico-pedagógica para os profissionais de TI e gestores da secretaria de educação e transmissões orientadoras para os professores da Rede Municipal. A ferramenta complementa o material pedagógico impresso, elaborado pelos educadores da secretaria, enviado pelo correio e também disponível online[11].    

Não obstante as críticas que se possa fazer ao uso dessas tecnologias educacionais remotas, elas não são reprodutíveis num quadro nacional de grande assimetria econômica municipal. Não contando com recursos nem mesmo com a cultura de uso desses mecanismos, escolas e mesmo universidades públicas, podem ficar paralisadas por um tempo significativo ou funcionar em grande nível de precariedade[12], por não ter as condições mínimas para adotá-las. Isso amplifica a desigualdade de acesso à educação, com favorecimento a estudantes de famílias de maior renda e de escolas privadas. Por outro lado, as pressões políticas dos governos e da sociedade sobre a rede governamental ampliam as chances da extensão das horas de trabalho de professores, para os quais muitas das responsabilidades ligadas à viabilização do ensino remoto tendem a ser transferidas. Ao mesmo tempo, o trabalho não visível estimula propostas de redução de salários, de despedida de temporários além da busca de saídas pela via da contratação de serviços privados, conforme fez a prefeitura de São Paulo. 

Em contraste, nas escolas privadas, muitas previamente já envolvidas com o uso de tecnologias digitais, as condições técnicas e formativas para garantir a continuidade das suas atividades escolares tendem a ser viabilizadas de forma mais rápida. Nessas instituições o fato de ocorrer pagamento de mensalidades pressionou para a adoção do ensino remoto. Mesmo que de forma por vezes precária generalizaram-se o uso de seus sites e mesmo de ferramentas habituais em contatos empresariais como é o caso do Zoom. Por outro lado, em países como Dubai, houve pressão das famílias para reduzir o valor das mensalidades, sendo que 13,900 pessoas fizeram petições para reduzir em 30% mensalidades de escolas privadas (NICOLA ET AL, 2020).

Devemos ponderar que o uso abrupto das tecnologias de ensino remoto pelas escolas e a independência do estudante frente ao espaço escolar e à mediação dos professores tendem a explicitar seus limites e dificuldades. Aulas e reuniões remotas nem sempre são eficazes, e nos casos em que são, requerem a disseminação de formatos pedagógicos novos. Também tendem a explicitar os limites do ensino doméstico, mostrando que ele não funciona em muitos casos tendo em vista as condições da maioria das famílias. 

Mesmo com todos esses senões, a disputa entre escolas públicas e privadas – e dessas últimas entre si -, tende a se ampliar de forma rápida com franca desvantagem para as públicas. As universidades federais, em particular, tem vivenciado cortes de recursos desde 2014 e estão sendo forçadas a absorver tecnologias de difícil generalização em função das inadequadas condições técnicas e da desigualdade de renda dos estudantes.  

A última frente que destacaremos nesse texto são os impactos do fechamento de faculdades e universidades sobre o modelo de pesquisa científica corrente. Na pós-graduação as medidas de fechamento atingem aos grupos de pesquisa, muitos deles pausados ou suspensos por problemas de financiamento e/ou pelo redirecionamento dos professores e fundos para as áreas correlatas a COVID. No Reino Unido, The National Funding Body for Health Research interrompeu todas as pesquisas que não são na temática COVID-19 para permitir que os profissionais da saúde retornassem a linha de frente. Nos EUA ação similar foi adotada pelo National Institute for Health. As pesquisas fora dessa área, especialmente humanidades, paralisaram totalmente na maioria das instituições com a universidade de Harvard, por exemplo, fechando todos os laboratórios na Faculty of Arts and Sciences (NICOLA ET AL, 2020).

Isso também aconteceu no Brasil, nas universidades federais, com a manutenção de atividades de pesquisa presencial apenas nos casos relativos à COVID-19, sendo as demais precariamente mantidas no modelo remoto. Adicionalmente, eventos científicos foram cancelados ou postergados para o segundo semestre. 

Devemos destacar que as conferências são fundamentais para a pesquisa científica em muitas áreas, servindo para disseminar e trocar conhecimento e estabelecer vínculos colaborativos entre pesquisadores e instituições. Algumas conferências tem sido feitas online mas esse não é o modelo de produção de ciência que a humanidade tem praticado até o momento, sendo menos efetivo para o estabelecimento de redes e contatos informais usuais. Com isso tem-se prejuízo à pesquisa que, no caso do Brasil, é realizada predominantemente por universidades governamentais, sendo uma esfera adicional de ônus sobre as mesmas. 

Identificadas tais frentes na Educação, cuja dinâmica já sofria forte influência da lógica da concorrência e das saídas isoladas, podemos observar que o fechamento das escolas e universidades tende a estimular ainda mais tal lógica, sendo os seus efeitos mais intensos quanto maior o impacto sobre a qualidade do ensino, maior o tempo que as organizações de ensino fiquem paralisadas e quanto mais demore a descoberta e uso massificado de uma vacina para a COVID-19. 

Em outras palavras, deixadas ao sabor dos governos, da lógica de mercado e das saídas isoladas, as pressões em curso tendem a potencializar as contradições já existentes na Educação em âmbito mundial e no Brasil. No que tange ao Ensino o risco é a generalização rápida de um modelo caracterizado pelo aligeiramento dos conteúdos, pela ampliação do uso conjugado do ensino presencial e digital, remoto ou não, e pelo aumento da exclusão dos mais pobres, favorecendo as escolas privadas e reduzindo o acesso à Educação de qualidade. E o simples combate ao uso das tecnologias digitais remotas está longe de reverter esse quadro.

Após o período mais agudo da pandemia, nada de diferente ocorrendo no âmbito das pessoas e organizações, a tendência é a simples manutenção da razão de mundo atual que transfere ao individuo e às organizações a responsabilidade para resolver as dificuldades. Isso sob um quadro de agravamento dos diferenciais entre o público e o privado e entre ricos e pobres. Por isso concordamos com Dardot e Laval que consideram que serviços públicos essenciais como saúde e educação precisam de uma nova direção. A pandemia nos deixou claro os limites da provisão de serviços públicos de saúde por meio da atuação isolada dos governos, ou guiados pelo mercado ou pela visão convencional de soberania nacional. Também na Educação a ajuda mútua entre pessoas, organizações e países, numa atuação coordenada e cooperativa, a produção conjunta do conhecimento necessário são a saída mais promissora para a maioria. Mas essa lógica dos Comuns Mundiais não virá dos mercados nem dos governos. Sem uma mobilização política das pessoas e organizações para além da lógica habitual e a ampliação das pressões sociais daí decorrentes, a mudança de direção não prevalecerá.

NOTAS


[1] https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200131-sitrep-11-ncov.pdf?sfvrsn=de7c0f7_4
[2] https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200311-sitrep-51-covid-19.pdf?sfvrsn=1ba62e57_10
[3] https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/medicine/sph/ide/gida-fellowships/Imperial-College-COVID19-NPI-modelling-16-03-2020.pdf
[4] https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/26/dardot-e-laval-a-prova-politica-da-pandemia/?fbclid=IwAR1oxc25PjOmX_nJRrutl-c-p1-937Y5eq-xC-qGoCwMJoC6EuGyn_eRXOk
[5] Para aprofundar esse aspecto ver: DARDOT; LAVAL A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.
[6] Estudo publicado na revista The Lancet mostra, num cenário de 2% de letalidade e isolamento completo, escolas e trabalhadores, reduz-se em 99,3% a abrangência da disseminação, comparando-se com um cenário base em que nada seja feito. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1473309920301626
[7] Artigo de abril de 2020: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1743919120303162
[8] http://periferiaemmovimento.com.br/wp-content/uploads/2020/04/PMSP_SMS_COVID19_Boletim_Semanal_20200417-1.pdf
[9] Segundo a PNAD contínua (IBGE), em 2018, o rendimento médio per capita para os que utilizavam internet era de R$ 1.769 e dos que utilizavam computadores, R$ 2.569 e o celular, R$ 1.765. O levantamento mostra que 79,1% dos domicílios no país tem acesso a internet, mas na área rural o acesso é menor, apenas 49,2% dos domicílios.
[10] Conforme informações das empresas, o Suite for Education é usado hoje como plataforma tecnológica por 120 milhões de professores e alunos no mundo todo.
[11] http://www.capital.sp.gov.br/noticia/covid-2013-19-estudantes-e-educadores-poderao-contar-com-tecnologicas-do-google-e-foreducation
[12] Sob críticas de entidades estudantis a USP manteve o semestre letivo 2020/1 da graduação em regime remoto.
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DESCONSTRUINDO FALSAS VERDADES EM TEMPOS DE PANDEMIA – PARTE 1

Vinícius Vieira Pereira Prof.
Departamento de Economia da UFES 
Tutor do Programa Pet Economia/UFES

Nos trágicos dias em que vivemos, algumas ideias vêm se difundindo de modo generalizado e precisam ser atacadas. Entre elas, destacaremos três. A primeira, que surge diante da certeza do caráter transitório da crise, é a de que, passada a turbulência momentânea, retornaremos à normalidade da vida pré-crise, o que pressupõe idéia de uma sociedade natural, aceitável, exemplar, equilibrada, desejável, que serve de modelo, sem defeitos ou problemas, para ficarmos apenas nesses poucos significados do verbete normal. Uma segunda mensagem, geralmente tomada como ponto de partida nas análises sobre a crise econômica causada pela Covid-19, é a de que esta crise é externa, ou exógena à sociedade capitalista e, portanto, não foi gestada internamente pelas nossas ações e pela forma como vivemos, produzimos e nos reproduzimos neste grande sistema social, mas sim, causada por um elemento estranho a ele, um vírus. E a terceira é a que insiste na tese de que a Covid-19 é uma doença democrática e que atinge, ricos e pobres. As três receberão, aqui, uma análise crítica, pois precisam ser desconstruídas.

Para atingirmos nosso objetivo, construiremos o presente argumento em uma série de três textos, que serão publicadas sequencialmente neste blog. Nesta primeira parte, a tarefa será a de questionar o argumento do retorno à “vida normal”. Como escrito em algum muro de algum país europeu, não se pode voltar à normalidade, pois ela era, em si, parte do problema. Assim, começaremos apresentando um contraponto, de imediato, qual seja, a ideia de que a vida conduzida pela lógica do capital não era normal, natural, equilibrada ou aceitável antes da Covid-19. Os problemas e os defeitos da vida na sociedade capitalista pré-crise deveriam constituir-se motivos suficientes para não a tratarmos como modelo idealizado, mas sim, buscarmos formas de suplantá-la, se pretendermos uma existência longa e humanitária para a nossa espécie no planeta Terra. 

Não podemos considerar “normal” uma sociedade marcada pela extrema desigualdade entre as pessoas e os povos, por uma concentração da riqueza sem paralelos na história humana[1], e que, só em nosso país, atingiu números alarmantes[2]; não devemos tomar como modelo uma sociabilidade pautada na exploração insensível do homem e da natureza pelo próprio homem[3]; uma existência que se sustenta na destruição dos biomas da Terra em nome da geração de empregos e da maior lucratividade dos negócios; uma sociedade que utiliza o conhecimento e o progresso tecnológico com o fito exclusivo da busca pelo lucro sem se importar com o abandono, a exclusão e a miséria em que vive metade da população mundial, segundo dados da ONU[4]; uma forma de vida que, baseada na concorrência e na competição entre os indivíduos, tornou-se incompatível com a coexistência de sentimentos humanitários como a solidariedade, a amizade e a fraternidade; um sistema que produz lixo e poluição atmosférica numa escala incompatível com a capacidade de escoamento desses rejeitos e com a saúde dos organismos vivos[5]. Para não nos alongarmos muito, uma sociedade pautada no fetichismo do dinheiro, onde as mercadorias se tornam entidades sobre-humanas que justificam qualquer sacrifício em nome de sua obtenção, uma sociabilidade dominada pela estética das formas aparentes e motivada por uma compulsão insaciável ao consumo.

Esta sociedade “normal” em que vivemos produz violência, exclusão e miséria na mesma proporção em que aumenta a população desabrigada, abandonada, faminta e encarcerada. Produz pequenas ilhas de riqueza num extenso oceano de pobreza em proporções insustentáveis para as nossas cidades[6]; dissemina o ódio contra as populações migratórias nas regiões de destino condenando-as a um retorno a lugar nenhum; uma sociedade que se sustenta na deterioração da saúde física e mental de crianças, jovens, adultos e velhos, cada vez mais dependentes de drogas lícitas e ilícitas ou apanhadas pela epidemia de suicídios[7] e no acirramento das relações econômicas, políticas e diplomáticas entre as nações que as coloca na iminência de uma guerra derradeira; enfim, um mundo distópico, cruel, cujo cenário de destruição e morte se naturaliza ainda mais se consideramos natural o seu retorno. 

Longe de qualquer abstração, este cenário trágico acima narrado é a nossa realidade concreta, pois, é neste mundo “normal”, que legitima a desigualdade e naturaliza a morte, que construímos nossas perspectivas e projetos de futuro. A maior prova de que o caminho que trilhamos de mãos dadas com o capitalismo não é normal vem dos próprios capitalistas, ou pelo menos, de um seleto grupo deles, entre os quais se conta o 1% dos mais ricos do mundo.  Apostando na tragédia como certeza de um futuro próximo, alguns dos mais destacados empreendedores bilionários do Vale do Silício, como Peter Theil e Sam Altman, entre outros super-ricos, a exemplo de Bill Gates, compraram propriedades e bunkers, esconderijos nucleares, na Nova Zelândia, refúgio considerado seguro para essa pequena elite se proteger do momento em que o sistema entrará em colapso e eclodirá, alternativa tida como certa por eles[8]. Segundo alguns desses gênios da tecnologia de ponta, a superpopulação, a mudança climática, a recorrência de pandemias, a extrema desigualdade e a violência, as migrações em massa, o esgotamento de recursos naturais, as fomes e o pânico levarão a população mundial a viver, na pele, uma realidade comparável a um episódio de Mad Max[9]. Indispostos a buscarem soluções para tornarem esse mundo melhor, os empreendedores de sucesso, como os fundadores de empresas como Reddit, Linkedin e PayPal, convenceram-se de que o governo norte-americano e as estruturas que o sustentam não conseguirão protegê-los e, desse modo, é necessário transcender completamente a condição humana. Enquanto tentam tornar possível a vida em outros planetas, a substituição de humanos por robôs e a reversão dos processos de envelhecimento[10], estocam comida, armas, munições e se equipam com motos e carros futuristas para defenderem a si próprios, suas famílias e seus patrimônios da revolta final, ou grande apocalipse do capital[11]

Ora, se diante de um cenário desolador causado por uma pandemia mortal, sonhamos com uma normalidade igualmente trágica, na qual o estado de barbárie domina a vida social, a pergunta que nos resta fazer é se um retorno à normalidade deve servir de guia neste contexto de crise. A busca por novas alternativas de sociabilidade deve entrar na pauta das discussões políticas e acadêmicas entre as mais urgentes na contemporaneidade. Diferentes ideias sobre o assunto têm sido expostas de modo cada vez mais frequente na imprensa e nos debates políticos. Dentre estas, destacaremos três, apresentando, em seguida, uma análise crítica da proposta. Em comum, elas guardam a necessidade de superar o neoliberalismo. Porém, uma delas, trabalha com o firme propósito de superação do capitalismo. 

A primeira, e mais repetida nos canais de mídia cujos editoriais mantêm o mínimo teor crítico, é a que sugere o abandono do capitalismo neoliberal e o retorno ao capitalismo do Estado de Bem-estar Social, ou Welfare State, modelo econômico que marcou a era pós-Segunda Guerra, pautado nas políticas econômicas de cunho keynesiano. Para os defensores dessa tese, o estado voltaria a assumir a proeminência nas decisões de produção e renda, criando mecanismos de proteção social, planejando e tomando decisões econômicas ao invés de deixar que o mercado sinalize,por meio do lucro, o que é necessário às pessoas[12]. Naquele momento da história, a posição assumida por uma estrutura estatal robusta resultou nos chamados trinta anos de glória do capitalismo no ocidente, ainda que pairasse sobre nossas cabeças uma guerra fria, e outras tantas quentes, levadas à cabo por nosso grande tutor, os EUA, que se preocupava incansavelmente em proteger o mundo contra a ameaça socialista que vinha do leste. Para levar à cabo tal projeto, os governos se endividaram e uma estrutura de financiamento de dívidas públicas se ergueu, permitindo aos bancos e financeiras de todos os cantos do mundo surfarem alegremente ao longo das últimas cinco décadas. O resultado positivo para as classes trabalhadoras surgiu através da rede de proteção social construída, baseada nos sistemas de seguridade social, o que significou acesso aos seguros desemprego, aos planos públicos de aposentadoria, pensão e auxílios emergenciais, aos benefícios de assistência social, à saúde pública, entre outros. Para a população, era o estado protetor. Para o capital privado, era o estado que chegava em boa hora, pois, garantia a sua valorização, financiando a infraestrutura necessária à produção e oferecendo os bens e serviços sociais essenciais ao funcionamento do mercado. Metaforicamente, pode-se afirmar que o estado reduzia o fogo sob a panela de pressão social, em momento tão dramático para os povos ocidentais recém-saídos de uma crise econômica sem precedentes e de uma guerra mundial devastadora. Havia, pela frente, um mundo a ser reconstruído.

No entanto, tal proposta precisa ser debatida, afinal, urge saber se as condições históricas presentes àquele momento do desenvolvimento do capitalismo estariam disponíveis nos dias de hoje. Num exercício de história sincrônica, comecemos com o modelo produtivo em voga nas indústrias, e os tamanhos das plantas produtivas e da classe trabalhadora formal, assim como a força dos sindicatos; as linhas de bens de consumo de massa requeridas pela população e produzidas pelas fábricas, o nível da produtividade do trabalho e a remuneração correspondente, bem como a capacidade desta de responder com consumo efetivo aos estímulos potenciais da oferta; os níveis de concentração e centralização do capital nos diferentes setores da economia; a predominância de uma ideologia política social-democrata, fundamental para a construção da estrutura nada mínima do estado e da rede de proteção social instalada; o nível de endividamento dos estados e a política de administração da dívida pública; o padrão cultural capaz de assegurar a reprodução da estrutura de consumo erguida; as relações internacionais e o respeito aos mecanismos supranacionais que sustentam a hegemonia de poder; a vigência de sistemas cambiais compatíveis com um projeto dessa natureza; a existência, ou não, de um modelo de sociabilidade alternativo concorrente com o capitalismo, como era, naquele momento da história, o que se pautava na proposta socialista/comunista, do qual a URSS era seu maior representante; a disponibilidade de recursos naturais e o nível de esgotamento da natureza. 

Enfim, aqueles que creem nessa alternativa como retorno pós-crise do coronavírus devem analisar todas as questões que passam necessariamente pela forma e estrutura do estado, do específico momento histórico da luta de classes e pelo grau de destruição da vida no planeta, pois somente assim poderemos idealizar horizontes factíveis. E vale lembrar que, no atual momento em que vivemos, as políticas que defendem um estado mínimo dominam a esfera política e ideológica. E, de acordo com Noam Chomsky, sociólogo e linguista norte-americano, para quem o neoliberalismo é o “capitalismo sem luvas”[13], o martelo neoliberal, aquele que determina a justiça nas democracias capitalistas contemporâneas, decreta que os governos não podem e nem devem agir, pois eles são o problema e não a solução[14].

Uma segunda opção para um não retorno às condições pré-crise, porém mantendo-se também a base ideológica do capitalismo como cerne da organização social, e que tem ocupado lugar de destaque na imprensa atual, é a descrita a partir do pensamento de Kate Raworth, economista e professora da Universidade de Oxford, em seu livro cujo título em português é Economia donut: uma alternativa ao crescimento a qualquer custo. Sobre a ideia central da autora, o colunista do The Guardian, George Monbiot, descreveu como sendo uma alternativa inovadora para o crescimento econômico[15]. Contrapondo-se à continuidade da lógica de expansão econômica baseada no neoliberalismo, o modelo de Raworth toma como metáfora uma rosquinha doce, um donut, daqueles que policiais comem dentro dos carros em filmes de origem anglo-saxã, a partir do qual, desenha os limites mínimo e máximo de consumo e bem-estar das populações nas cidades do futuro alternativo que sua tese supõe. O anel interior do donut representa o mínimo de alimento, moradia, água tratada, energia, educação, higiene, cuidados de saúde e bem-estar, igualdade de gênero, renda e voz política que todos os cidadãos devem ter para lhes garantir uma qualidade de vida tida como “boa” na visão da autora. O anel externo representa o limite máximo aceitável de consumo e renda dos indivíduos, limite este definido pelos cientistas a partir das condições de exploração e de danos causados ao clima, solo da terra, oceanos, camada de ozônio, à água pura e à biodiversidade. Qualquer posição que ultrapassasse tais limites não seria permitida pelos governos. Se, aquém do limite mínimo, cairíamos no buraco da rosquinha, o que indicaria uma situação socioeconômica incapaz de assegurar as condições mínimas de sobrevivência aos indivíduos que ali se situassem. Tal condição não seria aceita, a partir do que entraria em cena mecanismos de planejamento estatal para mitigar os problemas surgidos. Se, além da circunferência do donut, a posição seria igualmente rejeitada e impedida pelos governos por representar um nível de consumo que não respeitaria os limites da natureza, podendo ferir de morte o planeta Terra.

Pois bem, esse modelo donut foi recentemente abraçado pela prefeita da capital da Holanda, Marieke van Doorninck, que pretende levá-lo adiante, como plataforma política, aplicando-o experimentalmente à cidade de Amsterdã. Ela se justifica afirmando ser essencial pensar, agora, no pós-crise da Covid-19, mas sem recorrer aos mesmos mecanismos fáceis de outrora. Segundo ela, emprego, clima, renda e saúde são aspectos que devem ser tratados conjuntamente e com os quais temos de nos preocupar. Ela acredita que há uma estrutura ao nosso redor que nos habilita a tentar essa estratégia de construir uma economia que se preocupe com moradias e cuidados comunitários. E o momento clama por isso, afirma a deputada prefeita.

Ora, cabe discutir sobre os pressupostos que ancorariam uma proposta desse porte. Construções civis sustentáveis, produção de alimentos orgânicos ou com menos agrotóxicos, recusa de utilização de materiais e produtos oriundos de combustíveis fósseis bem como originados a partir de uma elevada exploração do trabalho seriam, de fato, muito bem-vindos ao mundo de hoje, não há quem negue. Necessidade de regulação e regulamentação dos espaços urbanos e planejamento da produção não são constatações novas e tratam-se de temas há muito debatidos seja por keynesianos, regulacionistas, institucionalistas, entre outras correntes que também perpassam subsidiariamente o assunto. Mas, toda e qualquer estratégia nesse sentido necessita, assim como a proposta anteriormente debatida, de um forte aparato estatal, do tipo que as políticas neoliberais já trataram de aniquilar nos últimos cinquenta anos. Recuperá-lo custará vontade política, recursos públicos e um tipo de globalização integradora e participativa que, para usar os termos da escola regulacionista, seja capaz de estimular o desenvolvimento a partir da criação de um conjunto harmônico entre as formas estruturais e o regime de acumulação. 

Ora, esse caminho não faz parte dos planos de crescimento do capital, nem de seus grandes arautos, a elite política e economicamente dominante. Até mesmo o questionável equilíbrio internacional de poder hoje mantido graças à produção e ao consumo de petróleo torna-se um grave empecilho para a proposta de mudança da matriz energética do planeta, uma das teses de apoio do modelo donut, na busca por uma forma menos poluente de geração de energia. Além do que, ainda que houvesse vontade política, cabe perguntar de onde viriam os recursos para garantir essa presença ativa dos mecanismos do estado, haja vista os limites impostos pelo mercado às dívidas públicas nacionais e às políticas discricionárias dos governos democraticamente eleitos nas últimas décadas.

Se se pretende discursar em favor de reformas tributárias que imponham uma tabela progressiva de impostos e a taxação de grandes fortunas e heranças, voltaríamos ao mesmo argumento já sugerido por Thomas Piketty[16], ideia que não angariou aliados de peso, não teve forças para sair do espaço acadêmico e mostrou-se inofensiva. Prova disso foi a repercussão midiática, digna de bestseller, que os principais canais da imprensa dominante no mundo deram ao autor e ao seu trabalho. E, de resposta ainda mais difícil: como impedir, ou mesmo controlar o consumo individual num modo de produção em que os lucros do capital, principal sinalizador da economia, disso dependem? Não nos esqueçamos de que o sentido maior da acumulação de capital repousa na aposta sobre o consumo ilimitado de mercadorias e serviços, crença maior que esta sociedade “livre” sempre cultuou.

Para encerrar, tratemos de uma terceira alternativa, em parte já em curso, porém em comunidades modelos, surgida no Brasil, a partir do Movimento dos Trabalhadores sem Terra. Organizado como um movimento político de amplitude nacional e ancorado em uma estratégia de socialização de setores estratégicos da economia, esse movimento defende uma política social que se baseia na aposta da superação do capitalismo e da construção de uma via democrática de socialismo. Apesar da estratégia já estar em curso na sociedade real, capitalista, ela ainda está limitada aos núcleos de povoamento constituídos por trabalhadores rurais, ou camponeses, conquistados via reforma agrária, os assentamentos. 

Defendendo a repartição planejada da terra, a partir do assentamento de famílias em lotes de tamanho pré-definido e cujas medidas mudam conforme a região, o tipo de produto predominante e a fertilidade do solo, a propriedade do solo por parte das famílias assentadas nos lotes, segundo a página do próprio movimento, é “apenas o primeiro passo rumo à reforma agrária”[17]. Nesse modelo de sociedade, após receberem o lote para nele trabalharem, as famílias continuam a participar do movimento. Todos os assentados e aqueles que estão acampados à espera de um lote de terra para também poderem trabalhar organizam-se numa estrutura participativa e democrática para tomar as decisões pertinentes à comunidade, tais como, necessidades de saneamento, cuidados com saúde, atendimento médico, energia, acesso à cultura e lazer. A mesma estrutura se repete em nível regional, estadual e nacional dentro do movimento. 

A soberania alimentar é o principal pilar da produção material nesse modelo, como assegura o líder nacional do MST, João Pedro Stédile[18]. Soberania que, segundo os ideais do movimento, deveria guiar não apenas a produção dentro dessas comunidades, mas no país como um todo, como a política agrária necessária para garantir bem-estar ao povo brasileiro, algo que o sistema baseado na concentração capitalista da terra, os grandes latifúndios monocultores, não consegue fazê-lo. Defendendo sempre que possível a agroecologia e as formas sustentáveis de produção alimentar e industrial, bem como de construção civil, a monocultura é desestimulada.

Em busca da construção de uma forma diferente de pensar a sociedade humana, uma nova ideologia é erguida, baseada na solidariedade entre os indivíduos e os povos, na produção comunitária, na preservação do meio ambiente, na desconstrução de preconceitos de gênero, religião e cor da pele. Por isso, todos desempenham atividades domésticas, políticas, educacionais, agrícolas e industriais. O sucesso conquistado pelo MST em seus assentamentos levou os norte-americanos, James Petras e Henry Veltmeyer, na obra, GlobalizationUnmasked: imperialism in te 21st century, a tratá-lo como um movimento sócio-político que se apresenta como resposta concreta ao imperialismo capitalista norte-americano no século XXI[19]. Os autores consideram essa alternativa de sociedade como uma possibilidade factível, uma vez que surge das lutas populares de massas sob liderança socialista ou, no mínimo, anti-neoliberal/anti-imperialista, com capacidade de se disseminar pelo planeta. Segundo eles, neste início de milênio, os povos do mundo devem buscar se opor à ambição imperialista e deixar de lado a noção de que o triunfo do modelo capitalista euro-americano é irreversível e inquestionável. 

No entanto, esta alternativa também se choca com uma série de antagonistas na sociedade burguesa, afinal, tais modelos societais convivem, no Brasil, com um adversário de enorme peso econômico e político, o agronegócio, baseado no grande latifúndio monocultor para exportação. Em um país onde grande parte da pauta exportadora se concentra na produção e exportação de commodities, com destaque para os alimentos e matérias primas agrícolas, propriedades baseadas na agricultura familiar com produção voltada para o mercado interno tornam-se quase que enclaves dentro de uma economia que cada dia mais está “voltada para fora”. A capacidade de expansão do modelo proposto pelo MST depende da continuidade do processo de reforma agrária, da entrega dos títulos definitivos como garantia do direito à terra, para que os assentados tenham segurança jurídica para trabalharem e produzirem nesses lotes. Depende, ainda, da elaboração de políticas agrícolas que garantam condições do assentado ter acesso ao crédito, bem como de uma infraestrutura que lhe garanta sementes, máquinas, implementos agrícolas e assistência técnica. 

Mas, tais medidas não encontram apoio de governos neoliberais nem de parlamentos hostis a tal demanda. Para se ter uma ideia da dificuldade dessa expansão, o primeiro governo Lula elevou consideravelmente o número de famílias assentadas, de 40 mil em 2003, para 140 mil famílias assentadas em 2006. No entanto, já no segundo mandato do mesmo presidente houve uma queda vertiginosa nesse número, caindo para pouco mais de 60 mil famílias já em 2007, 40 mil em 2010, 20 mil em 2011, o qual permaneceu praticamente imutável durante os governos Dilma[20], isso para falarmos apenas dos governos que, pressupõe-se, compartilhem do interesse em ampliar o projeto de reforma agrária no país, uma vez que o MST foi uma das bases de apoio aos governos do PT. 

Além disso, há também outras contradições cujas origens são internas ao próprio movimento. Começando pela fuga de jovens do campo para cidade, como afirmam Oliveira, Rabello e Feliciano[21], o que tem se mostrado como uma preocupação de vários coordenadores do movimento, que apontam a melhoria do acesso à educação em todos os níveis e a garantia de renda por meio de projetos de agroindústria e agroecologia como possíveis soluções para tais problemas. Citando Stédile, os autores afirmam que, somente assim, o jovem poderá permanecer no campo, tendo as mesmas condições ou até melhores, do que se migrasse para as periferias das cidades, onde só vai encontrar violência, pobreza e discriminação. Em segundo lugar, mas nem por isso menos importantes, existem dilemas políticos e ideológicos a serem sanados, os quais envolvem o acesso à terra, como discutido por Eliel Machado[22], para quem o campesinato pobre, base social dos sem-terra, e não a classe operária urbana, teria assumido, no Brasil, o protagonismo na luta contra o neoliberalismo e como reivindicadora do socialismo. Assim, caberá responder à difícil questão de como reivindicar meios de produção e lutar pelo socialismo simultaneamente.  

Ainda sobre o dilema da propriedade privada da terra, outro debate que se levanta no seio do MST é o que se refere ao título que ligaria o camponês à terra por ele cultivada após o assentamento, matéria fundamental não apenas para se discutir a relação de posse ou propriedade dos meios de produção, mas também por colocar em questão qual seria a melhor opção para a agricultura familiar e para a soberania alimentar. Após o assentamento, a família deve receber a Concessão de Direito Real de Uso – CDRU, ou o Título de Domínio – TD? Os que defendem a primeira hipótese apelam para o argumento de que os TD’s podem se tornar um problema, pois os assentamentos regularizados por documentos dessa natureza ficam vulneráveis a serem comprados novamente por grandes proprietários de terras, que geralmente o fazem a preços irrisórios, aproveitando-se da condição precária do assentado que se vê abandonado à própria sorte sem apoio de uma política agrária para prosseguir com o empreendimento.  Isso significaria um rápido retorno ao latifúndio, mas, agora, por meio da compra legal das terras[23]. Os que defendem os títulos definitivos apostam na segurança jurídica que os mesmos conferem à propriedade, além da garantia de permanência perene nas terras sem o risco de uma mudança na estrutura do movimento.

Enfim, muito há que se debater, mas as dificuldades encontradas não podem enterrar as alternativas e as perspectivas de mudanças.  O intuito deste texto foi o de evidenciar, em meio à catástrofe imposta pela Covid-19, a existência de uma preocupação da sociedade com o futuro que nos espera. Muitos são os contrários à continuidade do modelo pautado no capitalismo neoliberal, assim como o conhecemos hoje, o qual se mostrou completamente incompetente frente à pandemia que agora assola e devasta vidas e famílias em todo o planeta. Tal modelo de organização social tornou-se indefensável e escancarou o abandono da sociedade por parte dos governos que, dirigidos pelo grande capital, imprimiram uma lógica dualista de riqueza e miséria, sucesso e exclusão. Uma lógica pautada na normalidade da competição e do utilitarismo, que exalta o egoísmo e que tem como resposta a barbárie, a tragédia e a destruição.

Na segunda parte deste artigo, trataremos de analisar criticamente outro argumento bastante difundido atualmente, o de que a causa da pandemia deve ser buscada fora da esfera econômica, ou material, da sociedade, afinal, trata-se de um problema biológico que afeta a saúde dos indivíduos. Implícito a este argumento, está a falsa premissa de que o mundo ia bem, a economia também, até que… de repente…surgiu um vírus![24]

 Até a próxima semana…

NOTAS


[1] Relatório Oxfan aponta: 62 pessoas possuem riqueza equivalente a de metade do mundo. Disponível em: https://oxfam.org.br/publicacao/62-pessoas-possuem-o-equivalente-a-metade-do-mundo/
[2] Brasil alcança recorde de 13,5 milhões de miseráveis aponta IBGE. Disponível em: https://economia. estadao.com.br/noticias/geral,brasil-alcanca-recorde-de-13-5-milhoes-de-miseraveis-aponta-ibge,70003 077918
[3] Números do IBGE mostram crescimento da exploração do trabalhador. Disponível em: https://www. causaoperaria.org.br/acervo/blog/2017/10/01/numeros-do-ibge-mostram-crescimento-da-exploracao-do-trabalhador/#.XqdWGchKjIU; A natureza, sua destruição e o capitalismo: https://www.marxist.com/a-natureza-sua-destruicao-e-o-capitalismo.htm
[4] Banco Mundial: quase metade da população mundial vive abaixo da linha da pobreza. Disponível em: https://nacoesunidas.org/banco-mundial-quase-metade-da-populacao-global-vive-abaixo-da-linha-da-pobreza/
[5] Padrões de consumo global devem mudar para que o planeta sobreviva. Disponível em: https://www. correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2019/03/04/internas_economia,740974/padroes-de-consumo-global-devem-mudar-para-que-o-planeta-sobreviva.shtml
[6] Cattani, A. D. Riqueza e desigualdades.Caderno CRH/UFBA. v. 22. n. 57. Salvador: UFBA, 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-49792009000300009
[7] Taxa de suicídio nos EUA dispara nos últimos 15 anos. Disponívelem:https://exame.abril.com.br/ mundo/taxa-de-suicidios-nos-eua-dispara-24-nos-ultimos-15-anos/; Mortalidade por suicídio de adolescentes no Brasil: tendência temporal de crescimento entre 2000 e 2015.Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0047-2085201900010 0001&tlng=pt; Consumo de drogas psicoativas dispara no mundo. Disponível em:https://setorsaude.com.br/consumo-de-drogas-psicoativas-dispara-no-mundo/
[8] Rich tecnocrats planning doomsday escape to New Zeland bunkers. Disponível em: https://pt.technocracy.news/rich-technocrats-planning-doomsday-escape-to-new-zealand-bunkers/
[9] Assim o 1% mais rico se prepara para o apocalipse climático. Disponível em:http://www.ihu.unis inos.br/78-noticias/591892-assim-o-1-se-prepara-para-o-apocalipse -climatico;
[10] Os ultra-ricos preparam um mundo pós humano. Disponível em:  https://outraspalavras.net/sem-categoria/os-ultra-ricos-preparam-um-mundo-pos-humano/;
[11] Refúgio para o fim do mundo. Disponível em:https://www.istoedinheiro.com.br/ refugio-para-o-fim-do-mundo/
[12] Coronavírus mostra a importância do estado de bem-estar social. Disponível em: https://www.carta capital.com.br/economia/coronavirus-mostra-a-importancia-do-estado-de-bem-estar-social/
[13] Chomsky, Noam, O lucro ou as pessoas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002
[14] Disponível em: http://www.cubadebate.cu/especiales/2020/04/22/noam-chomsky-el-unico-pais-que-ha-demostrado-un-internacionalismo-genuino-ha-sido-cuba/#.XqMrQ8hKjIV
[15] Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2020/apr/08/amsterdam-doughnut-model-mend-post-coronavirus-economy
[16] Sobre o autor e sua tese sobre a desigualdade bem como as formas por ele apontadas para mitigá-la, recomendamos A economia da desigualdade (1997), O capital no século XXI (2013), e Capital e ideologia (2019).
[17] Página oficial do MST na internet. Disponível em: https://mst.org.br/quem-somos/
[18] Brasil precisa recuperar ideia de soberania alimentar. Disponível em: https://tutameia.jor.br/sobera nia-alimentar-e-resposta-a-crise/
[19] Petras, J.; Veltmeyer, H. Globalization unmasked: imperialism in te 21st century. Canada: FenwoodPublishing; UK: Zed Books, 2001.
[20] Assentamentos Rurais: reforma agrária em dados. Disponível em: http://www.reformaagrariaem dados.org.br/realidade/2-assentamentos-rurais
[21] Oliveira,L.; Rabello, D.;Feliciano C.A. Permanecer ou sair do campo? um dilema da juventude camponesa. Disponível em: https://revista.fct.unesp.br/index.php/pegada/article/view/3032
[22] Machado, E. MST: dilemas políticos e ideológicos do acesso à terra.Disponível em: http://ken.pucsp.br/pontoevirgula/article/download/14321/10469.
[23] Disponível em: https://www.justificando.com/2019/04/17/assentamentos-rurais-qual-a-melhor-opcao-para-a-agricultura-familiar-a-expedicao-do-cdru-ou-o-td/
[24] Agradeço às fundamentais contribuições dos professores Ana Paula Fregnani Colombi, Gustavo Moura de Cavalcanti Mello, Henrique Pereira Braga e Rafael Moraes, integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisa em Conjuntura, do Departamento de Economia da UFES para a construção deste texto, não sem antes isentá-los de quaisquer erros que, porventura, o autor tenha cometido.

 

 

 

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POR UMA DIREÇÃO DIFERENTE

HENRIQUE BRAGA
Departamento de Economia/Ufes

O avanço da pandemia da COVID-19 estabeleceu inúmeros desafios para as ciências, sejam elas naturais ou sociais. No campo da ciência natural, o principal desafio tem sido o de salvar vidas. O que implica desenvolver o tratamento da doença e, enquanto não há uma “cura”, estabelecer estratégias de redução da contaminação pelo novo coronavírus. No campo das ciências sociais, impõe-se propor formas de se lidar, seja no campo psíquico, político, social ou econômico, com as estratégias apresentadas.

Nesse contexto, estudiosos de infectologia e imunologia da Universidade de Harvard afirmam que, na ausência de qualquer tratamento farmacêutico eficaz contra as graves doenças provocadas por um vírus de alta transmissibilidade, as estratégias para seu enfrentamento devem estar centradas na contenção da contaminação da população. Assim, seria possível “evitar o risco de sobrecarregar os sistemas de saúde e ganhar tempo para o desenvolvimento de tratamentos e vacinas”. É nesse sentido que devem ser adotados a quarentena, o distanciamento social e monitoramento da população, com teste em massa. Cuidados esses que precisam ser redobrados na estação do ano mais propícia à propagação do vírus: o inverno[1].

Mas, por quanto tempo seria necessária a adoção de tais medidas? Como o desenvolvimento e o teste de tratamentos e vacinas podem levar meses e até anos, eles estimam, com base nos países centrais, que seja necessário adotar o distanciamento social intermitente – ou mesmo substancial – e monitorar a população, com teste em massa, até 2022[2]. Com isso, o avanço da contaminação poderá ser contido, de forma que os sistemas de saúde teriam capacidade para o tratamento adequado da população[3]. O que reduziria não somente o número de mortes pelas doenças provocadas pelo COVID-19, como também diminuiria o número de mortos por outras doenças que, com um sistema de saúde em colapso, não conseguiriam o tratamento adequado. 

Embora essas estimativas estejam sujeitas a uma série de limitações técnicas, que são reconhecidas pelos próprios autores[4], a rapidez da transmissão do vírus pelo mundo, o elevado número de mortos – a despeito da baixa taxa de letalidade do vírus[5] – e o caso dramático da Itália, são evidências suficientes de que a pandemia da COVID-19 deve ser levada a sério. Mais do que isso, medidas contundentes precisam ser adotadas para viabilizar a forma de contenção da pandemia disponível no momento, evitando o adoecimento e a morte prematura da população[6]. Com especial atenção para os trabalhadoras e trabalhadores que, há anos, vêm sofrendo com a precarização das suas condições de trabalho, com a incerteza dos seus salários e com a pressão de terem de ser “empresário de si mesmo”[7]. 

A mesma força que compeliu a essa degradação das condições de trabalho é, porém, responsável pela produção desse vírus. Como mostra o coletivo chinês Chuang, a expansão das montadoras de automóveis para Wuhan proporcionou tanto a rápida urbanização quanto a busca por novas áreas agrícolas, que avançaram sobre o bioma da região. Localizada num vale quente e úmido, Wuhan é conhecida como uma das quatro “fornalhas” da China, constituindo um ambiente propício para as chamadas transmissões zoonóticas de doenças – a saber, quando há transmissão de uma espécie para outra. Numa das principais zonas produtivas da China, alimentada pela incessante dinâmica de produzir mais coisas em menos tempo, a emergência de um novo vírus (SARS-CoV-2) teve as consequências que estamos passando agora[8].

No campo econômico, o FMI estima, por exemplo, um declínio de 3,0% no PIB mundial, sendo que esse indicador recuaria, nas economias avançadas, em 6,1% e, nas economias ditas “emergentes”, em 1,0%[9]. Contudo, a julgar pela queda de 6,8% do PIB chinês no primeiro trimestre desse ano, quando comparado com o mesmo trimestre do ano passado, as estimativas do FMI são, para dizer o mínimo, otimistas[10]. 

Diante de um cenário de declínio da atividade econômica, o próprio fundo sugere aos Bancos Centrais medidas para preservarem a “estabilidade financeira global” e “manterem a economia global funcionando”. Em linhas gerais, as medidas são as seguintes: reduzir as taxas de juros e comprar ativos do sistema financeiro; intensificar as operações de mercado aberto para ampliar a quantidade de dinheiro disponível para o sistema financeiro; prover contratos de câmbio que deem conta da demanda por dólares; e, por fim, reativar programas usados na crise financeira de 2007/2008 para comprarem “ativos de risco” e “títulos privados”. Até o momento, segundo o fundo, os Bancos Centrais anunciaram a provisão de recursos ao sistema financeiro na ordem de 6 trilhões de dólares[11].

O montante dos recursos disponibilizados até então aponta, por um lado, para a importância deste setor para a economia contemporânea[12]. Pois, o automóvel produzido em Wuhan, por exemplo, será, provavelmente, vendido à crédito – seja no mercado chinês, estadunidense ou mesmo brasileiro – enquanto a tecnologia aplicada em sua produção foi financiada à crédito – neste caso, em grande parte pelo endividamento público e, em menor medida, por dívida privada. A relação imbricada entre sistema financeiro e produção de mercadorias é conhecida como financeirização, na qual a emissão de novos títulos de dívida públicos e privados, a garantia de suas remunerações por parte dos emissores e a contínua aposta na variação de seus preços nos mercados bursáteis condicionam – e são necessários – à produção usual de mercadorias[13]. 

Por outro lado, tal volume de recursos mostra que o FMI supõe que, assegurado o circuito de reciclagem dos títulos de dívida, sua emissão e a aposta nas variações dos seus preços, o crédito para os demais setores da economia será estabilizado. Contribuindo, portanto, para evitar a desorganização da atividade econômica[14]. Aposta semelhante faz o governo brasileiro, tanto nas ações já realizadas pelo BACEN, que liberaram 1,2 trilhão de reais[15], quanto a Emenda Constitucional nº 10/2020, que libera a compra e a venda, por parte do BACEN, de títulos públicos em mercado secundário e de títulos privados que apresentem risco de crédito[16]

No primeiro caso, trata-se de permitir ao BACEN que compre títulos emitidos pelo Tesouro Nacional, cuja função seria, em tese, financiar as ações estatais de combate à pandemia do COVID-19[17]. No segundo caso, os títulos privados serão monetizados. Diante de uma estimativa de declínio de 5,3% do PIB brasileiro em 2020[18], esse dinheiro disponibilizado para o setor privado tende a ser convertido em títulos públicos emitidos pelo Tesouro Nacional. Assim, além de estatizar a dívida privada, esse tipo de ação não assegura que as empresas não financeiras terão acesso ao crédito, poderão renegociar suas dívidas, manterem parte da atividade econômica e, por meio do multiplicador do gasto, garantirem parte do emprego e da renda dos trabalhadores e trabalhadoras afetados pela pandemia da COVID-19[19].

Além disso, é problemático o financiamento, por meio da emissão de dívida, das ações do Estado brasileiro de combate à pandemia e aos seus efeitos. Isso porque teria consequências futuras desastrosas sobre a relação Dívida Pública/PIB, principal indicador da política econômica para a imposição da austeridade fiscal. Esse é o principal argumento de Henrique Meirelles, ex-presidente do BACEN, que, em entrevista recente, chegou a defender a emissão monetária, por meio da expansão da base monetária, para financiar os gastos para fazer frente à pandemia e aos seus efeitos. Ainda assim, ele não foi contrário à emissão de títulos de dívida para tal financiamento, apenas deixou claro que essa forma exigiria, no futuro, medidas contundentes de austeridade fiscal[20]. 

Mesmo que alguns economistas apostem na capacidade do Estado de rolar dívida, podendo emitir títulos respeitando somente a capacidade produtiva da economia[21], há de se considerar o papel da dívida no capitalismo contemporâneo. Ela disciplina as instituições e as pessoas. O sujeito endividado – seja ele o Estado Nacional ou o trabalhador – deve se comportar de forma austera, comedida e buscar sempre novos rendimentos para honrar a dívida (num caso, privatizações; noutro, bicos ou segundo emprego)[22]. Afinal de contas, a dívida é uma obrigação quantificada com precisão, tomada de forma simples, fria e impessoal, a qual não se pode deixar de pagar – mesmo que sejam somente os seus juros[23]. Em poucas palavras, a dívida é uma técnica de poder, que condiciona as instituições e as pessoas à busca contínua do aumento da sua produtividade, conduzindo as pessoas a pressionarem pela mercantilização de diversas dimensões da vida, pois é preciso “fazer dinheiro” para honrar a dívida.

Se é apontado que o cenário para a vida social, até que haja uma vacina ou um tratamento razoável, é, até 2022, o isolamento social intermitente – ou completo – a quarentena e o monitoramento, com teste em massa; as medidas econômicas não podem apostar numa “volta da normalidade”, empenhando uma produção futura cujo modo de produzir foi um dos aspectos que nos colocou nesta situação[24]. Os efeitos disso podem ser ainda mais desastrosos, quando for constatada a inexistência das promessas de remuneração futuras – sejam elas a arrecadação do Estado, as receitas das firmas ou mesmo os recebimentos dos bancos.

Assegurar que as pessoas possam tomar as precauções necessárias para evitar o contágio implica, antes de tudo, a “criação de um salário social – renda básica universal – financiado com base em uma maior taxação das rendas e das riquezas dos capitalistas e seus associados”[25]. Em seguida, uma reorganização da produção, da distribuição, da troca e do consumo que evite o desabastecimento de alimentos e de material médico e que permita, dentre outras coisas, a continuidade dos atendimentos médicos e da pesquisa em busca de um tratamento e de uma vacina eficazes no combate à COVID-19[26]. 

Essa reorganização não partirá, contudo, do Estado ou do Mercado, uma vez que cada um de seus agentes estão preocupados demais consigo para agirem à altura da situação. Nesse momento, contamos somente com nós mesmos para impormos sobre eles, que possuem uma relação simbiótica[27], um rígido controle, orientado pela princípio de que nossa saúde, nossa subsistência e nossas vidas somente são possíveis em co-atividade, coobrigação, cooperação e reciprocidade[28]. E, por isso, nossas vidas estarão inviabilizadas se nossas ações continuarem a ser orientadas pela concorrência e pela autovalorização de nós mesmos e dos resultados das nossas atividades. Assim, para salvarmos nossas vidas e os seus meios de subsistência, cabe bloquearmos a produção pré-crise e agirmos numa direção diferente[29].

Nesse sentido, devemos nos perguntar quais foram os princípios das relações sociais que nos conduziram à perda dos laços de solidariedade, como recuperar esses laços sem retomar formas de dominação pessoal e, com isso, como produzir uma economia que assegure uma vida que valha a pena ser vivida e que seja passível de luto. Isso implica, dentre outras coisas, superar a mediação social pelo trabalho, cuja forma social valor se expressa por meio do dinheiro e tem na dívida monetária seu regime de obrigações. Talvez tenha chegado o momento de realmente colocar a questão: é necessário o contínuo suor no rosto de muitos para produzir uma riqueza que, no momento derradeiro, quando o vírus bate à porta, se mostra inútil? Até porque, não será com carros esportivos, bolsas de luxo, colares, banheiras de mármore de Carrara, debêntures, ações ou derivativos de balcão que iremos combater a COVID-19, não é mesmo?

NOTAS

[1] KISSLER, Stephen et al. Projecting the transmission dynamics of SARS-CoV-2 through the post-pandemic period. Science. Apr. 14, 2020. Disponível em: https://bit.ly/2XQhpk7. 
[2] Ver Kissler et al (2020).
[3] Ver figura 5 de Kissler et al (2020).
[4] Kissler et al (2020) são explícitos em reconhecerem a limitação do modelo usado para elaborar os cenários. Além disso, reconhecem os impactos negativos na economia e na sociedade da adoção das medidas sugeridas. Para mais sobre a limitação dos modelos, ver:  ADAM, David. Special report: The simulations driving the world’s response to COVID-19. Nature, 2020. Disponível em: https://go.nature.com/2VkHOF3.
[5] COVID-19 CORONAVIRUS PANDEMIC. Estatísticas de casos e de mortes por COVID-19.      Disponível em: https://bit.ly/2xKeOh3. Acesso em: 19 abr. 2020.
[6] Nota sobre os impactos econômicos e sociais da COVID-19.
Disponível em: https://bit.ly/34MWmk2.
[7] COVID-19 e o agravamento da pandemia neoliberal.
Disponível em: https://bit.ly/2zcj7SJ.
[8] Contágio Social – coronavírus, China, capitalismo tardio e o mundo natural.
Disponível em: https://bit.ly/2VGiCbb. 
[9] The Great Lockdown: Worst Economic Downturn Since the Great Depression.
Disponível em: https://bit.ly/2xylIWU.
[10] Com coronavírus, PIB tem queda anual de 6,8% no 1º trimestre na China.
Disponível em: https://bit.ly/2zfSgp1.
[11] COVID-19 Crisis Poses Threat to Financial Stability.
Disponível em: https://bit.ly/2XNYHd5.
[12] A economia real e o mercado de capitais diante da pandemia do COVID-19.
Disponível em: https://bit.ly/2zhBp5j.
[13] Lazzarato, Maurizio. É o capitalismo, estúpido!.
Disponível em: https://n-1edicoes.org/016.
[14] Cabe notar que o FMI recomenda políticas fiscais que preservem a renda das famílias nesse momento. O que está em franco desacordo com as medidas até o momento adotas pelo governo brasileiro. Ver: Fiscal Policies to Contain the Damage from COVID-19.
Disponível em: https://bit.ly/34N00dC.
[15] Quadro – Liberação de Liquidez.
Disponível em: https://bit.ly/3alirHH.
[16] Proposta de Emenda Constitucional nº 10/2020.
Disponível em: https://bit.ly/34N4Nff.
[17] COVID-19 e o Banco Central. Disponível em: https://bit.ly/2ypStW7. Financiamento monetário é arma orçamentária em “guerra” contra a covid-19.
Disponível em: https://bit.ly/2VlNmPZ. 
[18] The Great Lockdown: Worst Economic Downturn Since the Great Depression.
Disponível em: https://bit.ly/3ctESvG. Acesso em: 14 abr. 2020.
[19] Algo que já ocorre desde a primeira medida do BACEN: Varejo acusa banco de elevar juros. Disponível em: https://glo.bo/2yusPiR. Além disso, em recente entrevista, Ricardo Carneiro, ex-diretor executivo do diretor executivo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) nota que “não interessa só dar autorização ao Banco Central para comprar títulos no mercado secundário e não garantir que essa intervenção venha acompanhada também de assegurar novos financiamentos na economia, porque é disso que se trata.”. Disponível em: https://bit.ly/2yrNWCA. Entretanto, não há qualquer sinal do governo de que este exigirá contrapartidas do setor financeira assistido pela compra de títulos. 
[20] Meirelles defende ‘imprimir dinheiro’ contra crise do coronavírus: ‘Risco nenhum de inflação’.
Disponível em: https://bbc.in/2RT2Ush.
[21] Covid-19: a pandemia ensina ao mundo a verdade sobre o gasto público.
Disponível em: https://bit.ly/3cxjmq4.
[22] Lazzarato, Maurizio. O Governo do Homem Endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017.
[23] Graeber, David. Dívida: os primeiros 5000 anos. São Paulo: Três Estrelas, 2016.
[24] Sobre esse assunto, além do texto Contágio Social – coronavírus, China, capitalismo tardio e o mundo natural. Disponível em: https://bit.ly/2VGiCbb; conferir também: Jappe, Anselm. O colapso. Disponível em: https://bit.ly/2Ki1jYL; e Scholz, Roswitha; Böttcher, Herbert. Coronavírus e o Colapso da Modernização.
Disponível em: https://bit.ly/34NuOet. 
[25] Prado, Eleutério. Entre ficção e o fetiche.
Disponível em: https://bit.ly/2XQh0hB.
[26] Para mais medidas, ver Nota sobre os impactos econômicos e sociais da COVID-19. Disponível em: https://bit.ly/34MWmk2.
[27] Mariutti, Eduardo. Estado, Mercado e concorrência. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. 2019, p.19.
Disponível em: https://bit.ly/3ajGd6H.
[28] Dardot, Pierre e Laval, Christian. Comum. São Paulo: Boitempo, 2017.
[29] Latour, Bruno. Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise.
Disponível em:
https://n-1edicoes.org/008-1.
 
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PARA ONDE VAI O CAPITALISMO COM A CORONACRISE?

Fabrício Augusto de Oliveira

Embora a economia mundial já apresentasse evidentes sinais de que caminhava para uma nova situação de crise, semelhante à do subprime, já que a recuperação registrada na década passada parece ter se apoiado, como tudo indica, novamente na formação de bolhas financeiras, devido à política de juros reais negativos predominante principalmente nos Estados Unidos e na Europa, o fenômeno do coronavírus apenas acelerou essa tendência e deu uma face distinta para a crise que se instalou no mundo neste ano.

A mesma não pode ser confundida, assim, como uma crise endógena do capitalismo, uma crise cíclica, que recria as condições para uma nova etapa de desenvolvimento, nem como uma crise decorrente da desregulamentação financeira, como a do subprime, que cria artificialmente uma riqueza que não encontra correspondência no mundo da produção, embora tendencialmente estivesse caminhando para essa situação, mas como uma crise econômica associada a uma crise da saúde, cujos efeitos e consequências são diferentes das crises clássicas.

Enquanto as primeiras podem ser enfrentadas com o manejo das políticas fiscal e monetária, seja por meio do aumento dos gastos do governo e/ou redução de impostos para fortalecer a demanda agregada, estimulando o consumo e o investimento, seja pela injeção de liquidez na economia e/ou pela compra de ativos do sistema bancário para salvar as instituições que foram muito além do que recomenda o bom senso em termos de alavancagem, a crise atual, além de apresentar outros ingredientes, que não constam dos manuais de economia, promete produzir um maior estrago do que a do subprime.

Por se tratar de um vírus facilmente transmissível, capaz de contaminar parcela expressiva da população, e encontrar os sistemas de saúde, em geral, despreparados e sem contar com recursos – financeiros, materiais e humanos – para atender a demanda exacerbadamente ampliada por seus serviços de atendimento, tornou-se consenso, entre os especialistas da área, que apenas o isolamento social – amplo ou seletivo – poderá conter sua disseminação e dar condições ao sistema de estruturar-se para evitar uma catástrofe maior.

Ora, para que o isolamento se tornasse possível, foi necessário determinar, de uma maneira geral no mundo, a interrupção de muitas atividades produtivas, ao mesmo tempo que essa decisão afetou, consideravelmente, várias áreas da economia, como a dos transportes públicos, das companhias áreas, do turismo, e reduziu, expressivamente, o campo de atuação dos trabalhadores informais, que representam uma parcela apreciável da força de trabalho, principalmente nas economias emergentes e subdesenvolvidas.

Essa paralisação “forçada” de atividades econômicas, que não se verifica nas chamadas crises clássicas, e, mais grave, por tempo indeterminado, por não se saber a duração da pandemia e nem quando essa poderá ser vencida, corresponde à introdução de um tumor altamente maligno no organismo econômico que rapidamente destrói seus mecanismos de defesa e o conduz à deterioração progressiva, como indicam as projeções feitas pelo FMI para a economia mundial.

De acordo com essa instituição, em seu relatório Perspectiva Econômica Global, apoiada na hipótese de que o problema do vírus tenha desaparecido no segundo semestre deste ano, a economia mundial deverá encolher 3% em 2020, a maior retração desde a década de 1930, com a Europa, a região mais atingida pelo vírus, e a América Latina, liderando este encolhimento.

Para a Zona do Euro, a projeção é de estonteante queda de 7,5% e, no Reino Unido, de 6,5%. Para os Estados Unidos, o Fundo prevê uma contração de 5,9%. Já para a América Latina, a previsão é de uma queda de 5,2%, com Argentina e Brasil, amargando uma contração superior a 5%, e, o México, de 6,6%. Há, de acordo com o relatório, expectativa de que a China possa crescer 1,2%, bem abaixo dos 6% previstos na projeção feita em janeiro, com o gradual retorno de suas atividades à normalidade no segundo semestre, e a Índia, 1,9%. São números que retratam o poder de destruição do vírus, já que em janeiro, o FMI trabalhava com a hipótese de uma taxa de crescimento global de 3%, mas que podem piorar ainda mais no caso de sua maior resistência à adotada no mundo para derrotá-lo.

A dimensão da crise econômica anunciada e a necessidade de salvar vidas e também empresas asfixiadas financeiramente com a paralisação de suas atividades, tem levado os economistas, incluídos os da ala ortodoxa, a falarem a mesma linguagem e a apontarem o Estado, algo inconcebível para os últimos em períodos de normalidade do sistema econômico, como o único agente em condições de atuar para este objetivo e para evitar o colapso total da atividade econômica, dificultando a recuperação após o fim da crise.

Para isso, as restrições antes postas à sua atuação desapareceram por parte de seus mais ferrenhos opositores, que o encaram como a “encarnação do mal”, passando a ser-lhe concedida licença para gastar mesmo que aumentando consideravelmente seus níveis de endividamento, e até mesmo, caso necessário, emitindo moeda, tal como ensinou John Maynard Keynes, em sua obra prima de 1936, A teoria do juro, do emprego e da moeda, assim como defende, na atualidade, a Moderna Teoria da Moeda (MMT, sigla em inglês).

Por isso, mesmo com orçamentos depauperados, destroçados pelo esforço que realizaram para, primeiramente salvar a economia da crise do subprime e, posteriormente, da crise da dívida soberana europeia, aos Estados, de uma maneira geral, foi-lhes atribuída a responsabilidade, nessa crise, de abrir os cofres para evitar que o mundo caminhe para uma nova Grande Depressão, como a ocorrida na década de 1930, o que tem levado a uma explosão de seus níveis de endividamento muito além dos limites aceitáveis pelo pensamento neoliberal.

Projeções feitas também pelo FMI, baseadas nas medidas iniciais adotadas pelos governos para combater a crise, indicam que a dívida pública no mundo deve crescer 13 pontos percentuais e corresponder a 96,4% do PIB mundial no final de 2020. As economias mais avançadas, que são as mais afetadas pelo vírus, devem ver a relação dívida/PIB subir para 122,4%, enquanto a dos Estados Unidos, aumentar mais de 20 pontos percentuais, saltando de 109% para 131,1%. Números que representam mais que o dobro dos limites aceitáveis para o endividamento dos governos pela teoria econômica ortodoxa.

Para as economias emergentes, que inclui a China, a previsão é de que o crescimento da dívida seja menor, mas ainda assim apreciável, de 10 pontos percentuais, saltando de 53,2% para 62%, enquanto na América Latina este avanço pode se dar com menor força, indo de 70,5% para 78%. No Brasil, de acordo com a sua metodologia de cálculo da dívida, que difere da empregada pelo banco central brasileiro, de 89,5% para 98,2% do PIB. O FMI deixa claro que, no entanto, tais projeções podem piorar no caso de a epidemia se prolongar por mais tempo do que se imagina e exigir medidas adicionais dos governos, o que, tudo indica neste momento, seja o mais provável.

O fato é que a crise do coronavírus, da qual ainda não se sabe quando o mundo escapará, trouxe uma nova realidade para o sistema econômico com o fechamento “forçado” de empresas e interrupção de suas operações e faturamento, exigindo a ação dos governos para salvá-las da bancarrota, assim como para salvar vidas humanas, jogando dinheiro nos sistemas de saúde e garantindo sua renda para o consumo, mesmo tendo, para isso, de ver explodirem seus níveis de endividamento. Sabe-se, por tudo isso, que a recuperação será lenta e demorada por que a economia terá de ser reerguida sobre os escombros causados por essa crise, mas permanece a incógnita de qual pensamento prevalecerá, após seu término, que pode gerar melhores frutos para o futuro do capitalismo, para definir a melhor estratégia a ser seguida no tocante à solução dos problemas que foram com ela criados, incluindo o do aumento do endividamento dos Estados.

Se predominar a proposta que vem sendo defendida pelo pensamento neoliberal de que, superada a crise, deve-se promover severos ajustes nas contas públicas, a recessão não deixará tão cedo o cenário, com uma parcela expressiva da população empobrecida, sem emprego e renda, podendo-se desencadear conflitos sociais incontornáveis. Mas se, por outro lado, prevalecer o bom senso, como ocorreu na crise da década de 30 do século passado e após a Segunda Guerra, de que parte dessa dívida, que nada mais é que a riqueza financeira privada, deve ser desvalorizada ou paga com a cobrança de um imposto extraordinário sobre os ricos, então restará a esperança de que o sistema possa ser reconstruído, com maior justiça e solidariedade.

 

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PANDEMIA E PRECARIEDADE: A NATURALIZAÇÃO DOS DRAMAS SOCIAIS

SUBGRUPO EMPREGOS E SALÁRIOS [1]

Nas últimas semanas, a crise sanitária aberta pela disseminação do COVID-19 reeditou um temporário consenso entre economistas em torno da defesa do aumento do gasto público. No Brasil não é diferente, ortodoxos e heterodoxos ressuscitam o velho keynesianismo e defendem o aumento temporário do déficit público para salvar vidas e evitar um colapso econômico. A despeito do posterior dissenso que se abrirá tão logo o debate sobre a velocidade do ajuste fiscal pós-crise voltar ao centro da agenda, neste momento, o que volta à cena é o protagonismo da atuação estatal, elemento fundamental para garantir os aportes necessários ao sistema de saúde e o fluxo de renda na economia. A gravidade da crise, no entanto, e o teor dos esforços que se vêm exigindo dos Estados Nacionais indicam que um efêmero consenso keynesiano, nos moldes da resposta à crise de 2008, não será suficiente.  

Neste cenário, em que são legitimadas ações estatais típicas de contextos de guerra, as posições do governo brasileiro se mostram descabidas, tanto pelo sentido quanto pela excessiva parcimônia nas ações. Tais medidas e posicionamentos que discutiremos mais detidamente abaixo, na verdade refletem a versão mais escancarada da sociabilidade neoliberal, expondo milhares de indivíduos aos riscos incalculáveis que a atual pandemia vem produzindo. 

Neste sentido, em 18 de março, quando alguns estados já recomendavam o isolamento social, o governo federal sinalizou com a concessão de uma renda básica de R$ 200,00 aos trabalhadores informais. Após discussão no Parlamento, seu valor foi ampliado para R$ 600,00, incluindo o direito às mulheres chefes de família de R$ 1.200,00. Não bastasse as enormes dificuldades reais e artificiais para operacionalizar a entrega do recurso às famílias, seu valor é insuficiente, tendo em vista que levará a uma pauperização ainda maior dos trabalhadores informais. A perda de renda destes trabalhadores fica evidenciada quando a renda básica estabelecida pelo governo é contraposta aos rendimentos médios destes trabalhadores antes da crise. De acordo com a PNAD Contínua, o segmento com a menor renda média entre os informais são as trabalhadoras domésticas sem carteira assinada, que receberam em média R$ 763,00 mensais no quarto trimestre de 2019. Os trabalhadores do setor privado sem registro recebiam, no mesmo período, em média R$ 1.442,00 por mês e os trabalhadores por conta própria tiveram um rendimento médio mensal de R$ 1.711,00. De maneira geral, em termos percentuais, as perdas podem variar de 21% a quase 65% dos rendimentos médios. Essa redução direta na renda não apenas inviabiliza a condição destes trabalhadores seguirem as recomendações de isolamento social, como tende a reduzir o poder de consumo dessa parcela da população, agravando a crise econômica durante e após o período da pandemia.

Se a política estatal voltada para os trabalhadores informais é insuficiente, as soluções apresentadas para manutenção dos empregos formais tendem a ampliar ainda mais o problema. As medidas provisórias 927/2020 e 936/2020, publicadas em 22 de março e 1º de abril, são claramente orientadas pelos interesses empresariais, reafirmando a disposição do governo em dobrar a aposta nas soluções pró-mercado. Neste sentido, elas seguem a mesma premissa da reforma trabalhista e nivelam por baixo as necessidades dos trabalhadores brasileiros. 

Mesmo com a revogação do artigo 18 da MP 927, que autorizava a suspensão do contrato de trabalho por quatro meses independente do pagamento de salários, foi mantida a lógica de alargar o poder dos empregadores determinarem os termos do contrato de trabalho, com uma aproximação direta entre ambas as partes. Essa medida autoriza a redução da jornada em até 25% com correspondente redução salarial; amplia possibilidades do uso do teletrabalho; autoriza o banco de horas, negociado individual ou coletivamente, com compensação em até dezoito meses, bem como a antecipação das férias (sem assegurar a antecipação do adicional) e a concessão de férias coletivas, de forma unilateral, a ser comunicada em apenas até 48 horas de antecedência; suspende o pagamento do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) entre abril e junho, sem correção monetária após o período; libera os empregadores das exigências quanto às normas de saúde e segurança no trabalho e não reconhece o adoecimento no trabalho como doença ocupacional, salvo se comprovado o nexo causal, justo quando há maior risco de contágio[2].

Atendendo à mesma lógica, a MP 936, lança o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda. Ela introduz a recomposição salarial compensatória da redução da jornada de trabalho com correspondente redução salarial, tendo como referência o valor do seguro desemprego e não a folha de pagamentos. A recomposição é insuficiente pois não evitará uma contração significativa da renda dos trabalhadores, implicando em retração da massa salarial[3]

O momento requer que se amplie a legislação para proteger os trabalhadores, e não para esvaziar direitos em nome de uma suposta manutenção do emprego. A crença na flexibilização da lei, entretanto, invalida o debate em torno de medidas emergenciais e eficazes para enfrentar a crise. É isso que a aprovação da MP 905, também chamada de “MP do Contrato verde e amarelo”, na Câmara dos Deputados em 14 de abril demonstra. Essa medida, que foi encaminhada pelo governo em novembro de 2019, expira no próximo dia 20/04, se não for aprovada no Senado e sancionada pelo presidente antes desta data. Ela reduz encargos para patrões que contratarem jovens de 18 a 29 anos, no primeiro emprego, e para pessoas acima de 55 anos que estavam fora do mercado formal. A medida rebaixa o patamar de direitos (como a redução da multa do FGTS em caso de demissão de 40% para 20% e a ausência de contribuição patronal ao INSS) em nome da criação de vagas que pagam até R$ 1.567,50. Mesmo que se ignore a crítica à ideia de que retirar direitos cria empregos, o momento não exige que se legisle sobre formas mais flexíveis de contratar, mas sobre formas de impedir que se dispense trabalhadores. 

A lógica neoliberal das medidas anunciadas pelo governo se evidencia na estratégia de apostar em mais flexibilização para tentar enfrentar a crise. Estratégia essa que não vinha dando certo, nem mesmo, no momento anterior à pandemia. Ao contrário, o que o governo está vislumbrando para atenuar os efeitos da crise são medidas incompatíveis com a precária realidade do mercado de trabalho brasileiro, marcada por grande contingente de trabalhadores informais, alta rotatividade e baixos salários. 

Nem mesmo o crescimento econômico do início da primeira década do século XXI foi capaz de reverter as características históricas do mercado de trabalho. Apesar do crescimento econômico ocorrido até 2015 ter contribuído para a queda do desemprego e aumento dos postos de trabalho formais, o grande contingente de trabalhadores informais e as múltiplas situações de heterogeneidade da situação de trabalho dentro da relação formal impuseram a lógica de manutenção da condição de precariedade. O aumento exponencial do contingente de trabalhadores terceirizados e microempreendedores individuais são exemplos nessa direção. 

Entretanto, o quadro hoje é ainda mais dramático. Desde 2015, a desestruturação do mercado de trabalho brasileiro tem se aprofundado rapidamente, o que indica que a crise aberta pelo Covid-19 só veio acentuar uma situação já devastadora. A partir desse ano, a recessão trouxe consequências, elevando o número de pessoas desempregadas e ocupadas em posições precárias. Mesmo com o tímido crescimento do Produto Interno Bruto depois de 2016, a economia não foi capaz de gerar os postos de trabalho que foram perdidos. Os dados mais recentes da taxa de desocupação, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostram que ela se encontra em 11% da força de trabalho, o que representa 11,6 milhões de pessoas que buscam por uma ocupação no país e não encontram. Nos anos recentes, o maior número da série histórica foi alcançado em 2017, com 13,7% representando cerca de 13 milhões de pessoas, como se vê no gráfico abaixo. Mesmo esta suave tendência de redução da desocupação desde 2017 se deve menos ao crescimento econômico apresentado no período do que à elevação do índice de informalidade no país, o que na verdade mostra uma perda massiva da qualidade dos empregos. 

Taxa de desocupação trimestral (%)

           

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Elaboração própria.

Apresentada como prerrogativa para reverter esse quadro de desemprego e crescente informalidade, a Reforma Trabalhista foi aprovada em novembro de 2017, ainda no governo de Michel Temer. Entretanto, de lá para cá, o que se tem visto é um avanço da precarização do trabalho, com esvaziamento do patamar de proteção e com a elevação da população que se encontra subocupada e na informalidade. 

No gráfico abaixo, tem-se que a população subutilizada, isto é, aqueles que estão desocupados, subocupados ou na força de trabalho potencial, apresenta uma tendência de crescimento desde a aprovação da reforma. No último trimestre de 2019, a taxa fechou em 23%, sendo o menor resultado para o ano, mas que representa, ainda, mais de 20 milhões de pessoas. Esse dado nos ajuda a entender como se comporta o mercado de trabalho, uma vez que traz evidências do avanço da precarização. No último trimestre de 2019, a taxa de subocupação por insuficiência de horas trabalhadas foi 7,9%, um número que representa quase 7,5 milhões de pessoas que gostariam de aumentar sua jornada de trabalho e, assim, obter uma renda melhor. 

Taxa de subutilização da força de trabalho (%)

       

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Elaboração própria.

Com base nestes números não parece haver argumentos para que o governo continue apostando na flexibilização como estratégia para a manutenção de empregos, uma vez que a mesma não surtiu os efeitos esperados nem mesmo nas condições anteriores à presente crise. Como dito, no momento anterior à pandemia, a estabilidade na tendência de queda da taxa de desocupação foi proporcionada pela elevação do número de trabalhadores informais, isto é, aqueles indivíduos que não possuem um vínculo empregatício, carteira de trabalho assinada, nem qualquer empreendimento formalizado. Hoje mais de 40 milhões estão nessa situação e, portanto, encontram-se desprotegidos socialmente. Como já foi mencionado acima, o tímido apoio financeiro de R$ 600,00 por três meses não conseguirá resolver a situação destas pessoas, permitindo que se amplie sua vulnerabilidade.

Números de trabalhadores informais (2018-2019)

         

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Elaboração própria. Trabalhadores informais corresponde a soma dos trabalhadores do setor público sem carteira assinada, do setor privado sem carteira assinada, domésticos sem carteira assinada, por conta própria e trabalhador auxiliar familiar.

A lógica neoliberal de reprodução da sociedade e de sua sociabilidade, personificada de forma ainda mais clara no atual governo, se materializa no mercado de trabalho através dessa precarização das relações laborais. Seu núcleo está na concepção de que a sociedade é constituída por indivíduos, cuja sobrevivência deve ser garantida por seus próprios meios. Dentro desta lógica, qualquer interferência externa ou coletivista tende a desarranjar o sistema econômico e torná-lo menos eficiente. Neste sentido é que instituições de representação trabalhistas, como os sindicatos, já vinham sendo fragilizadas por reformas como a de 2017. A própria MP 936, citada anteriormente, que dentre outras coisas, possibilita as ações diretas do empregador para com o trabalhador sem obrigar o intermédio de entidades representativas, segue nesta lógica. 

Nesse sentido, é evidente que quem sofrerá mais com a atual crise é justamente essa parcela da população que depende de uma renda variável e que não está amplamente coberta por uma tela de proteção social, como os trabalhadores por conta própria e microempreendedores individuais (MEI). Esta parcela da população não se tornou vulnerável com a crise, pois a precariedade de sua condição já existia, com a diferença de que ela aparecia na forma de dramas pessoais, que eram aparentemente diluídos pelo contexto de sucessos e fracassos, tão exaltado pela lógica neoliberal. O efeito mais imediato da crise no mercado de trabalho é escancarar esta vulnerabilidade, como se do dia para a noite todos passassem a depender de um aparato social mínimo para sua sobrevivência. 

O vultoso número de trabalhadores por conta própria, 24 milhões de brasileiros, de acordo com os dados da PNAD-Contínua, referente ao último semestre de 2019, torna a situação insustentável. Esses trabalhadores recebiam em média pouco mais de R$ 1.700,00. São em geral autônomos que fazem bicos, motoristas e entregadores de aplicativos de delivery, vendedores ambulantes, prestadores de serviços, dentre outros, que, neste momento, veem as possibilidades de ganho de renda severamente reduzidas devido à pandemia. Ou, por outro lado, a eles não é garantido o direito ao isolamento, pois sem renda precisam trabalhar e se expor ao risco.  

Trabalhadores por conta própria (2018-2019)

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Elaboração própria.

Diante do dramático quadro apresentado, fica evidenciado como a precariedade do mercado de trabalho brasileiro vai muito além do contexto da crise provocada pela pandemia do coronavírus, em decorrência da ausência de proteção social para quase metade da população ocupada e do aumento da desproteção de outra parte dela. Como visto esta situação tende a se acentuar com a atual crise, pois o número de pessoas desocupadas irá aumentar substancialmente, já que tanto aqueles que estão em empregos formais, quanto os informais poderão perder seus postos de trabalho e com isso suas principais fontes de renda. 

Nesse sentido, é possível afirmar que a atual crise levará problemas sociais crônicos ao extremo, dentre outras coisas, justamente por conta das políticas de austeridade fiscal que brecaram o investimento público e as possibilidades de crescimento e desenvolvimento econômico. 

Não é viável, entretanto, aceitar a solução passiva de uma intervenção estatal pontual, quase cirúrgica, como sendo capaz de resolver os problemas para que voltemos à “normalidade” anterior ou mesmo retornar ao velho consenso keynesiano. A gravidade da crise e seus desdobramentos só podem ser entendidos em sua totalidade se conseguirmos perceber que o contexto anterior jamais foi de normalidade. O temor do caos social, do desamparo econômico, do desemprego, da falta de médicos e leitos, de mortes em massa não é uma novidade desta crise, mas sim a realidade cotidiana de milhares de pessoas. Neste sentido, a crise é apenas uma gota d’água, talvez a que faltava para percebermos a anormalidade do mundo em que vivíamos. Por isso, não basta nos contrapormos aos discursos daqueles que parecem naturalizar as mortes em nome da economia. Mais do que isso, é necessário trazer ao debate novos horizontes que nos permitam questionar o quanto nós, como sociedade, já naturalizamos tantos dramas sociais. 

NOTAS


[1] Contribuíram diretamente para a redação desta nota Ana Paula Colombi, Gisele Furieri, Otavio Luis Barbosa e Rafael Moraes.
[2] Ver Marcelo Manzano e Pietro Borsari. Acesso em 06/04/2020.
Disponível em:
https://fpabramo.org.br/2020/04/03/reducao-salarial-proposta-pelo-governo-empurrara-pais-para-a-depressao/ e Cecon (2020). Impactos da MP 936/2020 no rendimento dos trabalhadores e na massa salarial.
Disponível em:
http://www.eco.unicamp.br/index.php/noticias/2235-nota-cecon-impactos-da-mp-936-2020-no-rendimento-dos-trabalhadores-e-na-massa-salarial
[3] CESIT. Emprego, trabalho e renda para garantir o direito à vida. Acesso em 08/04/2020.
Disponível em:
http://www.cesit.net.br/wp-content/uploads/2020/04/Versa%CC%83o.final_.pdf
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A ECONOMIA REAL E O MERCADO DE CAPITAIS DIANTE DA PANDEMIA DE COVID-19

Vinícius Vieira Pereira
Prof. Departamento de Economia da UFES
Tutor do programa Pet Economia/UFES

Em meio à crise causada pela COVID-19 no mundo, as duas primeiras semanas de abril foram marcadas, no Brasil, por uma onda de otimismo. Não um otimismo pautado no aumento da capacidade dos sistemas de saúde público e privado do país, o que ajudaria sobremaneira a enfrentar a escalada do vírus e iniciar um processo de recuperação da economia, mas sim, baseado em supostos sinais positivos que estariam chegando do mercado de capitais.  Apesar de, no Brasil, a grande onda da pandemia estar apenas no estágio inicial de sua formação, as notícias sobre a redução do ritmo de contágio do novo coronavírus em outras regiões do planeta pareciam ter sido suficientes, de acordo com a mídia especializada, para desencadear um sentimento de euforia no mercado de capitais do Brasil, o qual, supostamente, estaria apenas antecipando o início de uma reação contra o vírus. 

Especialistas em mercado financeiro se manifestavam afirmando que “os sinais de desaceleração da doença nos países mais afetados da Europa, como Itália, Espanha e França, contribuíram para o bom humor e o apetite por risco nesta segunda-feira (6/4) no país”. Aliado a isso, a permanência do ministro da saúde, tão polemizada no jogo político nas últimas semanas, era um componente a mais que contribuía para “elevar o nível de confiança do mercado no Brasil”[1] . O sinal verde parecia, então, aceso para a compra de títulos, afinal, se os preços desses papéis chegavam a níveis muito baixos quando comparados ao preço médio em tempos de normalidade, nada mais racional do que apostar em ganhos estratosféricos quando a subida recomeçasse. Do fundo do poço não há de passar! Ainda que, para alguns, o poço possa ser mais fundo e, nesse caso, poderia ser interessante esperar um pouco mais pelo timing e conseguir preços de compra ainda mais vantajosos[2].

As notícias que dominaram os cadernos de economia enfatizavam a recuperação do Ibovespa, o índice da principal bolsa de valores do Brasil, a de São Paulo, em virtude da posição comprada dos investidores brasileiros, concomitante à zeragem dos papéis vendidos. A euforia parecia bater à porta, pois, os investidores que estavam em dúvida, pararam de vender seus papéis, dados os preços em baixa, e começaram a ingressar nas compras. Ao mesmo tempo, os que já estavam comprando, passaram a comprar mais. “Basta, agora, o Ibovespa, após ter superado os 72 mil pontos, atingir os 79 mil pontos, e o mercado brasileiro terá chegado ao ponto de virada”, resumia um animado analista gráfico[3].

Mas, no mundo real, a ordem era ainda de cautela e apreensão frente ao alarmante número de mortos e infectados em todo o planeta, afinal, no dia 12 de abril, o Reino Unido batia um triste recorde de 10 mil mortos e ultrapassava a China em número de infectados, ao mesmo tempo em que a Espanha, após um breve suspiro de alívio, voltava a assistir uma elevação na quantidade de vítimas fatais da doença e os EUA começavam a enterrar muitos de seus mortos em valas comunitárias[4]. A comunidade científica e a maioria esmagadora das autoridades governamentais mundo afora recomendavam atenção redobrada com a saúde, temendo o relaxamento das medidas de isolamento social e o risco do vírus mortal recobrar força e apetite. Além disso, as previsões para a economia global estavam bastante pessimistas, como a do secretário-geral da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, o mexicano Ángel Gurría, o qual apostava numa recessão que levaria anos até iniciar uma possível recuperação[5].

Frente a dois cenários tão contraditórios, o da vida real e o do mercado financeiro, questiona-se qual a relação existente entre eles, uma vez que a imprensa insiste numa conexão lógica entre ambos em meio a essa visível dicotomia. Por que o mundo real parece se comportar de uma forma enquanto o mercado de capitais, de outra, apesar da mídia especializada insistir em atrelar os movimentos do último aos acontecimentos que afetam o primeiro? Ora, se a expectativa é de crise econômica por conta dos estragos que a pandemia vem causando nos níveis de produção e emprego nas principais economias globais, quais são os critérios sobre os quais se baseiam as decisões daqueles que atuam no mercado de ativos e derivativos e o que explica tanta euforia em um momento tão crítico como este?  Qual a relação entre essa duas esferas da acumulação da riqueza, ou seja, qual a real importância dos acontecimentos na economia produtiva para a valorização de ativos financeiros? 

Afirmamos, de antemão, que previsões de ganhos no mercado financeiro não dependem da expectativa de crescimento da economia real, pelo menos, não necessariamente. “A esfera financeira é relativamente dissociada da esfera da produção”[6] , e, pode-se afirmar que a tendência de afastamento entre esses dois mundos tem progredido no capitalismo contemporâneo. Certamente que momentos de crescimento sustentado da economia real podem corresponder a ganhos na arena da especulação financeira, mas a primeira não é condição necessária para a segunda. E o contrário, também é verdadeiro, ou seja, momentos de crise na produção e na circulação de bens e serviços podem corresponder a movimentos de alta no mercado de papéis, especialmente, no que diz respeito aos instrumentos financeiros derivativos, os quais, no capitalismo contemporâneo, têm assumido protagonismo. 

Segundo François Chesnais[7], que dedicou grande parte de suas pesquisas para entender o processo histórico de financeirização do capitalismo mundial e seus impactos sobre a sociedade contemporânea, a lógica da valorização financeira não é a da criação de riqueza real, entendendo como riqueza real aquela que é responsável pelos aumentos da capacidade de produção e de geração de emprego e renda.  A dinâmica financeira, a partir dos anos 1980, dadas as transformações sofridas frente ao processo de liberalização e desregulamentação financeiras mundiais, mecanismo fundamental para o avanço da política e da ideologia neoliberais, passou a se impor ao mercado e não vice-versa. É o mesmo que dizer que a economia real é que segue os ditames da dinâmica financeira e não o contrário. 

Desse modo, os acionistas, a governança coorporativa de modo geral, os bancos e financeiras, os fundos de hedge e de pensão, a partir de transformações jurídicas, quase jurídicas e regulatórias garantidas pelos governos liberais em todo o mundo nas últimas quatro ou cinco décadas, passaram a exercer a dominância sobre os empresários industriais, transformando-os em pessoas cujo código de conduta, a partir daí, começou a se basear não apenas em expectativas de lucros originadas em suas decisões de investimento produtivo, mas na criação de departamentos de portfólio imbuídos da tarefa de converter, parte dos lucros reais de outrora, em ganhos financeiros ou bursáteis[8].

Portanto, ganhos pecuniários oriundos de aplicações financeiras são perfeitamente compatíveis com momentos de crise, como o que vivemos atualmente, frente ao agravamento da pandemia e ao aumento no número de infectados e mortos pela COVID-19. Assim como também podem ocorrer em momentos de euforia em virtude de uma vitória sobre a gripe mortal, ainda que não signifique retomada da economia. É preciso desconstruir falsas relações predeterminadas de causa e efeito, que a imprensa liberal insiste em difundir, como as que buscam explicar os rumos da economia real com base na racionalidade do mercado de capitais. Tratam a razão e os instintos que movem os players do mercado financeiro como se eles emitissem sinais coerentes sobre o futuro próximo da economia, ou como frutos de uma resposta lógica aos fatos cotidianos que afetam a esfera material e movem a dinâmica social. Insistem em vender a ideia de que o mercado de títulos, ações e portfólios financeiros são como guias que percebem e antecipam, antes das variáveis reais, o caminho da retomada do crescimento da produção e da riqueza real. E isso é falso.

 Há, de fato, um mercado primário, onde as empresas se capitalizam, por meio da emissão de suas ações, para levar adiante projetos reais de investimentos ou para gerar fluxo de caixa. É nesse mercado primário que as companhias de capital aberto lançam pequenas frações patrimoniais representadas pelas suas ações e os governos financiam suas dívidas públicas. É nesse mercado, alternativo ao dos empréstimos bancários, que as companhias conseguem recursos junto aos seus acionistas e os governantes levantam financiamento para as despesas públicas, pagando, em troca, uma renda. Esse mercado, em geral, costuma reagir conforme o aquecimento ou desaquecimento da economia, afinal, nenhum capitalista sairá em busca de fundos para produzir aquilo que ele sabe que não conseguirá vender, assim já percebia Keynes.

Mas, quando um indivíduo toma uma posição no mercado secundário, local onde a compra e venda de títulos públicos e ações privadas ocorrem totalmente alheias às suas fontes primárias, as empresas e os governos, tal ação pode estar destituída de qualquer ligação com o que acontece no mundo real. Assim, um comportamento de risco, assumido por algum “jogador” nesse mercado, pode estar completamente dissociado da escalada do Coronavírus, do número de mortos e infectados, da falência dos sistemas de saúde pública em grande parte do mundo, da expansão da pandemia. 

Nos mercados secundários e de derivativos, a razão que move os indivíduos não necessita estar baseada na retomada do crescimento econômico ou da lucratividade das empresas, podendo, ao contrário, estar apostando na falência de uma parte destas e na continuidade da crise.  Não reflete qualquer pretenso equilíbrio das contas públicas e pode, ao contrário, beneficiar-se de crescentes déficits. Prescinde da retomada dos empregos e do aumento do PIB. Sua lógica está baseada, simplesmente, numa aposta feita por especuladores quanto ao comportamento do mercado, ou seja, de uma comparação entre os preços presente e futuro de um título. Pode, até mesmo, basear-se apenas em apostas feitas sobre o comportamento de taxas de variações futuras, seja a dos juros internos ou externos, do câmbio, inflação ou desemprego. Pode, ainda que soe absurdo, estar pautada apenas na aposta de que a crise será mais grave amanhã do que já é hoje. Acrescente a esse quadro o poder disseminador dos algoritmos, em um mundo financeiro que é, por excelência, digital, em que posições tomadas por grupos de especuladores em diferentes lugares do mundo resultam em efeitos de manada e veremos, então, as conseqüências que esse mercado bursátil é capaz de desencadear na economia real, e não o contrário.

 Em tempos de tamanha incerteza, como o que vivemos agora, quanto às variáveis reais da economia no curto, médio e longo prazos, o momento, inclusive, pode ser excelente para alavancar a riqueza financeira, e a crise, ao que tudo indica, poderá levar a ganhos extraordinários nesse mercado. Pelo menos essa é a impressão do Rei da Bolsa, apelido de Luiz Barsi, 80 anos, especulador que mantém mais de R$ 2 bi aportados em ações na Bovespa. Frente ao surto do novo coronavírus pelo mundo, ele comemorava a queda nos preços das ações que havia levado empresas brasileiras a amargarem um prejuízo superior a R$ 290 bi no valor de mercado de seus papéis.  Diante desse cenário sombrio e desolador para o mundo real, Barsi “esfregou as mãos e foi às compras”, afinal, para esse experiente e bilionário investidor em papéis, o “mercado de ações não é de risco, mas de oportunidades”. Tratando essa crise como apenas “mais uma das 1 milhão e 100 mil crises” que ele já enfrentou desde que comprou sua primeira ação, Barsi não se mostrava preocupado e, ao contrário, aproveitava o que chamava de excelente momento do mercado[9].

Mas, se é necessário desconstruir a crença no casamento feliz entre essas duas esferas, produtiva e financeira, que a imprensa liberal insiste em nos fazer crer, é igualmente importante entender o tipo de razão que move a especulação. Pois, toda estratégia especulativa, eliminando deste termo qualquer resquício de preconceito moral ou legal, assenta-se em um tipo de racionalidade, afinal, todo trader busca maximizar seu potencial de lucro baseando-se na compra e venda de ativos financeiros, esteja o mercado subindo ou descendo. Ações questionáveis sob o ponto de vista lógico, como as que levaram um gato doméstico a derrotar gestores financeiros em uma competição por rentabilidade de ativos[10], podem indicar a aleatoriedade que predomina no mercado financeiro secundário, mas não significa afirmar que as pessoas, neste mercado, não façam uso de um tipo específico de razão.

Tratando o conceito de razão simplesmente como a capacidade de pensar e elaborar, mentalmente, meios de se chegar a uma conclusão sobre uma ação, na sociedade capitalista contemporânea, nos ensina a teoria ortodoxa, prevalece, então, o indivíduo racional, aquele que prefere mais a menos e, portanto, é um maximizador de utilidade e felicidade. Indivíduo atomizado, um ser natural cuja ação isolada deve buscar sempre o que é mais útil, ele deve ter seus impulsos baseados na maior vantagem que pode extrair ao fazer escolhas ótimas diante de um rol de alternativas que estão limitadas pela sua renda ou potencial de investimento. Pelo menos, assim afirmam os economistas ortodoxos[11]. Nesse ambiente de escolhas livres, o sucesso do agente maximizador de ganhos quando ele opera no mercado de ativos e derivativos não dependerá de uma melhora das condições econômicas ou da saúde pública, mas, tão somente, do momento, da rapidez e da manobra feita no mercado de capitais.

Portanto, o que norteia as ações nos mercados financeiros mundo afora é um tipo determinado de razão, uma racionalidade útil, instrumental ou pragmática, livre de qualquer criticismo[12]. Razão que deve, necessariamente, servir obviamente para uma finalidade útil e, por isso, deve também estruturar o pensamento com o propósito de fazer conexões lógicas que privilegiem tão somente o nível de utilidade da ação, para que, ao final, o resultado seja o de colocar o indivíduo em uma posição melhor do que a que se encontrava antes e em vantagem frente aos demais concorrentes. Por isso, uma razão subjetiva, pois servem ao interesse do sujeito quanto à auto-preservação. O mundo objetivo, ou real, aquele no qual predominam as relações entre os seres humanos e entre as classes sociais, as instituições sociais, a natureza e suas manifestações, não faz parte da estrutura que origina a razão subjetiva. A totalidade, ambiente por excelência da razão objetiva, não é convidada a participar da construção mental da razão subjetiva.

Portanto, não devemos cair na cilada de procurar uma mesma razão capaz de explicar, simultaneamente, a economia real e o mercado de capitais, nem tampouco colocar o segundo como uma espécie de profeta dos rumos da economia real. Se esta última determina a vida do cidadão comum e é o locus da luta de classes, a esfera financeira determina ganhadores e perdedores num mundo de apostas. O aprofundamento da pandemia, o aumento do número de mortos e infectados pela COVID-19, o desemprego de bilhões de trabalhadores mundo afora, a queda do PIB e da renda mundial, o endividamento público significam, para os especuladores do mercado de capitais, apenas informações que indicam as posições que tomarão no momento de fazerem suas escolhas de compra ou venda de papéis visando o máximo ganho. Apenas isso e nada mais. Não queiramos extrair desses movimentos aleatórios qualquer conclusão ou razão adicional.

Mas, ainda mais importante do que desconstruir essa ideia, que insistem em nos fazer crer, de que o mercado financeiro, ao responder aos estímulos da economia real, emitiria sinais de alerta para a sociedade como um todo sobre os rumos da nossa vida material, é entendermos que, no capitalismo, a fronteira entre instituições financeiras e não financeiras torna-se cada vez mais tênue. Ou seja, a apropriação da riqueza, seja sob a forma de ativo real ou fictício, seja por meio da produção de bens tangíveis ou da mera especulação com instrumentos financeiros derivativos, passa a se justificar com base na mesma lógica, a da escolha ótima, a que gera a maior vantagem e o maior ganho, a mesma que se fundamenta exclusivamente na razão subjetiva. Transforma-se, por assim dizer, na razão última que move a sociedade capitalista, baseada na lógica da valorização desmedida, esteja o capital em qualquer uma de suas formas. Inclusive, a dominância do estímulo financeiro sobre o real torna-se, assim, questão de sobrevivência do capital. A ordem é fazer a jogada que resulta no maior ganho pecuniário.

Diante dessa realidade, aos poucos, passamos a naturalizar todo tipo de ganho, desde que ele ocorra no ambiente da tão alegada justiça econômica. Mesmo a exploração e a espoliação de uma classe por outra se transformam numa mera questão de escolha da melhor estratégia frente à concorrência do mercado. A violência implícita nessas ações não é sequer considerada, ou mesmo percebida, pois são ações realizadas em consonância com a regra do livre jogo das escolhas individuais. Se o desemprego, o endividamento, o desespero, a fome ou a morte por vírus batem à porta das famílias espalhadas pelo mundo, a racionalidade dominante na sociedade capitalista tratará de deixar essas questões de lado, pois, a totalidade deve ser preocupação apenas dos filósofos que costumam perder tempo precioso com exercícios de razão objetiva. Para encerrar, lembremo-nos sempre de que, o interesse do detentor do capital no mundo hodierno, esteja ele atuando na indústria, no comércio ou no mercado de ativos e derivativos financeiros, será sempre o de valorizar-se, comportando-se conforme a racionalidade capitalista exige. O mundo concreto ao redor é um detalhe. Uma pandemia, apenas uma externalidade passageira.

NOTAS


[1] Bolsa dispara 5%, e dólar opera em queda, vendido perto de R$ 5,22…
Disponível em:
https://economia.uol.com.br/cotacoes/noticias/redacao/2020/04/07/dolar-bolsa-operacao.htm?cmpid
[2] Apesar de baratas, não é hora de comprar ações, afirmam analistas.
Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/apesar-de-baratas-nao-e-horas-de-comprar-acoes-afirmam-analistas.shtml
[3] Bolsa fecha em alta de 6,52% apesar de rumor sobre saída de Mandetta.
Disponível em:
https://www.aquinoticias.com/2020/04/20200406181604-bolsa-fecha-em-alta-de-652-apesar-de-rumor-sobre-saida-de-mandetta/
[4] Últimas notícias do coronavírus em 12 de abril.
Disponível em:
https://g1.globo.com/bemestar/ coronavirus/noticia/2020/04/12/ultimas-noticias-de-coronavirus-de-12-de-abril.ghtml. Acesso em: 12/04/2020
[5] Coronavírus: economia global vai sofrer anos até se recuperar do impacto da pandemia, afirma OCDE.
Disponível em:
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52002332. Acesso em: 23/03/2020
[6] ROSSI, Pedro. O protagonismo dos derivativos no capitalismo contemporâneo.
Disponível em:
 http://www.cadernosdodesenvolvimento.org.br/ojs-2.4.8/index.php/cdes/article/download/204/189. Acesso em 02/04/2020.
[7] CHESNAIS, François. O capital portador de juros: acumulação, internacionalização, efeitos econômicos e políticos. In CHESNAIS, François. (org.). A finança mundializada. São Paulo: Boitempo, 2005.
[8] BRAGA, J. C. S. Financeirização global: o padrão sistêmico da riqueza do capitalismo. In: FIORI, J. L.; TAVARES, M. C. (Ed.). Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. São Paulo: Vozes, 1997. p. 195-242.
[9] Estou adorando a queda das ações, diz Luiz Barsi, o “rei da bolsa”.
Disponível em:
https://revistapegn.globo.com/Noticias/noticia/2020/02/estou-adorando-queda-das-acoes-diz-luiz-barsi-o-rei-da-bolsa.html. Acesso em 28/03/2020.
[10] Em experiência realizada pelo jornal britânico The Guardian, felino alcançou liderança de rentabilidade, reforçando a hipótese de economista que mercado acionário tem movimento totalmente aleatório.
Disponível em: https://www.infomoney.com.br/mercados/em-teste-gato-domestico-derrota-gestores-profissionais-no-mercado-de-acoes/. Acesso em: 08/04/2020.
[11] Como representante dessa abordagem na economia neoclássica, recomendamos a leitura de um dos expoentes da teoria marginalista na Economia. JEVONS, Willian Stanley. A teoria da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1996.
[12] Para os interessados em se aprofundarem no debate entre razão objetiva e a subjetiva, ou instrumental, para a teoria crítica, recomenda-se, a título de provocação, o primeiro capítulo, Meios e fins, de HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão. São Paulo: Centauro, 2010.
[13] Agradeço às fundamentais contribuições dos professores Ana Paula Fregnani Colombi, Gustavo Moura de Cavalcanti Mello, Henrique Pereira Braga e Rafael Moraes, integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisa em Conjuntura, do Departamento de Economia da UFES para a construção deste texto, não sem antes isentá-los de quaisquer erros que, porventura, o autor tenha cometido.
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COVID-19 E O AGRAVAMENTO DA PANDEMIA NEOLIBERAL

 

Ana Paula Fregnani Colombi e Gustavo Moura de Cavalcanti Mello
Professores do Departamento de Economia da UFES

Nas últimas semanas, a crise sanitária aberta pela disseminação do COVID-19 parece ter produzido um raro consenso entre economistas brasileiros. Ortodoxos e heterodoxos ressuscitam o velho keynesianismo e defendem o aumento temporário do déficit público para salvar vidas e evitar um colapso econômico. 

Do ponto de vista heterodoxo, prevalece a visão de que é preciso renunciar aos pressupostos do equilíbrio fiscal, avançando na direção “dos ensinamentos básicos do senhor Keynes que, em linhas gerais, afirmou que o melhor remédio para não se cair em uma crise econômica profunda é manter a demanda agregada em expansão”[1]. A saída, diante de uma situação de ruptura das relações de mercado, como enfrentamos agora, é a reconstituição dos nexos mercantis, injetando dinheiro na economia, direcionando o crédito com a finalidade de criar renda monetária para famílias, trabalhadores e empresas[2]

Economistas reconhecidos no campo ortodoxo, por sua vez, afirmam que é necessário canalizar mais recursos para a população e reforçar o SUS, sem que se esqueça que passada a situação de emergência, a recuperação da saúde fiscal da nação deva voltar a ser uma prioridade[3]. Afirmam, ainda, que dar liquidez ao mercado é a direção correta, mas é preciso também implantar a renda mínima, atuando ao mesmo tempo na concessão de recursos para os vulneráveis e para os trabalhadores formais. Isso requer o abandono dos dogmas ideológicos em torno do Estado mínimo. O Estado precisa tomar medidas de emergência, emitindo dívida para, de maneira coordenada, conseguir repassar recursos para pessoas e empresas[4].

Fica evidente, neste aparente consenso, que tão logo o debate sobre a velocidade do ajuste fiscal pós-crise volte ao centro da agenda, parte dos economistas olhará para o grande aumento da relação dívida/PIB e defenderá outra dose de austeridade. Como afirmou Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central, é legítimo expandir a base monetária, nesse momento, mas “essa despesa tem começo, meio e fim (…) acabou a pandemia, acabou isso, nós voltamos à normalidade, pode voltar à austeridade fiscal”[5].  

Outra questão, implícita neste debate, é o potencial que a crise aberta pelo Covid-19 teria de questionar o neoliberalismo. Diante da consensual convocação da atuação Estado e do reconhecimento de que o mercado não é capaz de apresentar solução às crises sistêmicas, tem surgido a tese de que a atual crise desnuda o capitalismo contemporâneo, tendo em vista que a “falácia neoliberal de que o mercado por si é capaz de regular a economia de modo preciso, e sua defesa intransigente para o Estado mínimo, simplesmente desmorona diante dos fatos”[6]

É notório que a presente crise evidencia que mesmo os países desenvolvidos possuíam fraca estrutura básica de saúde para dar uma resposta rápida à pandemia. Além disso, mostra como os mercados não são capazes de dar respostas às crises sistêmicas que fazem parte da própria dinâmica do sistema capitalista. Isso não quer dizer, entretanto, que uma retomada do protagonismo estatal diante da imensa crise que se abre represente o fim do neoliberalismo. Como afirmou Lapavitsas, na atual crise, “o Estado emergiu como regulador da economia e passou a concentrar enorme poder. Não foi difícil para muitos da esquerda acolherem as novas ações estatais, tomando-as como um sinal do ‘retorno ao keynesianismo’ e morte do neoliberalismo. Estas conclusões, são, porém, precipitadas”[7]

Somente se entendermos o neoliberalismo como mera emanação da ciência econômica ortodoxa é que podemos aventar sua crise, neste momento. Ao contrário, se o apreendemos como uma nova cosmovisão que congrega um “conjunto original de aparatos discursivos, princípios normativos, dispositivos de poder, orientações epistemológicas e práticas de conduta social”, cuja função prioritária é “difundir a lógica da concorrência para todas as dimensões da vida social”[8], seu desmoronamento não parece ser iminente. A partir dessa visão, não faz sentido vislumbrar de maneira instantânea que a crise aberta pelo Covid-19 possui as condições objetivas para o fim do neoliberalismo e fazê-lo seria o mesmo que assentar a problemática no terreno da simples disputa entre ciência econômica ortodoxa e heterodoxa.

O neoliberalismo, como lógica societal que se impõe para todas as dimensões da vida social não prescinde do Estado, mas dele faz uso em nome de um intervencionismo destinado a moldar politicamente as relações econômicas e sociais regidas pela concorrência[9].

Diante deste entendimento, o novo campo de disputas que se abre parece estar forjando condições favoráveis para legitimar a atuação do Estado autoritário e não para recompor o Estado planista e keynesiano, como muitos querem crer. Há evidências nessa direção. 

Os países que estão conseguindo enfrentar a pandemia (Japão, Coreia, China, Hong Kong, Taiwan e Singapura) têm governos notadamente autoritários. A vigilância digital tem permitido que os Estados controlem a disseminação do vírus, notadamente o modelo policial digital chinês, reforçando a tendência à constituição de um estado de exceção global[10]. No Ocidente, as medidas contra o Covid-19 estão acompanhadas por políticas, também, fortemente autoritárias. O uso de tecnologias de controle e de vigilância similares àquelas mobilizadas pelo governo chinês tendem a se disseminar; como é o caso do desenvolvimento do aplicativo “StopCovid”, anunciado no dia 08/04 pelo governo francês[11], ou o caso do intempestivo contrato do governo do Estado de São Paulo com as operadoras de telefonia celular (Vivo, Claro, Tim e Oi) para monitorar o isolamento social[12]

Esse caráter autoritário se estende também às políticas econômicas, sempre subtraídas ao debate e a mecanismos efetivos de controle democrático. Como se sabe, com a brutal destruição de capital fictício, o Federal Reserve (Fed) precisou intervir com urgência, prometendo comprar volumes ilimitados de títulos públicos e até de títulos privados, exatamente como na crise de 2008/9. Sua intervenção maciça foi acompanhada pelo gigantesco pacote fiscal do governo dos Estados Unidos[13]. Não obstante, como de costume, o grosso da ação estatal se concentra no salvamento de grandes instituições financeiras (“too big to fail”), e nesse sentido a chamada quinta etapa do “afrouxamento monetário” (quantitative easing) apresenta uma magnitude que suplanta em muito as etapas anteriores, inauguradas no bojo da crise do subprime. 

No Brasil, visando melhorar as condições para que as instituições forneçam mais crédito num momento de incerteza, o Banco Central ampliou a liquidez do sistema financeiro em R$1.217 bi, equivalentes a 16,7% do Produto Interno Bruto (PIB) e, dentre outras medidas, reduziu a obrigatoriedade de os bancos manterem provisionados R$ 68 bilhões em depósitos compulsórios sobre recursos a prazo[14]. Entretanto, o que se tem observado é um aumento expressivo das taxas de juros entre 50% e 70%[15] no repasse do crédito ao varejo. Já a Proposta de Emenda à Constituição (PEC 10/2020), também conhecida como “PEC do orçamento de guerra”, que ainda aguarda aprovação no Senado, prevê que o Banco Central possa comprar títulos públicos e privados nos mercados nacional e internacional, permitindo, na prática, a transferência de prejuízos dos bancos para o Estado. Todas essas medidas são evidências de uma ação coordenada para salvar, uma vez mais, o capital financeiro, em nome da promoção de um grande bem-estar corporativo. 

Salvar o mercado é a mesma lógica que prevalece nas ações que estão sendo tomadas perante os mercados de trabalho. É notório que diante de uma crise de demanda e de oferta como desdobramento do distanciamento social, mesmo países de corte conservador, como Reino Unido e EUA, têm adotado medidas para impedir um colapso econômico[16]. Entretanto, mesmo com medidas dessa natureza, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) prevê que ao menos 81% da força de trabalho mundial será afetada pela crise. A estimativa é que o número de desempregados no mundo ultrapasse os 25 milhões inicialmente projetados pela própria Organização[17]; como indica o caso americano, em que quase 17 milhões de trabalhadores entraram com o pedido de seguro-desemprego em três semanas[18].

No Brasil, de acordo com dados da PNAD Contínua de 2019, são 11,6 milhões de trabalhadores desocupados e cerca de 38 milhões de pessoas trabalhando sem registro. Dentre os informais, são 24,5 milhões de pessoas no trabalho por conta própria, isto é, onde se localizam os trabalhadores(as) mais vulneráveis e expostos ao vírus: comerciantes de lojas; pedreiros; vendedores a domicílio; condutores de automóveis; motoristas de táxi; cabeleireiros; especialistas em beleza, dentre outros[19]. A esses trabalhadores, o governo destinou o pagamento de auxílio emergencial no valor de R$ 600,00. Além de insuficiente, a medida chegou com muito atraso. No primeiro dia de liberação para cadastramento em site da Caixa Econômica Federal, mais de 26 milhões de pessoas haviam se inscrito para o recebimento do auxílio[20]

Além disso, o país aposta na fórmula fracassada de tentar impedir o desemprego com mais flexibilização. Esse é o sentido das medidas provisórias 927/2020 e 936/2020, claramente orientadas pelos interesses empresariais. A MP 927 autoriza a redução da jornada em até 25% com correspondente redução salarial e, entre outros aspectos, amplia as possibilidades do uso do tele trabalho e autoriza o banco de horas mediante negociação individual ou coletiva[21]. A MP 936 está voltada aos trabalhadores formais e atende à mesma lógica. Ela introduz a recomposição salarial compensatória da redução da jornada de trabalho com correspondente redução salarial (possibilitando essa redução em 25%, 50% e mesmo 70%), tendo como referência o valor do seguro desemprego e não a folha de pagamentos. Ela também prevê a suspensão temporária do contrato de trabalho, implicando a retração da massa salarial[22].

Essas evidências mostram que a face autoritária do Estado neoliberal parece encontrar terreno firme para buscar sua legitimidade nesse momento de crise. Vigilância digital, salvamento de grandes instituições financeiras e alargamento do poder dos empregadores para manejar o estoque de força de trabalho mediante um avassalador crescimento do desemprego e redução da massa salarial estão na ordem do dia. Em nome do controle da pandemia do coronavírus o que se avizinha é o alargamento da pandemia neoliberal. 

 

REFERÊNCIAS


[1] MATTEI, L. A cegueira das elites empresariais brasileiras: reduzir salários não é a solução. Acesso em 23/03/2020.                                                                                                                                                                Disponível em: https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/a-cegueira-das-elites-empresariais-brasileiras-reduzir-salarios-nao-e-a-solucao-por-lauro-mattei/
[2] BELLUZZO, L. G. Belluzzo: ‘é preciso sustentar a renda do brasileiro por pelo menos 6 meses’. Acesso em 01/04/2020.                                                                                                                                                                Disponível em: https://www.brasil247.com/economia/belluzzo-e-preciso-sustentar-a-renda-do-brasileiro-por-pelo-menos-6-meses
[3] FRAGA, A. Covid-19: primeiras lições, desafios e propostas. Acesso em 29/03/2020.                        Disponível em:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/arminio-fraga/2020/03/covid-19-primeiras-licoes-desafios-e-propostas.shtml
 [4] BOLLE, M. Monica De Bolle: Hoje, dane-se o Estado mínimo, é preciso gastar e errar pelo lado do excesso. Acesso em 01/04/2020.                                                                                                                                            Disponível em: https://brasil.elpais.com/economia/2020-04-01/monica-de-bolle-hoje-dane-se-o-estado-minimo-e-preciso-gastar-e-errar-pelo-lado-do-excesso.html
[5] MEIRELLES, H. Meirelles defende ‘imprimir dinheiro’ contra crise do coronavírus: ‘Risco nenhum de inflação’. Acesso em 08/04/2020.                                                                                                                           Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52212033
[6] MOLINA, J. A. A pandemia e o fim do neoliberalismo pós-moderno. Acesso em 17/03/2020.          Disponível em:   https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/a-pandemia-e-o-fim-do-neoliberalismo-pos-moderno/
[7] LAPAVITSAS, C. Esta crise expôs os absurdos do neoliberalismo. Isso não significa que ela irá destruí-lo. Acesso em 07/04/2020.                                                                                                                                                            Disponível em: https://leiccuerj.com/2020/04/07/esta-crise-expos-os-absurdos-do-neoliberalismo-isso-nao-significa-que-ela-ira-destrui-lo/
[8] MARIUTTI, E. B. Estado, Mercado e concorrência: fundamentos do “neoliberalismo” como uma cosmovisão. In: Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. 54/ setembro 2019 – dezembro 2019 (p. 10). 
[9] DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016 (p. 67-68). 
[10] HAN, B. O coronavírus de hoje e o mundo de amanhã, segundo o filósofo. Acesso em 05/04/2020. Disponível em:  https://brasil.elpais.com/ideas/2020-03-22/o-coronavirus-de-hoje-e-o-mundo-de-amanha-segundo-o-filosofo-byung-chul-han.html
[11]  Coronavirus: qu’est-ce que StopCovid, l’appli de traçage étudiée par le gouvernement ?. Acesso em 08/04/2020.                                                                                                                                                                Disponível em: https://www.lemonde.fr/pixels/article/2020/04/08/qu-est-ce-que-stopcovid-l-appli-de-tracage-numerique-etudiee-par-le-gouvernement_6036036_4408996.html 
[12] SP faz parceria com operadoras de celular para divulgar combate ao coronavírus. Acesso em 07/04/2020.
Disponível em: https://www.saopaulo.sp.gov.br/noticias-coronavirus/sp-faz-parceria-com-operadoras-de-celular-para-divulgar-combate-ao-coronavirus/
[13] LAPAVITSAS, C. Esta crise expôs os absurdos do neoliberalismo. Isso não significa que ela irá destruí-lo. Acesso em 07/04/2020.                                                                                                                                            Disponível em: https://leiccuerj.com/2020/04/07/esta-crise-expos-os-absurdos-do-neoliberalismo-isso-nao-significa-que-ela-ira-destrui-lo/
[14] Disponível em: https://www.bcb.gov.br/acessoinformacao/medidasdecombate_covid19. Acesso em 08/04/2020. 
[15] Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/03/31/varejo-acusa-banco-de-elevar-juros.ghtml?fbclid=IwAR1I4uR8Gdrl8pO2VOiR2VV60EBtVJU1eZN3ENPVUydFZc2dCJ15KUpcPKg. Acesso em 08/04/2020. 
[16] CADÓ, I.; BORSARI, P. Medidas de amparo ao trabalho e à renda frente à pandemia do coronavírus: comparativo internacional.                                                                                                                                                      Disponível em: https://www.cesit.net.br/medidas-de-amparo-ao-trabalho-e-a-renda-frente-a-pandemia-do-coronavirus-comparativo-internacional/
[17] OIT. ILO Monitor 2nd edition: COVID-19 and the world of work. Acesso em 08/04/2020.            Disponível em: https://www.ilo.org/wcmsp5/groups/public/—dgreports/—dcomm/documents/briefingnote/wcms_740877.pdf
[18] A Shocking 17 Million Americans Have Filed For Unemployment In Past 3 Weeks. Acesso em 08/04/2020.                                                                                                                                                                          Disponível em:  https://www.zerohedge.com/personal-finance/shocking-17-million-americans-have-filed-unemployment-past-3-weeks
[19] Para mais informações para a dramaticidade do caso brasileiro frente à crise ver CESIT. Emprego, trabalho e renda para garantir o direito à vida. Acesso em 08/04/2020.                                                      Disponível em: http://www.cesit.net.br/wp-content/uploads/2020/04/Versa%CC%83o.final_.pdf
[20] 26,6 milhões já se cadastraram para receber o auxílio emergencial de R$ 600. Acesso em 09/04/2020. Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/04/08/266-milhoes-ja-se-cadastraram-para-receber-o-auxilio-emergencial-de-r-600.ghtml
[21] CESIT. Emprego, trabalho e renda para garantir o direito à vida. Acesso em 08/04/2020.                Disponível em: http://www.cesit.net.br/wp-content/uploads/2020/04/Versa%CC%83o.final_.pdf
[22] Como discutido em CECON, Impactos da MP 936/2020 no rendimento dos trabalhadores e na massa salarial. Acesso em 08/04/2020.                                                                                                                                  Disponível em: http://www.eco.unicamp.br/index.php/noticias/2235-nota-cecon-impactos-da-mp-936-2020-no-rendimento-dos-trabalhadores-e-na-massa-salarial
                                                                                               

  

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NOTA SOBRE OS IMPACTOS ECONÔMICOS E SOCIAIS DA COVID-19

A crise generalizada aberta pela pandemia do COVID-19 encontra um Brasil em situação delicada. Combinada com um cenário pré-existente de baixo crescimento econômico, de elevado desemprego e informalidade, de extrema desigualdade social, de pobreza endêmica e de precariedade nas condições de vida e de moradia de vastas parcelas da população, bem como de serviços sociais degradados, tal pandemia desafia o país a abandonar os preceitos da austeridade fiscal e lançar mão de uma ação coordenada por parte dos governantes e da população, sob pena de a situação de vulnerabilidade e insegurança social ser levada ao limite.

Diante da combinação entre instabilidade político-institucional e a crise do COVID-19 foi forjada uma falsa polêmica entre morrer de fome ou morrer contaminado pelo vírus, numa oposição superficial e simplista entre economia e saúde. Essa dicotomia é falsa e está assentada na ideia de que não há alternativa de geração de renda diante do confinamento em massa. Ela leva a um debate sem sentido no qual as responsabilidades da falsa decisão entre ficar em casa sem renda ou se contaminar são individualizadas, como se as consequências da crise fossem privadas e não sociais. 

Em todo o mundo, a percepção generalizada dos cientistas de que o isolamento em massa consiste em um imperativo sanitário vem sendo seguida por governos dos mais diversos matizes. Mesmo administrações mais conservadoras têm adotado medidas enérgicas de manutenção do emprego, recomposição da renda dos trabalhadores e ampliação dos benefícios sociais para trabalhadores informais. Essas iniciativas indicam que existe uma alternativa e ela consiste no enfrentamento coletivo e não individualizado do problema, o que passa por uma atuação ativa do Estado no alargamento das proteções legais e garantia à vida, recompondo algum senso de comunidade, perdido pela ruptura dos laços de solidariedade com o amadurecimento do capitalismo.

Infelizmente, não é essa a direção das tímidas medidas que vêm sendo tomadas pelo governo brasileiro, como a que liberou 1,2 trilhões de reais para o sistema financeiro nacional. Embora seja uma medida para garantir a solvência do sistema financeiro nacional e, assim, procurar manter os canais de crédito abertos sobretudo aos empresários e, em menor medida, aos trabalhadores, a crise de 2008 mostrou que, em circunstâncias dramáticas, os bancos asseguram suas posições de solvência, enquanto os demais setores da economia quebram. Contudo, não parece ser isso o que tem ocorrido. Ademais, ainda que o circuito do crédito seja mantido, não há garantia que os tomadores desses recursos conseguirão recuperar as condições econômicas para arcarem com o pagamento destas dívidas sem ampliar com isto sua vulnerabilidade.

Para os trabalhadores e os pequenos empresários, estas soluções, em linha com os interesses empresariais, apenas agravam as incertezas quanto à renda e ao emprego, conforme pode ser observado também no caso da Medida Provisória 927/2020 que, dentre outras deliberações, permitia a suspensão do trabalho por quatro meses independente do pagamento de salários. Esse artigo fora revogado, pela Medida Provisória seguinte, 928/2020. Entretanto, foram mantidas as demais disposições que: autorizam a redução salarial em até 25% independente da redução da jornada e a antecipação de férias de forma unilateral pelo empregador, liberam os empregadores das exigências relativas às normas de saúde e segurança no trabalho e, dentre outras medidas, suspende a exigibilidade do recolhimento do FGTS pelos empregadores, referente às competências de março, abril e maio de 2020. Além de subestimar a gravidade da crise, essa Medida Provisória vai na direção de radicalizar a “reforma trabalhista, jogando o ônus da crise econômica nas costas dos trabalhadores.

O que se avizinha é uma crise sistêmica que mostra, uma vez mais, a incapacidade do mercado em dar respostas à altura dos problemas, dos quais se destacam as ameaças de desabastecimento alimentar, o acesso restrito ao sistema de saúde e a interrupção do fluxo de renda para amplas parcelas da população. A ação direta do Estado é imprescindível para atenuar o colapso econômico durante o isolamento domiciliar, bem como lançar medidas de injeção de recursos públicos direcionadas para o planejamento econômico, acenando para o momento posterior à pandemia.

É importante frisar, contudo, que não se trata de solicitar a entrada do Estado neste momento de crise, como uma espécie de “salva-vidas” da economia e da sociedade, em vias de sufocar-se. Defende-se outra abordagem da crise em curso. Neste sentido, a decisão de transferir recursos por meio de uma renda básica de R$600,00 pelos próximos três meses, a começar em 16 de abril, é de suma importância, mas não parece suficiente. Ao mesmo tempo, a própria dificuldade de execução dessa medida ainda tímida indica como a mobilização dos parcos aparatos de planejamento econômico restantes no Estado brasileiro, produto de décadas de equívocos na condução da política econômica nacional, não será uma tarefa fácil. Daqui para frente, é fundamental que se construam mecanismos de controle social da produção econômica, assegurando as condições materiais para uma sociedade livre e coesa. As decisões de produção e alocação de recursos não podem continuar guiando-se por interesses exclusivamente mercadológicos. Em lugar da produção aleatória, faz-se imperativo, ao menos enquanto durar a pandemia do COVID-19, a tomada de medidas urgentes e vigorosas. Dentre as quais destacamos:

  • i) estabelecer o planejamento da produção e da distribuição de leitos, materiais hospitalares, e outros meios necessários ao combate da pandemia; 
  • ii) organizar o abastecimento da oferta de gêneros alimentícios, inclusive por meio da distribuição emergencial de gêneros básicos as pessoas em condição de maior vulnerabilidade;
  • iii) garantir condições de moradia para pessoas sem casa própria, subsidiando aluguéis e vedando despejos judiciais enquanto durar a pandemia; 
  • iv) organizar a produção e distribuição de equipamentos de proteção individual e de material de higiene pessoal; 
  • v) garantir a renda dos trabalhadores formais por meio de legislação que garanta a estabilidade do emprego e de suporte creditício às empresas, sobretudo as de pequeno porte; 
  • vi) garantia de renda aos desempregados, microempreendedores, dos trabalhadores informais, em plataformas digitais e dos terceirizados por meio de aporte do Estado; 
  • vii) ampliar e incrementar os mecanismos de transferência de renda para as parcelas mais pauperizadas da população; 
  • viii) garantir as condições de vida, saúde e trabalho aos trabalhadores e trabalhadoras de setores essenciais; dentre outras medidas.

Certamente nenhuma destas medidas alcançará solucionar o problema, cujos efeitos estão fora de qualquer possibilidade de previsão. Seu objetivo consiste apenas em buscar minorar o sofrimento dos setores mais vulneráveis da população, garantindo condições mínimas para que todos possam seguir as recomendações científicas e permanecerem em suas casas. Para além dessas medidas urgentes, esse cenário dramático também nos convoca a questionar a própria forma em que a sociedade se encontra organizada, e a agir para transformá-la, enquanto há tempo. Não é possível continuarmos a naturalizar uma sociedade que tem como princípio ordenador máximo a busca por lucros, que se baseia em crescente desigualdade, que relega grande parte da população a condições miseráveis de existência, que degrada o meio ambiente, que nos coloca em competição permanente e tende a destruir qualquer laço de solidariedade entre as pessoas, que coloca a “saúde da economia” acima da saúde das pessoas, e concebe a mera manutenção de um sistema de saúde universal e de qualidade como um “custo” intolerável.

Vitória, abril 2020.                                                                                                                                                   Professor@s do Grupo de Conjuntura da UFES
Ana Paula Fregnani Colombi
Gustavo Moura de Cavalcanti Mello
Henrique Pereira Braga
Neide César Vargas
Rafael Moraes
Vinícius Vieira Pereira
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