DESCONSTRUINDO FALSAS VERDADES EM TEMPOS DE PANDEMIA – PARTE II

Vinícius Vieira Pereira
Prof. Departamento de Economia da UFES
Tutor do Programa Pet Economia/UFES

Na primeira parte desse artigo, apresentamos um contraponto à ideia bastante recorrente de que, após passada a crise do coronavírus, deveríamos voltar à normalidade da vida pré-crise. Questionamos o que chamamos de normalidade e apresentamos alguns esforços no sentido de construir cenários alternativos de organização econômica e social futuras, distintos daquele que ora rege a vida na sociedade capitalista contemporânea. Agora é a vez de desconstruir uma segunda “verdade”, que está implícita na forma como a grande mídia vem noticiando a causa da pandemia e da crise econômica dela resultante, isto é, que uma vez provocada por um microrganismo, um vírus, a tragédia que ora nos oprime teria, portanto, sua origem em um fator exógeno ao sistema socioeconômico em que vivemos. Logo, tratar-se-ia de um elemento estranho, externo à sociedade capitalista e, desse modo, suas causas deveriam ser buscadas não no modo como produzimos a nossa vida material e dispomos das forças produtivas, mas, sim, no campo das ciências da natureza, da biologia. Esse pensamento permite, inclusive, referendar o argumento de que tudo ia muito bem, até que um vírus…

Atribuir causas aos fenômenos sociais leva-nos, obrigatoriamente, à construção de determinadas inferências em relação às possibilidades observáveis. Assim, elencamos e definimos as hipóteses que consideramos válidas como sendo as causas mais prováveis. É nesse momento que a escolha de um fator externo como sendo a causa principal do fenômeno emerge como a explicação mais fácil e conveniente. No caso da Covid-19, que expõe a vergonha da barbárie do capitalismo contemporâneo e a fragilidade de sua estrutura social, a atribuição de uma causalidade exógena torna-se a alternativa mais confortável, em especial, para os apologetas do capitalismo neoliberal, seus beneficiários e boa parte da imprensa mundial que não tardam em laçar mão de um velho jargão da ortodoxia econômica e afirmar que a pandemia deve ser tratada como um choque externo. E, nesse caso, caberia ao próprio mercado apontar os mecanismos de correção adequados para um retorno menos turbulento ao equilíbrio e à antiga normalidade. Porém, nada mais desonesto com a realidade dos fatos do que sustentar tal afirmação. Basta apenas um olhar pouco mais crítico.

Começaremos afirmando que a Covid-19 não caiu do céu como um meteoro. Não se trata de um incidente aleatório, ou de um evento causal originado fortuitamente na esfera das ciências naturais. O coronavírus e a sua capacidade de disseminação e destruição originaram-se como parte dinâmica e indissociável do nosso atual sistema social, onde a organização da produção da nossa vida material, ou, a forma como vivemos e produzimos nossa subsistência, obedece aos estímulos que emanam da necessidade de valorização do capital e não das necessidades vitais para a preservação do bem-estar dos indivíduos e a conservação do nosso habitat.

Alinhado a esse pensamento, o professor Jorge Grespan, da USP, afirma que a pandemia apenas potencializou os problemas e as contradições já presentes em nossa sociedade e que estes constituem a essência do modo capitalista de viver. Para ele, os últimos trinta ou quarenta anos de neoliberalismo apenas exacerbaram os antagonismos sociais já existentes no capitalismo, a partir do momento em que se destruiu a capacidade dos governos de gerir com competência os sistemas públicos de saúde e intervir com rapidez e eficiência na produção de mercadorias e serviços para a população em geral. Portanto, para ele, a crise do coronavírus é uma crise endógena ao capitalismo e, assim, suas causas devem ser buscadas na forma de vida e produção em que vivemos[1]

Fazendo um paralelo histórico, a peste negra, que dizimou de um terço à metade da população da Europa ocidental em meados do século XIV, também não pode ser tratada como uma causa externa da crise que marcou o início do fim da sociedade feudal europeia. A peste bubônica, transmitida por uma bactéria ainda ignorada pela ciência até aquele momento, foi gestada no seio de uma sociedade em plena transformação, cujas contradições em processo se transformavam em antagonismos insuperáveis frente ao desenvolvimento do modo feudal de produção. Parecia haver chegado o limite de reprodução material daquele modelo societário.

Muitos foram os fatores internos ao modo feudal de produção que corroboram esse argumento, uma vez que foram responsáveis pela origem das condições propícias ao surgimento e à disseminação da peste bubônica naquela região. O crescimento do número de cidades e a intensificação das feiras, do comércio e das trocas no feudalismo europeu se, por um lado, significaram uma maior aproximação entre as comunas e o estreitamento das relações humanas e de intercâmbio econômico[2], por outro, exigiram a aceleração dos processos de produção de mercadorias, equipamentos e moradias num ritmo muito superior à capacidade de reprodução do sistema feudal[3]. Os avanços tecnológicos registrados na Baixa Idade Média, como os observados nas velas, remos e mastros das galeras para navegação, a rotação de três campos, a carroça de eixo móvel com quatro rodas, o atrelamento de animais, a tração equina, e a canga frontal para os bois, a pavimentação de estradas, o moinho e a roda d’água, bem como o moinho de vento, todos voltados à moagem de cereais, o poço artesiano, a chaminé, a roca em lugar do fuso, a vela e o círio, o alambique clássico para destilação, o álcool e o carbonato de potássio, o relógio mecânico de peso, a arquitetura gótica[4], entre tantos outros, ao mesmo tempo em que ampliaram a capacidade de produção por parte da sociedade, foram incapazes de compensar a depredação ambiental, o esgotamento das matérias primas e a exploração agrícola extensiva e predatória resultantes, de modo que os recursos naturais foram tornando-se escassos e, por fim, exaurindo-se[5]. Além disso, as técnicas de armazenamento e estocagem de grãos, bem como os problemas existentes para a circulação da produção, incompatíveis com o aumento da produção, favoreciam a perda rápida de gêneros perecíveis; a extração da madeira, essencial para construção civil, fabricação de ferramentas, equipamentos e como combustível, bem como a busca por outras fontes de energia provocavam graves desequilíbrios ambientais[6]. A derrubada de florestas e o desmatamento acelerado, a poluição de rios e córregos, a drenagem de regiões pantanosas influenciavam na recorrência das tempestades de areia, dos longos períodos de seca e das chuvas torrenciais. O esgotamento do solo e da natureza, dessa forma, somava-se a esse cenário e respondia, por sua vez, com a queda na produção, enquanto o crescimento populacional pressionava a disputa pelo excedente agrícola e pelas terras aráveis disponíveis, gerando conflitos sangrentos na luta pela terra[7]. Áreas de enormes vazios demográficos passaram a conviver com regiões intensamente povoadas, marcadas pelas aglomerações humanas[8]

Frente a esse processo, a necessidade da ampliação do território econômico e da conquista de novas terras férteis, aráveis ou ricas em metais preciosos provocou um primeiro movimento de expansão mundial. Mesmo as Cruzadas, que embora se constituíssem em expedições militares calcadas em uma disputa religiosa, mostraram, ao longo dos séculos XII e XIII, tratar-se de uma guerra contra o oriente muçulmano pela conquista de áreas econômica e politicamente estratégicas. Pode-se arriscar que daí tenha resultado um primeiro e importante processo de aproximação econômica, comercial e financeira entre as civilizações ocidental e oriental, onde acordos comerciais, trocas monetárias, emissões de letras de câmbio, contratos de fretes e seguros, que tornavam tão lucrativas as “sagradas” expedições para as classes nobre e burguesa, criaram um fluxo perene de mercadorias e pessoas através da Eurásia[9], movimento que, ao ser profundamente estudado pelo historiador Jaques Le Goff, levou-o a identificar, nas práticas e na mentalidade racionalista dos mercadores banqueiros medievais, características semelhantes às dos capitalistas que surgiriam alguns séculos depois[10]. O mundo parecia se integrar em velocidade e intensidade jamais vistas até então.

Mas, se a dinamização do mercado externo e o comércio internacional encurtavam as distâncias, facilitavam o acesso às novas mercadorias e aos serviços e criavam novos hábitos de consumo para as nobres elites encasteladas e endinheiradas, também possibilitavam a disseminação mundial de micro-organismos e doenças antes peculiares apenas a uma determinada região. Afinal, as classes produtoras, formadas pelos pequenos artesãos e operários das oficinas urbanas, servos e, também, pelos camponeses miseráveis que viviam nas terras comunais às margens dos feudos, encontravam dificuldades para se manterem alimentadas e aquecidas, tornando-se organismos frágeis e vulneráveis em um ambiente hostil e favorável à disseminação de moléstias. 

Em suma, a prosperidade e o desenvolvimento econômico que brindaram a sociedade feudal na Europa ocidental a partir do século XI, ao ponto deste período ser equiparado ao de uma revolução comercial[11], também criaram as condições que, três séculos depois, transformar-se-iam em antagonismos capazes de gerarem a própria crise e a destruição dessa sociedade. Crise que se manifestava na impossibilidade de se garantir as condições mínimas de vida, alimentação, higiene e saneamento básico nos núcleos urbanos cada vez mais numerosos e nos feudos mais prósperos. Uma horda de seres fragilizados e expostos à fome, à desnutrição, às moléstias e epidemias que porventura surgissem. Paralelamente, uma medicina pública abandonada, praticamente inexistente, que misturava parcas observações científicas com rituais xamanísticos e influências espirituais[12]. O modo de produção feudal aproximava-se de seu fim e havia produzido, ao longo de três séculos, do XI ao XIV, abundância e vulnerabilidade simultaneamente. Criara, internamente, as causas de sua própria destruição, entre elas, as condições favoráveis à epidemia da peste negra.

Ora, no seio dessa sociedade feudal, o surgimento e a proliferação da bactéria Yersinia pestis, transportada dos ratos para os humanos por meio das pulgas, não podem ser tratados como eventos externos ao modelo societário característico da Baixa Idade Média. Do mesmo modo que o novo coronavírus, que atinge agora a espécie humana e se alastra com tamanha força e facilidade, não pode ser dissociado da forma como vivemos e produzimos nossa vida material nos dias atuais. Se hoje, os que defendem a causação externa da pandemia buscam nos chineses o alvo preferido, na era medieval, a culpa pela peste negra recaiu sobre os judeus, os leprosos e os estrangeiros que, de modo geral, migravam para a Europa Ocidental. Como vemos, a história se repete, mudam-se apenas as personagens.

O capitalismo contemporâneo tratou também de produzir suas próprias contradições, ou as condições necessárias para que surtos pandêmicos de doenças agressivas como a Covid-19 se disseminem de modo letal. Não precisamos de causas externas, pois se quisermos encontrar as causas dessa tragédia, devemos buscá-las na dinâmica interna dos mecanismos de reprodução da sociedade capitalista. Em sua essência, uma sociedade que se move em torno de um sistema cujo funcionamento se pauta nas vantagens e no lucro privados. Como meios de alcançá-los, temos o mercado, a concorrência, a livre iniciativa e o consumo de massa como promessas de felicidade. Baseado no liberalismo econômico clássico, qualquer planejamento da produção social, ou interferência do estado em relação às necessidades sociais, é peremptoriamente rechaçado. O interesse individual e a autossatisfação das necessidades, aliados à mentalidade racional e maximizadora de utilidades do self-made man, fazem do mercado o lócus do prazer ou da dor, e o único alocador eficiente de recursos. O mercado é quem define do que precisamos. Tal sociedade dispensa, inclusive, a interferência do estado.

Assim, em nome do livre mercado, mercantilizou-se tudo, a medicina, os cuidados com a saúde e a vida das pessoas, os alimentos, a educação, a natureza, o meio ambiente. Tudo passou a servir aos negócios e a obedecer rigorosamente aos critérios da contabilidade e dos lucros. Os processos produtivos se adequaram a essa lógica única que norteia a vida da nossa sociedade. Nenhum estado, nenhum governo que esteja sob o domínio do capital e do livre mercado poderá se imiscuir nos assuntos da produção. Segundo essa lógica, o estado deve eximir-se da tarefa de fazer políticas agrícolas e de manter sistemas públicos de saúde, por exemplo. Deve abster-se da educação e da pesquisa, e deixar a construção de moradias por conta dos interesses privados do mercado imobiliário e da construção civil. Deve evitar gastos com hospitais, laboratórios e centros de pesquisa, afinal, o interesse privado é capaz de fazer o mesmo com maior competência. Os medicamentos devem ser produzidos sobre critérios puramente mercadológicos. Disseminou-se até mesmo que o estado sério e o governo comprometido com a ética e o povo não interferem nas cadeias produtivas, não direcionam incentivos para setores de interesse público, não se intrometem nas cadeias de suprimentos e nem na logística da distribuição da produção, ao contrário, preocupam-se apenas em manter as regras do jogo bem claras e suas contas em equilíbrio. Os gastos públicos devem estar sempre em níveis compatíveis com impostos bem baixos. O Estado verdadeiramente preocupado com o seu povo, segundo o mesmo discurso, deve deixar todas as decisões nas mãos dos capitalistas, pois esses, na luta por seus interesses egoístas, acabarão por levar bem-estar e felicidade a todos. Ainda que o façam sem saber que o fazem, afinal, vícios privados se transformam, nessa sociedade mágica, em benefícios públicos[13]. O resultado disso é que o capitalismo, ao longo dos séculos, assim como vimos no caso do feudalismo, produziu antagonismos que ora parecem insuperáveis e insustentáveis.

As políticas de cunho neoliberal, baseadas nos manuais de economia ortodoxa, e as teorias que justificam a necessidade do equilíbrio nas contas públicas e da austeridade fiscal a qualquer custo obrigaram os governos a abandonarem muitos dos setores ligados aos serviços públicos de cuidados básicos de atenção à saúde, alimentação, moradia, saneamento básico e higiene. O resultado é que as pesquisas e a produção de bens ligados à saúde pública, os serviços preventivos e gratuitos ficaram no mais completo abandono. Sucateados foram os hospitais públicos e as UPA’s, as populares unidades de pronto-atendimento, únicas aliadas dos mais pobres nos momentos de aflição. 

Segundo afirma o professor Jorge Grespan, na mesma entrevista já citada, a prova maior das consequências dessas políticas liberalizantes é que os países que mais estão sofrendo com a crise da Covid-19 são aqueles que, proporcionalmente às suas estruturas produtiva e populacional, mais aprofundaram as condições acima listadas. EUA, onde sequer um programa de auxílio de saúde público e gratuito para a parcela mais pobre da população foi aprovado pelo Congresso; Itália e Espanha, que sofreram sobremaneira as exigências de austeridade fiscal impostas pela União Europeia como forma de enfrentar os efeitos da crise de 2008. E para além desses citados por Grespan, não podemos deixar de citar a própria “fornalha chinesa”, Wuhan, assim chamada por se tratar de um dos quatro maiores centros industriais da China, e onde a produção se pauta num autêntico modelo concorrencial internacional, apesar de se tratar de um país socialista, governado por um partido comunista.

Recente reportagem da revista Forbes alertou para um fato que comprova como a estrutura produtiva na sociedade capitalista contemporânea é uma das principais causas da disseminação da pandemia. Inconformado com a incapacidade da economia de redirecionar recursos produtivos e gerar equipamentos de proteção individual na velocidade requerida pela rapidez de contágio da Covid-19, o colunista em questão, especialista em logística de produção, considerava inaceitável o fato de não conseguirmos, após meses de pandemia, produzir cotonetes de algodão para testes de coronavírus, máscaras e álcool gel na quantidade necessária para mitigar os efeitos da doença. E afirma, categoricamente, que a estrutura da produção capitalista mundial precisa ser mais eficiente, resiliente e flexível, capaz de se adaptar e atender às demandas sociais no momento em que isso se fizer necessário, além de gerar menos poluentes, o que somente seria possível com uma mudança radical nas cadeias de suprimentos, que deveriam se tornar mais simples e curtas, capazes de reagirem mais rapidamente às crises[14].

De fato, é inconcebível que uma indústria que se aproxima de sua quarta revolução industrial, a dos robôs, da internet das coisas, da inteligência artificial, da vida digital, não tenha capacidade de produzir cotonete de algodão, máscaras simples de pano e elástico, álcool, equipamentos médicos de proteção. Mas, o problema reside não na capacidade de se adequar, como afirma o especialista da Forbes, mas no interesse de fazê-lo! O que adiantaria modificar toda a cadeia produtiva para atender uma eventualidade? E quando a pandemia passar? Terá sido o tempo suficiente para amortizar o capital investido? E os lucros dos bancos e dos acionistas, terão sido eles atendidos de maneira satisfatória? Talvez, a pergunta que devêssemos fazer é: que tipo de sociedade o modo capitalista de produção forjou? Se tentarmos responder a essa questão, chegaremos bem próximos das causas reais da pandemia. Todas elas internas à economia capitalista. 

Ora, o uso da medicina e da farmacologia com o propósito de atender aos interesses do mercado subordinou os profissionais de saúde, os laboratórios, as universidades e os centros de pesquisa, os hospitais e as fábricas de medicamentos, bem como os gastos em pesquisa e inovação aos critérios puramente financeiros e mercadológicos. A contraface desse processo foi o completo abandono dos sistemas públicos de saúde, incapazes de prover atendimento hospitalar, cuidados preventivos e medicamentos gratuitos quando a tragédia bate à porta. Com o agravante de que o crescimento desordenado das cidades e a precária condição de alimentação, moradia e saneamento básico nas suas zonas periféricas estimulam hábitos propícios à maior propagação de doenças, como a causada pelo novo coronavírus.

Enquanto os laboratórios de medicamentos trabalham exaustivamente para lucrarem com as doenças, a racionalidade econômica ordena o abandono do investimento em pesquisas sobre prevenção. Para especialistas no setor, “a indústria trilionária dos medicamentos não necessariamente atende aos interesses dos pacientes ou de governos, nem mesmo em tempos de pandemia”. Garantindo acesso desigual a remédios mundo afora, “os investimentos em pesquisa priorizam sempre a medicação de uso contínuo e os princípios ativos mais rentáveis do que antibióticos e vacinas”. Além disso, os mesmos especialistas são categóricos em afirmar que o coronavírus expôs um lado obscuro do mercado farmacêutico, qual seja, “o elevado grau de concentração e internacionalização do setor[15], onde um pequeno punhado de poderosas empresas guiam seus negócios movidos por interesses financeiros, e não pelo interesse em proporcionar bem-estar frente às necessidades de bens e serviços peculiares ao campo dos cuidados de saúde[16].  

Mas as causas internas da pandemia não param por aí. O intenso processo de urbanização, inerente ao capitalismo industrial e acelerado pela especulação imobiliária, desenvolveu hábitos alimentares, de vida e de higiene que tornam nossa saúde e nosso sistema imunológico vulneráveis ao ataque de microrganismos mais resistentes. Os alimentos produzidos pela lógica do menor custo-benefício e os remédios ingeridos diariamente, via automedicação e estimulados pelas publicidades lucrativas do tipo “pague 2 e leve 3”[17], aliados às rotinas de trabalho que privilegiam o aumento da produtividade, tronaram-se fatores de risco à saúde das pessoas. Afetando a resistência do corpo em momentos de ameaça viral ou bacteriana, esse modo de vida deixou os indivíduos mais expostos ao contágio de moléstias variadas. Assim, tornaram-se comuns entre nós as doenças funcionais, respiratórias e cardiovasculares, a obesidade, a depressão, a carência de vitaminas e proteínas, a diabetes, entre outras que, agora, são elencadas entre as comorbidades patogênicas e prognósticas que afetam grande parte da população mundial. Sem falar na agricultura, ou melhor, no agronegócio, que abusa do uso de agrotóxicos e se concentra na produção de matérias primas para o mercado externo em lugar da preocupação com a soberania alimentar e com a qualidade do alimento que vai para as mesas das famílias.

Aliada inseparável dessas causas, a intensificação dos fluxos de pessoas e mercadorias entre as mais diferentes regiões do planeta e a rapidez e dinamicidade desses deslocamentos criaram as condições necessárias para a rápida transformação de um surto em epidemia e, desta, para pandemia. De natureza intrínseca e indissociável do sistema econômico e social em que vivemos, a busca incessante por lucros faz com que a essência do capital seja a de dar vazão à sua vocação, expandir-se sobre a maior área possível do globo, reduzindo o tempo de produção e circulação com o intuito de completar o ciclo de valorização do investimento no menor tempo possível. O capital, seja em sua forma industrial, comercial ou financeira, está constantemente derrubando barreiras e desmanchando limites geográficos, diplomáticos e institucionais. Forçando a redução de tributos e a desregulamentação sobre seus movimentos e transações, seus detentores têm exigido, cada vez mais, a flexibilidade das regras que limitem a livre mobilidade de mercadorias e investimentos. E esse processo de integração de pessoas e coisas que confere ao capitalismo sua face cosmopolita precisa se ampliar constantemente, como forma de garantir a manutenção das taxas de lucro, mesmo em momentos críticos. Mas, essa natureza do capitalismo tem suas consequências contraditórias. O primeiro caso confirmado de coronavírus no mundo ocorreu em 17 de novembro de 2019, na província de Hubei, cuja capital, Wuham, importante centro comercial e industrial da República Popular da China, ficou marcada como a cidade de origem da Covid-19. Naquele momento, tratava-se de uma pessoa de 55 anos de idade[18]. Passados seis meses, já são mais de cinco milhões de pessoas infectadas em 182 países no mundo e, aproximadamente, 300 mil mortes confirmadas, mais de 20 mil delas só no Brasil, de acordo com dados de 21 de maio, sem contar os recorrentes problemas de subnotificação. Portos, aeroportos e entradas de cidades estão sendo fechados como forma de conter a disseminação ainda maior do vírus. Mas, barrar a disseminação do vírus significa o mesmo que impedir a valorização do capital, processo suicida para a forma de organização da sociedade contemporânea.

A destruição da natureza e seus biomas deve também ser listada entre as causas da Covid-19, assim como a venda ilícita de animais silvestres que desrespeita as leis protetoras dos animais e eleva a vulnerabilidade às doenças zoonóticas em virtude da destruição de habitats selvagens[19]. Devastação de floretas e áreas de preservação, mudanças climáticas, assoreamento de rios e pesca predatória são apenas alguns fatores internos que têm levado à migração forçada de espécies selvagens para regiões próximas às de criação de animais para consumo humano. As evidências das recorrências de processos semelhantes são muitas. Em reportagem bastante elucidativa, Juliana Gragnani, da BBC, mostra em detalhes como o coronavírus pode estar repetindo o mesmo processo que levou o vírus Nipah, na Malásia, em 1998, a infectar e levar à morte centenas de pessoas na Malásia, Cingapura, Bangladesh e Índia, a partir do momento em que a migração de morcegos famintos levou-os a uma área próxima à de criação de porcos e o vírus, até então presente apenas no morcego, contaminou os porcos, sofreu mutação no organismo suíno e transformou-se em um vírus letal para os seres humanos. Richard Ostfeld, do Cary Institute of Ecosystem Studies, dos EUA, é um dos dez especialistas que, na mesma matéria, afirma que o desmatamento, a ampliação de abertura de áreas para a agricultura e pecuária, e os agrupamentos estranhos de espécies que nunca haviam ocorrido na natureza estão provocando o surgimento de doenças na raça humana derivadas de outras espécies. E Ostfeld conclui que “nós estamos negligenciando o cenário maior (…) pois a alta densidade populacional dos seres humanos e a intensa conexão entre indivíduos e animais silvestres favorecem o surgimento e espalhamento das doenças”. Segundo os especialistas ouvidos na reportagem, devemos conservar a biodiversidade, levando-a mais a sério. “Não deveríamos subsidiar indústrias que não se preocupam com os resultados provocados por suas atividades, afinal, a ciência está nos dizendo que devemos reavaliar nosso relacionamento com a natureza”[20]. Enfim, o fato de não se respeitar os habitats naturais dessas espécies e transformar tudo em arena de lucros são causas inequívocas da pandemia que ora devasta a humanidade. 

Portanto, chegamos a uma conclusão muito semelhante a que havíamos chegado na primeira parte dessa matéria, publicada neste blog, ou seja, ou alteramos o nosso modo de viver ou continuaremos gerando causas internas para fenômenos cruéis e trágicos como o da Covid-19. O cineasta israelense, Amos Gitai, assinou, recentemente uma petição que circula em nível mundial entre artistas e cientistas cuja palavra de ordem é “Não à normalidade”, petição que havia se iniciado no começo de maio, por iniciativa da atriz francesa, Juliete Binoche. A conclusão à qual Gitai chega é a de que precisamos entender qual é a mensagem indireta que esse vírus está tentando passar para a humanidade, de modo geral. Além disso, segundo ele, “esta pandemia exige uma profunda reflexão sobre o nosso modo de viver”, pois “no mundo do depois” não deveria haver lugar “para práticas que destroem a Amazônia”[21]. O primeiro passo para isso, no entanto, é aceitar que precisamos parar de produzir as causas de nossa própria destruição.

Na terceira e última parte deste artigo, trataríamos, inicialmente, de analisar criticamente outro argumento bastante difundido nos primeiros meses da pandemia, o de que a Covid-19 era uma doença democrática, ou seja, atingia igualmente e sem fazer distinções, ricos e pobres, brancos e negros, trabalhadores e patrões. No entanto, a evidência dos fatos falou por si mesma e, aos poucos, foi se tornando cada vez mais difícil e desonesto sustentar tal afirmação. Assim, ao invés de desconstruir essa falsa verdade, uma vez que ela mesma já foi solapada em toda a sua base de sustentação pela evidente e irrefutável desproporção com que a tragédia vem atingindo a grande maioria da população pobre de modo muito mais rigoroso do que o faz com a parcela bem menor e menos frágil de nossa sociedade, nossa argumentação se pautará em demonstrar essa característica trágica e cruel da pandemia que, associada à “eficiência” do mercado, ao abandono das funções por parte do estado, à desigualdade econômica e à indiferença social, tem levado dor e sofrimento à classe trabalhadora e aos desempregados, aos moradores de rua e aos encarcerados, aos pobres, negros e marginalizados de nosso país![22]

Até breve…

NOTAS


[1] Tutaméia entrevista Jorge Grespan. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=OxypqCEDPwY
[2] PIRENNE,  Henri. História econômica e social da Idade Média. São Paulo, Mestre Jou, 1982
[3] ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1991
[4] CALAINHO, Daniela Buono. História medieval do ocidente. Editora Vozes Limitada, 2019.
[5] WALLERSTEIN, Immanuel. O sistema mundial moderno. Porto: Afrontamento, 1990.
[6] BLOCH, March. A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70, 1982
[7] ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1991
[8] DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo. São Paulo: Abril, 1985
[9] HUBERMAN, Leo. A História da riqueza do homem. Rio de janeiro: Zahar, 1981
[10] LE GOFF, Jacques. Mercadores e banqueiros da idade média. Lisboa: Gradiva, 1982
[11] LE GOFF, Jacques. O Apogeu da Cidade Medieval. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
[12] LEVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. São Paulo: Cosac Naify, 1967, p. 113. Disponível em:   https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/5224782/mod_resource/content/1/L%C3%89VI-STRAUS S%2C %20Claude.%20Antropologia%20Estrutural%20%281%29.pdf.
[13] MANDEVILLLE, Bernard. A fábula das abelhas ou vícios privados e benefícios públicos. São Paulo: Unesp, 2017
[14] The Coronavirus Pandemic Showed Why We Need Shorter, Simpler Supply Chains. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/michaelmandel1/2020/05/12/the-need-for-shorter-simpler-supply-chains/# 6d5c5d165290
[15] Combate ao coronavírus expõe concentração da indústria de medicamentos. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/bbc/2020/04/30/combate-ao-coronavirus-expoe-concentracao-da-industria-de-medicamentos.htm
[16] SANTOS, Sílvio César Machado. Melhoria da equidade no acesso aos medicamentos no Brasil: os desafios impostos pela dinâmica da competição extra-preço. [Mestrado] Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública; 2001. 180 p. Disponível em: https://portalteses.icict.fiocruz.br/ transf.php?script=thes_chap&id=00004304&lng=pt&nrm=iso
[17] Propaganda de medicamentos na internet e nas redes sociais. Disponível em: https://ascoferj.com.br/noticias/propaganda-de-medicamentos-na-internet-e-nas-redes-sociais/
[18] Primeiro caso do novo coronavírus. Disponível em:  https://www.gazetadopovo.com.br/mundo/ primeiro-caso-novo-coronavirus/
[19] Doenças zoonóticas, as que passam de animais para humanos. Disponível em: https://mar semfim.com.br/doencas-zoonoticas-passam-de-animais-para-humanos/.
[20] Do vírus Nipah ao coronavírus. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/bbc/2020/04/07/do-nipah-ao-coronavirus-destruicao-da-natureza-expoe-ser-humano-a-doencas-do-mundo-animal.htm.
[21] Para cineasta Amos Gitai, a pandemia exige uma reflexão sobre nosso modo de viver. Disponível em: https://www.msn.com/pt-br/noticias/mundo/para-cineasta-amos-gitai-a-pandemia-exige-uma-reflexão-sobre-nosso-modo-de-viver/ar-BB14pWQj?ocid=spartan-dhp-feeds.
[22] Agradeço às fundamentais contribuições dos professores Ana Paula Fregnani Colombi, Gustavo Moura de Cavalcanti Mello, Henrique Pereira Braga e Rafael Moraes, integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisa em Conjuntura, do Departamento de Economia da UFES, para a construção deste texto, não sem antes isentá-los de quaisquer erros que, porventura, o autor tenha cometido.

 

 

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ESTADO E CRESCIMENTO: a recuperação em V, L e U

Fabrício Augusto de Oliveira¹

Uma das principais indagações que têm surgido na atual crise econômica causada pela pandemia diz respeito à forma como o Estado vai resolver o problema do elevado nível de endividamento que viu exacerbado com as políticas de expansão de seus gastos exigidas tanto para salvar vidas como empresas do tormento mundial causado pelo novo vírus.

Para o pensamento econômico dominante, se essas políticas foram mais do que necessárias para evitar o colapso do sistema e evitar o pior, mesmo por ser o único agente do sistema em condições de implementá-las para enfrentar a crise, a realidade pós-epidemia deverá se impor, exigindo ajustes severos em suas finanças para impedir que a instabilidade se instale no sistema, apenas substituindo a crise sanitária por outra crise também grave.

De acordo com as projeções do FMI, os orçamentos e as dívidas públicas, que já destoavam de todas as recomendações feitas pela teoria econômica ortodoxa mesmo antes da crise do coronavírus, devem apresentar-se preocupantemente elevadas ao final dessa pandemia.

No mundo, a relação dívida PIB pode chegar, conforme suas projeções, a 96% do PIB, nas economias desenvolvidas a 122,4%, enquanto a dos Estados Unidos deve conhecer um aumento de 20 pontos percentuais, indo para 131%.

Nas economias emergentes, projeta-se um crescimento de 53% para 62% e, na América Latina, de mais 7,5 pontos percentuais, com a mesma se elevando para 78%. No Brasil, essa relação subiria de 89,5%, na metodologia de cálculo dessa relação utilizada por essa instituição, para 98,2%. A grande pergunta que a teoria econômica vai ter de responder é a seguinte: o que fazer diante deste imbróglio? A este respeito, são três as alternativas que merecem ser examinadas.

A primeira, do pensamento econômico ortodoxo, é a de que o Estado deve retornar à sua condição de agente passivo e retomar o controle dos gastos e dar continuidade à redução de seu tamanho. Só com a sinalização de que se reconstruirão os pilares fiscais, os investidores se sentirão confiantes para retomar os investimentos e relançar a economia numa trajetória de crescimento. A recuperação se daria, de acordo com essa visão, na forma de V, tal como as projeções de crescimento para 2021 que foram feitas pelo FMI, ou seja, de que o crescimento retornará rapidamente e de forma acelerada após a pandemia.

Guiada mais pela fé e pela crença, essa alternativa desconhece a natureza dessa crise, os estragos que têm provocado – e que ainda poderá provocar – sobre a aparelhagem do funcionamento idealizado do sistema econômico, com a falência de muitas empresas, o enfraquecimento financeiro de outras, a queima de capital e o aniquilamento da demanda causada pela queda da renda e do emprego, dado o isolamento social, acreditando numa resposta rápida do capital privado, como sugeriu recentemente, no Brasil, o ministro da Economia, Paulo Guedes.

Se for por este caminho, provavelmente a economia permanecerá por muito tempo no inferno do baixo crescimento e muitos países no da recessão, com a recuperação assumindo a forma de L, ou seja, com uma recessão prolongada, já que todos os motores do crescimento se encontram desligados, sem que haja uma força capaz de religá-los. Devido ao enfraquecimento e à queima de capital provocado pela crise, à fraqueza da demanda e às incertezas que continuam predominantes sobre a duração da epidemia e o futuro da economia, não há como despertar o animal spirit dos empresários para uma aventura dessa natureza.

A segunda, uma alternativa mais na vertente keynesiana, recuperada na forma da Moderna Teoria da Moeda e, na crise atual, defendida até mesmo por alguns economistas filiados à ortodoxia, de que o Estado, além de cumprir um papel-chave para enfrentar seus desafios, pode ser o único agente também em condições de reaquecer os motores do crescimento, por meio do aumento de seus gastos, mesmo que aumentando expressivamente seu endividamento.

Para essa corrente, não existem riscos do financiamento de seus gastos, mesmo que por meio da emissão de moeda, gerar inflação devido à elevada capacidade ociosa da economia e à fraqueza da demanda. À medida que essa capacidade ociosa for sendo ocupada e as pressões inflacionárias começarem a ser sentidas, a esterilização dos meios de pagamento com a venda de títulos públicos, à taxa de juros inferior ao do crescimento do PIB, juntamente com o aumento da arrecadação dele decorrente, pode muito bem colocar a relação dívida/PIB numa trajetória de declínio.

Se seguida, essa política pode abreviar consideravelmente a recessão, dependendo do tempo de duração da pandemia, e garantir uma recuperação na forma de U, ou seja, com uma recuperação mais rápida do que a situação que ocorreria com a primeira alternativa, considerando que a reorganização da produção e do mercado de trabalho demanda algum tempo e que o próprio Estado terá de lidar, por um período, com finanças mais combalidas.

A terceira, que não exclui a segunda, e que não é ventilada pelos governos e gestores de política econômica, especialmente no Brasil, é a que propõe lançar boa parte do ônus da crise sobre uma (pequena) fração da sociedade detentora da riqueza, que lhe garante apropriar-se de uma parcela expressiva da renda gerada.

Trabalho publicado na Plataforma de Política Social, com o título Tributar os ricos para enfrentar a crise, de autoria de instituições representantes do fisco, estima que a cobrança de impostos adicionais, alguns em caráter temporário, sobre a renda dos indivíduos, os lucros de alguns setores econômicos, os dividendos e as grandes fortunas, têm potencial para aumentar em R$ 270 bilhões a arrecadação. 

Embora a proposta tenha tido como objetivo apontar caminhos e fontes para a constituição de um Fundo de Emergência de R$ 100 bilhões para Estados e Municípios conseguirem dar respostas aos desafios colocados de reforço da capacidade e atendimento do SUS, sua importância é a de revelar, no quadro atual, onde esses recursos podem ser obtidos sem provocar grandes desarranjos para o sistema econômico do ponto vista macroeconômico, apenas deixando os ricos um pouco menos ricos.

Não se trata de nenhuma novidade histórica. Em situações semelhantes à que vivemos, como a da Grande Depressão da década de 1930 e da Segunda Guerra Mundial, os impostos sobre a renda e o patrimônio foram consideravelmente elevados para financiar os gastos ampliados do Estado e, ao contrário do que defendia o pensamento conservador, a economia não somente foi retirada do atoleiro em que se encontrava como inaugurou-se um período de crescimento econômico extraordinário, que se prolongou por cerca de trinta anos e, também importante, com maior harmonia social.

No entanto, a teimosia da ortodoxia em continuar a defender que a cobrança de impostos sobre o capital e os ricos termina sendo prejudicial para a economia e de que o Estado constitui uma fonte de instabilidade para o sistema, com teorias divorciadas do mundo real, mas recebendo o aplauso das classes dominantes por protegerem seus interesses, levou à reversão deste processo a partir da década de 1970, conduzindo novamente o mundo para uma trajetória de aumento persistente da desigualdade e da pobreza.

Se for este o caminho, o que infelizmente não parece nada provável, até mesmo pela escassez de propostas neste sentido, a recuperação na forma de U poderia até ser menos amarga e mais acelerada por que contaria com um Estado com finanças mais equilibradas e em melhores condições não somente de contribuir para continuar reerguendo a economia, mas também para diminuir os efeitos da hecatombe que se abateu sobre as camadas mais vulneráveis da população.


¹ Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma Política Social, articulista do Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Governos Lula, Dilma e Temer: do espetáculo do crescimento ao inferno da recessão e da estagnação (2003-2018)”.
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PARA ALÉM DO CORONAVÍRUS: A MORTE NOSSA DE CADA DIA

Rafael Moraes
Professor do Departamento de Economia CCJE/UFES
Populus, meu cão
O escravo, indiferente, que trabalha
E, por presente, tem migalhas sobre o chão
Populus, meu cão
Primeiro, foi seu pai
Segundo, seu irmão
Terceiro, agora, é ele, agora é ele
De geração, em geração, em geração
Antonio Bechior (1977)

[1]Quando as recentes mortes causadas pelo novo Coronavírus se contam aos milhares[2] e frente a elas o Presidente da República reverbera um estrondoso “e daí”[3], é inegável um sentimento de indignação. Ainda que uma terça parte da população brasileira pareça seguir endossando tudo o que faz e diz o presidente, percebe-se o crescimento da revolta diante de sua, digamos, falta de sensibilidade, frente à morte de milhares de brasileiros.

Antes de nos perguntarmos, contudo, qual a razão da falta de empatia presidencial e de nos revoltarmos diante da naturalização da morte em nome do progresso econômico, deveríamos nos perguntar como foi possível chegarmos a esta situação. Seriam o presidente e seus seguidores, especialmente odiosos, mesmo quando comparados aos neoliberais que até ontem cerravam fileiras a seu lado? Ou seria Bolsonaro apenas a face mais despudorada dentre os entusiastas de uma estrutura social que se acostumou a matar? Nos parece que a última alternativa é mais fiel à história e este breve texto se propõe a demonstrar isso.

Quase nada do que se escreverá aqui deve ser visto como uma especificidade brasileira. O fato de tomarmos nosso país como objeto de análise não se deve a nenhuma característica especial. Quase tudo o que se conclui aqui poderia ser dito sobre qualquer outro país. É certo, contudo, que “do lado de baixo do equador” todo terror é desprovido de pudor. Aqui vemos mais de perto e melhor.

Se procurássemos defender que a naturalização da morte em nome da economia, que o presidente parece reverberar, fosse uma especificidade de seu nefasto governo, portanto, totalmente incompatível com a sociabilidade capitalista moderna, teríamos que demonstrar que tal fenômeno não aparece em outros momentos de nossa história, tratando de uma infeliz exceção à regra. Tal engenho, seria certamente uma tarefa inglória. O fato é que a naturalização da morte não aparece ocasionalmente em nossa história, mas se impõe como a característica mais marcante de nossas vidas desde a formação disso que chamamos Brasil. 

Não se trata de questionar aqui a existência em si da morte, enquanto uma condição própria a tudo o que é vivo, mas sim de analisar a forma como a morte do outro foi sendo assimilada como uma condição necessária à sobrevivência do organismo social. Não seria possível reduzir esta forma de sociabilidade que se alimenta da morte ao sistema capitalista, tendo em vista que a morte como resultado do embate entre diferentes grupos sociais está presente ao longo de toda a história da humanidade. A novidade advinda a partir desta nova organização social centrada no capital está na precificação da morte, ou seja, na justificativa monetária para o acúmulo de cadáveres. E nesta História, o Brasil ocupa um capítulo central. 

Constituída como uma empresa mercantil destinada a ofertar recursos naturais aos recém criados Estados europeus[4], a economia brasileira já nasceu contaminada pelo pecado original do extermínio dos índios. A despeito das dificuldades em se avaliar o número de habitantes do território onde hoje é o Brasil, antes da chegada dos portugueses, as estimativas mais conservadoras[5] apontam que viviam aqui em torno de 2,5 milhões de nativos. Após a ocupação, em meados do século XVII, essas populações não chegavam a 10% desse número, dizimadas por conflitos, trabalhos forçados e, principalmente, por diversas doenças trazidas pelos europeus, frente às quais não tinham imunidade. O massacre de pelo menos 2 milhões de nativos[6], em nome do ingresso do Novo Mundo na economia mercantil europeia foi nosso batismo em uma história repleta de cadáveres produzidos pelo progresso econômico.

Ao mesmo tempo em que nativos eram mortos, o sucesso da produção açucareira, e depois mineira e cafeeira, demandava cada vez mais braços. O sequestro e posterior tráfico de africanos para trabalharem nas Américas atendeu a essa necessidade do capital europeu. De 1514 a 1853 chegaram ao Brasil por volta de 5,1 milhões de homens e mulheres negros escravizados. Não bastasse a tragédia contida apenas neste número, ele oculta uma faceta das mais cruéis da história do tráfico negreiro durante o período colonial. Os dados referentes ao transporte de cargas humanas entre a África e o Brasil registram uma diferença de quase 800 mil homens entre o número de embarcados nos portos africanos e o total desembarcado no Brasil. Esta diferença reflete o grande número de negros que embarcavam, mas não chegavam vivos ao destino, tendo seus corpos atirados no mar[6]. Ao longo do século XIX, com as pressões inglesas pelo fim do tráfico, o número de mortes durante a viagem seria ainda mais elevado, pois tornou-se comum a prática de lançar ao mar toda a carga de homens ainda vivos, destruindo assim qualquer prova que pudesse levar a um processo por descumprimento à proibição ao tráfico[8]. O fato de o tráfico não ter cessado mesmo diante desta revoltante prática só reforça a percepção do enorme volume de recursos angariados pelos comerciantes de gente. A morte em suas formas mais apavorantes era apenas um detalhe em meio a tanto ouro. 

A situação dos que chegavam aos portos de Recife, Salvador ou Rio de Janeiro certamente não era muito superior à daqueles que ficavam pelo caminho. Uma vez desembarcados no Brasil, os negros esperavam por horas ou dias nos diversos mercados de homens espalhados pelas regiões portuárias destas cidades até serem comprados e levados a seu local de trabalho. A maioria dos escravizados no Brasil trabalhavam em fazendas, minas ou engenhos. O extenuante trabalho praticado nestes campos fazia com que a morte por excesso de trabalho, doenças ou mesmo resultado da violência dos senhores fosse a regra. Em meados do século XIX, dizia-se que após três anos da compra de um lote saudável de homens, pouco mais de um quarto dele ainda permaneceria vivo nas fazendas. Em torno de 88% dos nascidos sob a escravidão não passavam da infância. A violência física era a lei nas relações entre senhores e negros escravizados. Os casos de rebeldia eram punidos com brutalidade exemplar e algemas, argolas, palmatórias, troncos, chicotes, anjinhos[9], e, no limite, a morte eram instrumentos recorrentes no controle da força de trabalho[10]. O sangue dos negros no eito ou no tronco era o combustível das moendas, das minas e dos cafezais. Como nenhum alquimista ousaria imaginar, no Brasil colonial se aprendeu a transformar sangue em ouro. A morte seguia do nosso lado, oculta e invisível em meio à opulência. Era o custo do sucesso da empresa colonial.

Liberto da submissão política à Coroa Portuguesa desde 1822, em 1850 o Brasil contava com pouco mais de 7 milhões de habitantes, dos quais 2,5 milhões eram negros escravizados. Em 1872, quando a população brasileira chegava aos 10 milhões, o número de trabalhadores cativos havia sido reduzido a 1,5 milhão e às vésperas da abolição era ainda menor, pouco mais de 700 mil. Essa redução no contingente de escravizados entre 1850 e 1888 decorreu principalmente de alforrias concedidas por acordo[11], das mortes[12] e das fugas[13] crescentes, especialmente na década de 1880. Neste contexto, a Lei Áurea longe de ser uma redenção aos negros, significou o abandono pela parcela mais dinâmica da aristocracia rural de um sistema agonizante[14]. Como consequência disto, após a libertação definitiva daqueles que seguiam como escravos em 13 de maio de 1888, nada lhes foi oferecido como recompensa pelos anos de trabalho forçado. Deixados à sua própria sorte, estes homens e mulheres viram-se da noite para o dia “livre[s] do açoite da senzala, [e] preso[s] na miséria da favela”[15].

“Livres”, os libertos do 13 de maio se juntavam aos milhões de sertanejos, caboclos, negros e mulatos, que erravam país a fora em busca de um pedaço de terra, de um cortiço ou ao menos de uma causa pela qual viver. Perdidos em meio à miséria absoluta, se multiplicavam pelos rincões do Brasil, santos e demônios, heróis e bandidos, como ícones condensadores das últimas esperanças de um povo. Filhos da fome, tanto os seguidores do messianismo religioso de Antonio Conselheiro quanto os do banditismo contestador de Virgulino Lampião pagaram com suas vidas pela ousadia de desafiarem a ordem, o latifúndio, a integridade do território e a lei. Era a contribuição do Estado Republicano para engrossar o rastro de sangue de quilombolas, Cabanos, Sabinos e Balaios[16] produzido pelos fuzis imperiais.

Derrubado o Império, o Brasil adentrava o século XX como uma República liberal. A mão de obra livre, composta em sua maioria de imigrantes, permitia o grande crescimento das lavouras no interior do país. O dinamismo da economia impulsionado pelo café tornaria a então pequena cidade de São Paulo o maior centro econômico do país em poucos anos. A pobreza, a espoliação e a morte seguiriam de mãos dadas com o progresso. No campo e nas cidades, condições de trabalho extenuantes seguiram matando aos milhares. 

No maior centro urbano do início do século XX, a cidade do Rio de Janeiro, a perseguição aos negros, aos seus cultos e à sua cultura se inseria em um contexto de “modernização” e de busca de uma nova moral do trabalho pós-escravidão. Apontados como vadios, pouco propensos ao trabalho livre e indisciplinados estes homens foram aos poucos sendo expulsos para periferia da cidade, passando a ocupar regiões suburbanas ou encostas de morros. A miséria aparecia então nos morros, nos subúrbios ou nas prisões, já que a criminalização das formas de vivência de negros foi utilizada como recurso para a construção de uma sociabilidade tida como “moderna”[17].

Sem garantia nenhuma de acesso à moradia, saneamento, educação e trabalho, estas pessoas se tornaram uma massa totalmente marginalizada frente ao progresso econômico. Em lugar dos castigos da escravidão, a fome; em lugar da morte pelos capitães do mato, a morte pelas forças pública de justiça; em lugar do trabalho incessante no eito, o trabalho precário nas piores ocupações. 

Pelos rincões do país a situação não era diferente. Enquanto o café produzia reis e barões em São Paulo, ao norte se produziam campos de concentração. Em meio à seca nordestina, a pobreza levava à fome e com ela ao desespero. Temerosos com o que hordas de famintos pudessem realizar, entre 1915 e 1933 foram construídos diversos campos de isolamento de retirantes no interior do Ceará para impedir sua chegada à capital, Fortaleza. Estes campos que seguiram existindo ao longo da primeira metade do século XX, produziram cadáveres aos milhares. A distância entre os escolhidos para viver e os escolhidos para morrer era tão grande que um novo cemitério foi construído apenas para receber essas vítimas. Nem mesmo mortos, os pobres retirantes eram dignos de se juntarem à “civilização”[18].

O “progresso” continuava e, em plena década de 1950, durante o auge da industrialização brasileira, no maior centro econômico do país, na Favela Canindé, às margens do rio Tietê, uma catadora de papel apontava a insensibilidade de Juscelino frente à pobreza e escrevia para espantar a fome[19]. Na mesma época, muito longe dali, no engenho da Galileia, em Vitória de Santo Antão, a falta de caixões para enterrar seus mortos era o estopim para uma rebelião no interior de Pernambuco. A ordem não podia tolerar rebeliões e, não bastasse a seca e a pobreza, os fuzis impunham o veredicto a cabras marcados para morrer[20] no Sertão Nordestino. A economia seguia de vento em popa. Os números do PIB eram mais que suficientes para que as mortes e o sofrimento de negros, pobres e sertanejos fossem rapidamente esquecidas. Em meio aos pátios transbordados de automóveis recém produzidos, de estradas rasgando de Norte a Sul o país, no sertão e nas favelas as vidas eram secas e as mortes invisíveis. 

Aos rebeldes sempre são guardados requintes de crueldade. Nestes casos a morte apenas não basta, é essencial o exemplo. O extermínio físico aqui cumpre uma função disciplinadora, ele deixa de ser apenas natural e legítimo, mas passa a ser necessário para a manutenção da ordem. Neste contexto, o sadismo e o terror passam a ser aceitos como parte da engrenagem que garante o funcionamento do sistema. Ao longo dos 25 anos de ditadura militar no Brasil, vimos de forma bem clara como essa máquina opera. Mais carros, mais estradas, mais energia justificavam e ocultavam mais mortes. Mortes de pobres e negros nos sertões e nas favelas, mortes de índios de Norte a Sul e mortes e torturas de rebeldes nos porões. A economia ia bem, mas o povo ia mal[21]. O bolo crescia, mas não era fatiado[22]. O “milagroso” crescimento econômico dos anos 1970 contrastava com a miséria crescente nos campos e nas cidades. O arrocho salarial e o aumento da concentração de renda[23], somados às mais de 400 mortes[24] e desaparecimentos praticados pelo Estado, são a face oculta dos anos dourados da economia nacional. A morte seguia sendo justificada em nome da prosperidade econômica. 

No final da década de 1980, a crise econômica fez com que os governos militares não fossem mais capazes de alimentar o brilho nos olhos de uma elite já acostumada a matar[25]. A tortura e a morte nas prisões voltaram ao seu lugar de origem, aos lugares de onde ninguém as vê, às periferias, morros e favelas. Após a redemocratização, em meio a uma nova onda de “modernização”, a democracia, agora neoliberal, seguiu convivendo muito bem com a morte. Enquanto o Plano Real causava euforia ao conter a aceleração inflacionária, empresários aplaudiam a abertura comercial[26] e a engrenagem assassina continuava produzindo cadáveres aos milhares. 

Estima-se que em 1995, mais de 22 milhões[27] de pessoas estivessem abaixo da linha da extrema pobreza no Brasil. Isso significa que um em cada sete brasileiros não tinha renda suficiente para consumir a quantidade de calorias considerada necessária para sua sobrevivência. Esse número era menor que os 28,7 cidadãos nestas condições registrados em 1993. A queda deveu-se certamente a contenção da aceleração inflacionária que corroía a renda das famílias mais pobres. A redução na miséria advinda da nova política econômica pós-ditadura, no entanto, parou por aí e, em 2002, o número de miseráveis seguia em 23,8 milhões. 

A convivência com estes números assombrosos não se fez sem a naturalização de uma realidade que se mostrava cada dia mais clara diante dos olhos. A pobreza deixava os sertões e os morros e chegava aos centros das principais cidades do país, na forma de um crescente contingente de miseráveis vagando e vivendo pelas ruas[28]

O crescimento da violência era a outra faceta desta tragédia social. “Quem tem fome tem pressa” era o slogan da “Ação da Cidadania[29], organizada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. A pressa dos famintos muitas vezes podia levar à subversão da ordem no que ela tem de mais sagrado, a propriedade privada. Neste contexto, o Estado sempre é convocado para deter indivíduos, reintegrar posses e, no limite, matar, afinal, sempre que preciso for uma metralhadora alemã ou de Israel estraçalha ladrão que nem papel[30]. Era possível naturalizar a pobreza e a miséria, mas não suas consequências que colocassem em risco à ordem. Aos pobres era imposto morrer calado. 

Para garantir o sucesso dessa higienização social, depurando a sociedade dos que ousavam se revoltar, chacinas se espalharam pelo país. Em 1992, 111 reclusos da Casa de Detenção de São Paulo, conhecida como Penitenciária de Carandiru, foram mortos após a invasão da prisão pela Tropa de Choque da Política Militar para “conter” uma rebelião[31]. Em 1993, oito adolescentes foram assassinados por policiais militares que atiraram nos mais de 70 moradores de rua que dormiam em frente à Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro[32]. Um mês depois, outros 21 jovens foram assassinados por policiais e ex-policiais militares, durante a madrugada, na favela de Vigário Geral, zona Norte do Rio de Janeiro[33]. Em 1996, policiais militares do estado do Pará assassinaram 19 trabalhadores rurais sem-terra, em Eldorado dos Carajás[34]

Por mais que estas formas de ação possam ser tratadas como excessos de setores radicalizados das forças públicas de segurança e de suas milícias paramilitares que já se formavam neste contexto, não é possível entender o avanço destas práticas, sem percebermos uma crescente aquiescência social frente a elas. No fundo tais fenômenos sempre foram vistos com feridas dolorosas e difíceis de serem encaradas, mas considerados necessários para a manutenção da ordem. Tal percepção não se cristaliza, contudo, sem corroer ainda mais as estruturas orgânicas de uma sociedade já dividida de cima a baixo. Conviver com todas estas mortes sem colapsar a ordem social, exige que suas vítimas sejam colocadas em um local a parte. A elas é reservado o lugar do “outro”, aquele que não importa, que é descartável para o organismo social[35]. Foi assim, com o indígena “bárbaro e violento”, foi assim com o negro “selvagem e desumanizado”, foi assim com “mestiço de sangue viciado”, foi assim com trabalhador nacional “vadio e desqualificado”, tem sido assim, com os marginais, “incapazes de viver em sociedade”. Constrói-se um enredo em que todos estes podem morrer, já que nada produzem, são estéreis do ponto de vista econômico e ainda deformam a ordem social. 

Por todas estas razões, tais chacinas não foram casos isolados. Em 2020, matar e morrer em nome do progresso econômico segue prática comum. São crescentes os movimentos em prol da facilitação à posse de armas, ao mesmo tempo em que cresce o número e o poder de milícias de matadores de aluguel. Nada mais próximo do Brasil atual que a constatação de Achille Mbembe quanto à realidade de diversos Estados africanos no final do século XX, nos quais “milícias urbanas, exércitos privados, exércitos de senhores regionais, segurança privada e exércitos de Estado proclamam, todos, o direito de exercer violência ou matar.[36]”

Na zona rural, a expansão da fronteira agrícola segue matando e escravizando em nome do sucesso do agronegócio. Segundo dados do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), em 2019 ocorreram 32 execuções no campo[37], a maior parte delas de lideranças sindicais e de trabalhadores rurais. Já são 247 assassinatos registrados pela CPT desde 1985. No mesmo ano, segundo a CPT, denúncias levaram à descoberta de 880 pessoas em condições análogas ao trabalho escravo no Brasil, das quais 745 foram libertadas[38]. A solução destes casos nem sempre é fácil, tendo em vista as enormes dificuldades e riscos envolvidos na tarefa daqueles que se dispõem a fiscalizar e denunciar os casos de exploração do trabalho. O destino destes agentes de fiscalização muitas vezes também é a morte[39]. A estas mortes somam-se tantas outras originadas pela expansão agrária que leva à proliferação de conflitos entre latifundiários e pequenos produtores e/ou indígenas[40]. Os recentes cortes no número de fiscais e auditores do trabalho, o sucateamento e dirigismo ideológico em órgãos como Ibama, ICMBio[41], Funai[42] e Incra, assim como a criminalização dos movimentos sociais, como o MST[43] apontam para um genocídio de proporções ainda maiores nos próximos anos. 

Em pleno século XXI, esse clima de terra sem lei também é a regra nas maiores metrópoles do país, onde se mata e se morre indiscriminadamente. Segundo o Atlas da Violência 2019, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2017 houve 65.602 homicídios no Brasil. Foram 180 mortes por dia, em média. Estas mortes não despertam atenção. Elas são mais que invisíveis, elas são naturalizadas, por tratarem em geral de jovens negros e pobres moradores das periferias das grandes cidades. Dos assassinatos ocorridos em 2017, 75,5% vitimaram indivíduos negros[44]. Quando aparece na grande imprensa, basicamente em jornais sensacionalistas, não raramente esse extermínio é endossado por um discurso de limpeza social: “um bandido a menos”, especialmente quando a morte é causada em conflitos com a polícia. 

Nos últimos anos, como consequência do acirramento da disputa por poder entre grupos criminosos, como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV), tem sido recorrente a execução de grupos rivais dentro de unidades prisionais[45]. Nestes casos, a morte, mesmo qualificada por uma brutalidade terrível, choca ainda menos. Tornamo-nos uma sociedade sádica, despudorada que não apenas aceita estas mortes, mas vibra com elas. A morte deve entrar em casa, tomar café e almoçar todos os dias com cada um de nós e não mais assustar. Tal sadismo toma forma a partir do crescente número de programas jornalísticos sensacionalistas, sucessos de audiência, centrados no espetáculo da violência. O medo da violência não desperta indignação, mas alimenta o ódio ao “outro”, reforçando a cisão social. Neste sentido, percepção reproduzida nos últimos anos de uma sociedade dividida entre “cidadãos de bem” e “marginais” aparece como a versão mais moderna da polarização entre a Casa Grande e a Senzala.

Se as mortes reveladas por cadáveres decepados e corpos carbonizados[46] apresentados nestes programas não causam terror, o que dizer daquelas que ocorrem silenciosamente nas milhares de casas sem saneamento básico, em hospitais sem médicos e nas ruas. O acesso à saúde tão vivamente lembrado nos últimos dias não é um problema novo para o brasileiro pobre, que depende do Sistema Único de Saúde. Seus problemas passam pelo insuficiente número de médicos e sua desigual distribuição pelo país, pela carência de leitos hospitalares, pela demora no agendamento de consultas e exames, dentre outros[47]. O crescimento da taxa de mortalidade infantil[48] em 2016, após anos em queda, indica o quanto as políticas de austeridade fiscal dos últimos anos têm comprometido ainda mais o fragilizado sistema de saúde brasileiro. 

O que dizer então das milhares de mortes de hoje e de amanhã causadas pela destruição ambiental, pela poluição, por agrotóxicos, pelo desalojamento de comunidades, pela destruição de rios e mares, pela enxurrada de lama causada pelo rompimento criminoso de barragens, pelo deslizamento de construções em encostas, dentre tantas outras mortes evitáveis. Morrer e matar não tem sido um problema há anos. Por que seria agora?

Assim, olhar para trás é condição necessária para entender por que diante das filas em cemitérios para enterrar mortos, da escassez de caixões em algumas cidades e de leitos hospitalares em outras, alguns insistem em se preocuparem mais com a “morte dos CNPJs”. Não se passa impune por uma história assentada sobre cadáveres. De 1500 até aqui, não apenas aprendemos a conviver com eles, como aprendemos a aceitar o quanto são importantes para nossa evolução. “As pessoas morrem”. “A economia não pode parar por 5 ou 7 mil mortes”. Ninguém quer “arrastar um cemitério de mortos nas [suas] costas”. “A roda da economia precisa voltar a girar”. São pensamentos exalados por cabeças de hoje como poderiam ter sido ditos há 20 anos ou em qualquer dia de nossa história.

Dentro deste contexto, a atual política eugenista de Bolsonaro, ainda que na contramão de praticamente todo o mundo, não paira no ar. Ela se sustenta em um aparato ideológico que vê a morte do outro como uma redenção, uma solução final, em nome da evolução social. Sua adesão a esta ideologia tampouco se deu agora, ela já se mostrava clara ao longo de toda a sua carreira política. Já era possível percebê-la quando, ainda deputado, Bolsonaro defendia em 1999, a necessidade de “matar uns 30 mil”, começando pelo então presidente Fernando Henrique, em “trabalho que o regime militar não fez” ou quando dedicou a um torturador seu voto pelo impeachment de Dilma Roussef, em 2016, para ficar em apenas dois exemplos[49].O fato de ainda assim, grande parte da população, a começar por suas elites econômicas, não ter enrubescido em endossar seu discurso durante a campanha eleitoral diz muito mais sobre nós, enquanto sociedade, do que sobre ele. 

Se isso tudo é verdade, ainda que se contrapor à política de morte representada pelo atual governo seja hoje um imperativo, qualquer tentativa de remover cirurgicamente o presidente do posto em que se encontra, não nos transformará em uma sociedade melhor. Para tanto, se faz necessário muito mais que isto. Para iniciarmos a construção de um futuro menos cruel para depois crise, será necessário, desde já, começarmos a nos desinfectar de um vírus muito pior que o que hoje nos assola, do qual temos sido contaminados em massa hereditariamente há séculos, e que nos tem impedido de ver no outro uma parte de nós mesmos. Que se chame a esta doença de capitalismo, ou de qualquer outro nome que se queira dar, o fato é que precisamos reunir esforços urgentes para encontrarmos coletivamente a sua cura.

NOTAS


[1] Agradeço aos colegas do Grupo de Conjuntura Econômica da Ufes, Ana Paula, Henrique, Gustavo e Vinícius, pela leitura e sugestões ao texto, isentando-os de qualquer responsabilidade sobre seu conteúdo.
[2] O número de mortos causados por Coronavírus no Brasil passou dos 16 mil, em 17 de maio de 2020, a partir de informações resultantes de números certamente subnotificados. Ver mais em “Subnotificação: 6 indicadores de que há mais casos de Covid-19 no Brasil do que o governo divulga” Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/29/subnotificacao-4-indicadores-de-que-ha-mais-casos-de-covid-19-no-brasil-do-que-o-governo-divulga.ghtml
[3] Sua indiferença frente às consequências da doença para milhões de brasileiros se materializa não apenas por meio de seus discursos, mas também pelas medidas tomadas até aqui, que deixam clara a opção em proteger empresas e rentistas, ainda que em detrimento dos mais vulneráveis. Ver mais sobre isso em: “Breves comentários sobre a EC 106”, disponível em:  https://blog.ufes.br/grupodeconjunturaufes/2020/05/15/breves-comentarios-sobre-a-ec-106/ e “Pandemia e precariedade: a naturalização dos dramas sociais”, disponível em:  https://blog.ufes.br/grupodeconjunturaufes/2020/04/20/607/
[4] Caio Prado Junior. Formação do Brasil Contemporâneo (1942) 
[5] Leslie Bethell. História da América Latina (vol. 1) publicado pela Edusp e pela Funag em 2012 (2ª ed.). Notas sobre as populações americanas às vésperas das invasões europeias.
[6] Eram mais de 30 milhões em toda a América, como se vê em Nicolás Sanches-Albornoz (A população da américa Espanhola colonial) em História da América Latina (vol. 2) organizado por Leslie Bethell e publicado no Brasil pela Edusp/Funag em 2008. 
[7] As estimativas mais aceitas apontam para 12,5 milhões de embarcados na África e 10,7 desembarcados nas Américas de 1514 até 1866. São praticamente 2 milhões de mortos durante a travessia do Atlântico. Ver: https://slavevoyages.org/.  
[8] Ver sobre isso em Caio Prado Junior. História Econômica do Brasil (Ed. Brasiliense, 1945, p. 109). Eric Willians mostra ainda que a prática de atirar negros ainda vivos ao mar já era utilizada por traficantes mesmo antes do século XIX, seja para conter movimentos de rebelião de negros durante a viagem, seja para evitar o alastramento de doenças a bordo. Nestes casos, o assassinato em massa era retribuído com o pagamento de seguro aos comerciantes pela carga perdida (Capitalismo e Escravidão, Ed. Americana, 1975, pg. 52). 
[9] Argolas nas quais eram presos os dedos polegares da vítima comprimindo-os por meio de um parafuso. 
[10] Ver, de Emília Viotti da Costa, “Da Monarquia a república” publicado pela Editora da Unesp em 2010 (9ª edição) p. 290-294.
[11] Percebendo que o regime escravista estava perto do fim, muitos fazendeiros procuravam reduzir suas perdas, reinventando formas de manter o trabalhador preso às suas fazendas. Logo alguns percebem que libertar o cativo, antes que a lei o fizesse, podia ser um bom negócio.  É o que vemos por exemplo, em uma carta escrita pelo fazendeiro paulista Paula Souza ao médico e político baiano Cézar Zama. Diz Souza, “tenho em minha família exemplos concretos. Meu irmão libertou todos [os negros escravizados] que possuía. Alguns destes saíram e foram procurar serviço longe. Oito dias depois me procuraram, ou a meu próprio irmão e acomodaram-se conosco, trazendo impressões desfavoráveis da vida de vagabundo que levaram durante esses oito dias. […] Como te disse, tenho com os meus ex-escravos o mesmo contrato que tinha com os colonos. Nada lhes dou: tudo lhes vendo, inclusive um vintém de couve ou leite! Compreendes que só faço isto para moralizar o trabalho, e para que eles compreendam que só podem contar consigo, e jamais por ganância”. Excertos de carta escrita em 19 de março de 1888, publicada no jornal A Província de São Paulo no mesmo ano e reproduzida por Florestan Fernandes em A integração no negro na sociedade de classes (Editora Globo, 2008, vol. I, p. 48-49)
[12] As altas taxas de mortalidade dos trabalhadores escravizados se explicam pela péssima condição de vida e pela dureza e precariedade do trabalho nas fazendas. Além disso, é valido registrar a existência de um número, para o qual há poucas estimativas, de negros escravizados que se alistaram para combaterem na Guerra do Paraguai (1864-1870) entusiasmados com a possibilidade de alforria, e não voltaram vivos. 
[13] O apoio às fugas de trabalhadores escravizados tornou-se prática comum de parcela do movimento abolicionista ao longo da década de 1880. Foi o caso dos Caifazes, liderado por Antonio Bento, em São Paulo. Ver em “Alencastro: abolição, manobra das elites”, disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/alencastro-abolicao-manobra-das-elites/
[14] “Foi o fazendeiro quem se libertou do escravo, e não o escravo quem, propriamente, se libertou do fazendeiro. A proposta da Abolição, em tese, não se destinava a remir o cativo, mas a dele libertar o capital, que se contorcia nas limitações, impedimentos e irracionalidades da escravidão.” José de Souza Martins, O cativeiro da terra (Contexto, 2010, pg. 227).
[15] “Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão”, samba-enredo do desfile de 1988, da GRES Estação Primeira de Mangueira. Composição de Hélio Turco, Jurandir e Alvinho.
[16] Referem-se a três dentre as dezenas de rebeliões transcorridas no período regencial do II Império, todas elas massacradas pelas forças militares imperiais: Cabanagem (Grão-Pará – 1835-1840), Balaiada (Maranhão, 1838-1841) e Sabinada (Bahia, 1837-1838).
[17] Ver, de Sidney Chalhoub, “Trabalho lar e botequim”, publicado pela Editora da Unicamp em 2012.
[18] Ver mais em “Quando a seca criou os ‘campos de concentração’ no sertão do Ceará”, disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/08/politica/1546980554_464677.html
[19] Ver o livro “Quarto de Despejo: diário de uma favelada” escrito pela catadora de papel e escritora Carolina Maria de Jesus, ao longo dos anos 1950 e publicado originalmente em 1960. Destaque para a passagem: “Despertei. Não adormeci mais. Comecei sentir fome. E quem está com fome não dorme. Quando Jesus disse para as mulheres de Jerusalém: – ‘Não chores por mim. Chorae por vós’ – suas palavras profetizava o governo do senhor Juscelino. Penado de agruras para o povo brasileiro. Penado que o pobre há de comer o que encontrar no lixo ou então dormir com fome” p. 134.
[20] O filme “Cabra marcado para morrer” (1984) de Eduardo Coutinho narra a morte do camponês João Pedro Teixeira, em 1962, com tiros de fuzil em suas costas no município de Sapé, na Paraíba. João Pedro era uma liderança camponesa local e foi morto a mando de fazendeiros envolvidos em conflitos agrários.  
[21] Era o que concluía, em 1970, Emílio G. Médici, terceiro presidente do regime militar que governou entre 1969 e 1974. Ver: http://memoria.bn.br/pdf/030015/per030015_1970_00285.pdf
[22] Ideia atribuída a Antonio Delfim Netto, economista que foi Ministro da Fazenda entre 1967 e 1974, durante o período do “Milagre Econômico”. 
[23] Ver “50 anos do AI-5: Os números por trás do ‘milagre econômico’ da ditadura no Brasil”, disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45960213.
[24] Ver Relatório final da Comissão Nacional da Verdade, disponível em: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_3_digital.pdf
[25] Ver mais em “O elo da Fiesp com o porão da ditadura” disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/o-elo-da-fiesp-com-porao-da-ditadura-7794152 e em “Volkswagen admite laços com a ditadura militar, mas falha ao não detalhar participação, diz pesquisador”, disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/15/politica/1513361742_096853.html
[26] Ver: Documento Fiesp “Livre para crescer: proposta para um Brasil moderno” (1990).
[27] Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, disponível em www.ipeadata.gov.br
[28] Ver mais na reportagem “Em 1990, miseráveis invadiam as grandes cidades do país” disponível em https://veja.abril.com.br/blog/reveja/em-1990-miseraveis-invadiam-as-grandes-cidades-do-pais/.
[29] Ver mais em https://www.acaodacidadania.com.br/nossa-historia
[30] “Diário de um detento” (1997), rap escrito por Pedro Paulo Soares Pereira (Mano Brown) e Josemir Prado, ex-detento do Carandiru. 
[31] Ver mais em “Sobrevivente do Carandiru: ‘Se a porta abrir, você vive. Se não, vou te executar’”, disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/06/14/politica/1497471277_080723.html.
[32] Ver mais em “Maioria de sobreviventes morreu, diz ativista, 25 anos após chacina”, disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-07/nao-consegui-salvar-aquelas-criancas-diz-ativista-25-apos-chacina
[33] Ver mais em “Sobrevivente da chacina de Vigário Geral diz que PM queria matar crianças”, disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/08/29/sobrevivente-da-chacina-de-vigario-geral-diz-que-pm-queria-matar-criancas.htm
[34] Ver mais em “Polícia massacra em Eldorado dos Carajás”, disponível em: http://memorialdademocracia.com.br/card/policia-massacra-em-eldorado-dos-carajas
[35] Ver a respeito “Necropolítica” de Achile Mbembe, publicado no Brasil pela N-1 edições em 2018.
[36] Necropolítica, Achille Mbembe (2018, p.53). 
[37] Ver mais em Comissão Pastoral da Terra, disponível em: https://www.cptnacional.org.br/component/jdownloads/send/5-assassinatos/14169-assassinatos-2019?Itemid=0
[38] Ver mais em Comissão Pastoral da Terra, disponível em: https://www.cptnacional.org.br/component/jdownloads/send/12-trabalho-escravo/14174-trabalho-escravo-2019?Itemid=0
[39] Ver a chacina envolvendo fiscais do Ministério do Trabalho, em 2004, na cidade de Unai/MG. https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2019/07/30/chacina-de-unai-apos-15-anos-justica-federal-mantem-condenacao-de-tres-mandantes-do-crime.ghtml
[40] Ver mais em “Genocídio de povo Guarani-Kaiowá no MS é incontestável, conclui missão do Parlamento Europeu e CDHM”, disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/genocidio-de-povo-guarani-kaiowa-no-ms-e-incontestavel-conclui-missao-do-parlamento-europeu-e-cdhm
[41]  Ver mais em “Portas abertas para a devastação do Brasil”, disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/o-campo-minado-da-fiscalizacao-ambiental/
[42] Ver mais em “A asfixia da Funai e o genocídio anunciado” de Karen Shiratori, disponível em:: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/05/08/opinion/1494269412_702204.html
[43]  Ver mais em “Bolsonaro sobre MST e MTST: ‘Invadiu, é chumbo’” , disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,bolsonaro-diz-que-e-melhor-perder-direitos-trabalhistas-que-o-emprego,70002317744
[44]  Ver mais em: http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019
[45] Chacinas como as ocorridas no Presídio de Pedrinhas/MA, em 2010 (18 mortos), em vários presídios no Ceará, em 2016 (14 mortos), na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo/RR (10 mortes), na Penitenciária Ênio dos Santos Pinheiro/RO, em 2016 (8 mortes), no Complexo Penitenciário Anísio Jobim/AM, em 2017 (60 mortes) e no Centro de Recuperação Regional de Altamira, em 2019 (57 mortes).
[46]  Ver mais em “Cabeças cortadas, corpos carbonizados – o que está por trás da violência extrema na guerra de facções”, disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49181204
[47] Ver mais em “Demografia Médica no Brasil 2018”, publicado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, disponível em: http://jornal.usp.br/wp-content/uploads/DemografiaMedica2018.pdf e em “Falta de médicos e de remédios: 10 grandes problemas da saúde brasileira”, disponível em: https://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=33176:uol-noticias-falta-de-medicos-e-de-remedios-10-grandes-problemas-da-saude-brasileira&catid=131:sem-categoria&directory=1.
[48] Ver mais em “Mortalidade infantil retorna com aumento das desigualdades sociais”, disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/mortalidade-infantil-retorna-com-aumento-das-desigualdades-sociais/
[49] Sobre isso ler mais em “Dentro do pesadelo” de Fernando Barros e Silva, disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/dentro-do-pesadelo-2/
 

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BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A EC 106

Henrique Braga
Gustavo Mello

Vamos para dois meses de isolamento social no Brasil em decorrência da pandemia da COVID-19. Em meados de maio já passamos de 11.000 mortes por essa doença. Nesse quadro de profunda crise de saúde pública, temos até o momento dois conjuntos de medidas econômicas anunciadas pelo governo. O primeiro conjunto engloba tanto a liberação da renda básica emergencial de 600 reais para trabalhadores precarizados (auxílio disponível para até duas pessoas por família ou 1.200 reais para mães solo)[1] quanto as medidas de suspensão do contrato de trabalho e de redução de jornadas e dos salários dos empregados formais do setor privado[2]. O segundo conjunto compreende  as medidas de socorro financeiro aos capitalistas – isto é, aos representantes do capital, cuja forma principal são as grandes corporações financeiro-produtivas, que articulam os representantes de menor volume de capital. De acordo com o Banco Central do Brasil, esse segundo grupo de medidas foram desenhadas para “oferecer as condições especiais para que as instituições financeiras possam rolar as dívidas dos setores afetados pela crise, monitorando os créditos que saírem do sistema financeiro, com o intuito de evitar eventuais contágios[3].”

Dentre elas, a medida mais recente é a Emenda Constitucional nº 106, promulgada pelo Congresso Nacional no dia 07 de maio deste ano. Popularmente chamada de “PEC do Orçamento de Guerra”, ela traz uma série de dispositivos para “liberar” a capacidade de gasto do Estado brasileiro. No que diz respeito à política monetária, chama a atenção o seguinte trecho:

Art. 7º O Banco Central do Brasil [BCB], limitado ao enfrentamento da calamidade pública nacional de que trata o art. 1º desta Emenda Constitucional, e com vigência e efeitos restritos ao período de sua duração, fica autorizado a comprar e a vender: 
I – títulos de emissão do Tesouro Nacional, nos mercados secundários local e internacional; e 
II – os ativos, em mercados secundários nacionais no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos, desde que, no momento da compra, tenham classificação em categoria de risco de crédito no mercado local equivalente a BB- ou superior, conferida por pelo menos 1 (uma) das 3 (três) maiores agências internacionais de classificação de risco, e preço de referência publicado por entidade do mercado financeiro acreditada pelo Banco Central do Brasil[4].

A compra de títulos financeiros por parte do BCB segue a linha da política monetária sugerida pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) em recente análise sobre as medidas econômicas necessárias ao enfrentamento da COVID-19[5]. Essa política econômica vem se somar àquelas medidas anunciadas em 23 de março deste ano, as quais liberariam, segundo o BCB, 1,2 trilhão de reais[6], por meio da redução das exigências de crédito em diversos segmentos e, a mais importante, liberação de “empréstimo com lastro em letras financeiras garantidas por operações de crédito” que poderiam chegar à soma de 670 bilhões de reais. Diante desse conjunto de medidas, cabe a pergunta: elas seriam suficientes para enfrentar a desarticulação da produção de mercadorias catalisada pelo isolamento social?

Para responder essa questão, devemos entender como funcionam as operações propostas pelo BCB. Para compreendermos a EC 106, devemos diferenciar os mercados primários dos mercados secundários de títulos financeiros. Enquanto no primeiro a negociação ocorre entre o emissor do título financeiro e seu comprador, perfazendo operações de emissão de novos títulos ou recompra de títulos já em circulação, o segundo comporta a negociação com títulos já emitidos, não envolvendo o seu emissor. Uma operação no mercado primário ocorre, por exemplo, quando o BCB negocia novos títulos públicos federais com os bancos privados (seus dealers), enquanto a negociação desses títulos entre os bancos e os demais “agentes econômicos” caracterizam uma operação no mercado secundário.

A partir da EC 106, o BCB poderá atuar no mercado secundário, do qual estava excluído até então. Neste caso, pode atuar não apenas comprando títulos financeiros de origem pública (I), mas também comprando tais títulos de origem privada (II). Uma operação desse tipo significa a monetização, por parte do Banco Central, das apostas sobre a produção e consumo futuros, de modo que as grandes corporações recuperarão apostas dadas como perdidas em seus balanços, aliviando aquelas em posições deficitárias. Por exemplo, as empresas detentoras de “a) debêntures não conversíveis em ações; b) cédulas de crédito imobiliário; c) certificados de recebíveis imobiliários; d) certificados de recebíveis do agronegócio; e) notas comerciais; e[/ou] f) cédulas de crédito bancário;[7] podem ter esses títulos comprados pelo Banco Central, pois todos são negociados em mercado secundário. Isso pode significar a recuperação de cerca de 1 trilhão de reais em “créditos podres”, que já estavam perdidos[8]

Pensando na recuperação da acumulação de capital, a fragilidade desse mecanismo está na monetização das dívidas sem exigir que os setores favorecidos aloquem esses recursos nos meios necessários para se enfrentar a crise econômica. Note-se, em particular, que não há qualquer mecanismo de garantia de que os pequenos e os médios capitais sejam beneficiados, e são justamente eles os responsáveis por empregar, formalmente ou não, os setores mais vulneráveis da força de trabalho brasileira. Além disso, também parece não haver qualquer garantia de que o conjunto do sistema produtivo será articulado para dar conta da produção e da distribuição dos suprimentos médicos, da atividade de pesquisa e dos meios de vida básicos. Tal tarefa, como já apontada neste espaço no começo desta crise[9], é incontornável nesse momento crítico que vivemos, que, ao que tudo indica, durará ainda alguns meses e cujos efeitos serão sentidos por anos na economia brasileira. 

Importa pontuar que essa forma de recuperação da acumulação de capital tem se mostrado insuficiente porque não há evidências de que as medidas adotadas em 23 de março estão surtindo o efeito previsto pelo BCB. Embora as concessões de crédito para pessoa jurídica tenham crescido em 60% no mês de março, saltando de 140,6 bilhões de reais para 224,9 bilhões de reais, há indícios variados de que as pequenas e médias empresas estão tendo dificuldades para tomarem empréstimo junto aos bancos privados. [10]Note-se, por exemplo, que dos 40 bilhões previstos para auxiliar os pequenos e médios capitais com o pagamento dos salários dos seus trabalhadores, apenas 1% foi liberado em decorrência do desenho equivocado da medida, e essa constatação é feita por diferentes grupos de empresários[11]. Com a situação econômica de incerteza quanto aos ganhos futuros dos capitais investidos, não surpreende tanto que as instituições financeiras preservem os recursos monetizados consigo, emperrando o circuito da acumulação de capital. Por isso, tem se mostrado um equívoco apostar tanto na acumulação de capital quanto na sua forma aleatória de alocação de recursos como meios para lidarmos com os efeitos da crise[12].

Do ponto de vista da política monetária, enfrentar a crise passa pelo uso dos bancos públicos disponíveis, sejam da União ou dos Estados, para financiar a produção e a distribuição dos meios imprescindíveis para superarmos uma das piores crises econômicas que enfrentaremos em nossa história. A EC 106 seria mais adequada para enfrentar a crise caso aplicasse, por exemplo, uma alíquota de 100% sobre as apostas monetizadas, utilizando esses recursos para financiar, por um lado, um amplo programa de crédito destinado ao pequeno e ao médio capital, a taxa de juros zero e com carência de pelo menos 12 meses para pagamento dos empréstimos. Por outro lado, caberia utilizar esses recursos para rearticular todos os setores da economia, promovendo a reconversão industrial e dos serviços – que não é feita do dia para noite, é bom lembrar –, em direção aos setores essenciais para enfrentarmos a pandemia. Isso sem descuidar da segurança dos trabalhadores e dos meios necessários às atividades de cuidado, higiene, alimentação e habitação. É evidente que esse conjunto de medidas teria como uma de suas tarefas fundamentais garantir renda e capacidade de consumo para os grandes contingentes da população que já perderam e que ainda irão perder seus empregos – formais e informais -e ter suas fontes de rendimentos comprometidas. Logo, a provisão de uma renda básica emergencial haveria de ser transformada em renda básica universal e seu valor elevado; por outro lado, teriam de ser desdobradas as políticas estatais de manutenção do emprego e suspensas as medidas que ensejaram cortes salariais e suspensão de contratos.

Nestes termos, o grande capital poderia contribuir, efetivamente, para amenizar os efeitos da crise, uma vez que teria seu poder de comando sobre trabalho direcionado para onde a sociedade necessita nesse momento, ao invés de terem assegurados o recebimento de seus direitos de propriedade sobre o futuro – um futuro no qual eles apostaram de modo tão deliberado quanto equivocado, e, por isso, deveriam ser os únicos responsáveis por sua situação[13]. Entretanto, a EC 106 e as medidas de 23 de março parecem cumprir outro papel. Elas estão a proporcionar às grandes corporações financeiro-produtivas[14] a segurança de que a crise será mais uma ótima oportunidade de negócios. A propósito, a declaração de Roberto Setubal, um dos donos do Banco Itaú, é cristalina a esse respeito: historicamente, diz ele, “o Itaú passou muito bem pelas crises. A gente comprou muitos bancos em momentos de crise[15]. Além do mais, tamanha segurança não deixa dúvidas de quem pagará pela crise, já que “O pico da doença já passou quando a gente analisa a classe média, classe média alta. O desafio é que o Brasil é um país com muita comunidade, muita favela, o que acaba dificultando o processo todo[16], palavras de Guilherme Benchimol, presidente e fundador da XP Investimentos.

Diante desse quadro, o pós-pandemia que se desenha desde agora não será apenas de luto pelos mortos por causa da COVID-19 e de desalento em razão do desemprego elevado e da recessão econômica. Também parece que o pós-pandemia comportará uma elevação da centralização dos capitais, um aumento das desigualdades que já vem avançando significativamente desde 2015[17], e um avanço das práticas de extermínio para aqueles que se mostram inúteis para o capital[18]. Nesse cenário, cabe reivindicar um outro futuro, no qual, dentre outras coisas, não devêssemos trabalhar continuamente mais para que outros, empenhados nas negociações de nosso trabalho futuro, tivessem seu modo de vida garantido. Talvez seja o caso de asseguramos outro modo de vida para nós, no qual a produção, a distribuição, a troca e o consumo garantissem um presente saudável. Vamos começar a pensar nesse futuro?

NOTAS


[1] MINISTÉRIO DA CIDADANIA. Auxílio de 600 reais.
Disponível em:
https://www.gov.br/cidadania/pt-br/servicos/auxilio-emergencial/auxilio-emergencial.
[2] PANDEMIA E PRECARIEDADE: A NATURALIZAÇÃO DOS DRAMAS SOCIAIS.
Disponível em:
https://blog.ufes.br/grupodeconjunturaufes/2020/04/20/607/.
[3] Medidas de combate aos efeitos da COVID-19. 23 mar. 2020.
Disponível em:
https://bit.ly/3alirHH.
[4] DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO. EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 106. 07 maio 2020.
Disponível em:
http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/emenda-constitucional-n-106-255941715
[5] COVID-19 Crisis Poses Threat to Financial Stability.
Disponível em:
https://bit.ly/2XNYHd5.
[6] Medidas de combate aos efeitos da COVID-19. 23 mar. 2020.
Disponível em:
https://bit.ly/3alirHH.
[7] Na primeira versão da EC 106, esses eram os ativos listados para compra. Ver: SENADO FEDERAL DO BRASIL. Proposta de Emenda à Constituição n° 10 de 2020. 17 abr. 2020. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8096966&ts=1588942429796&disposition=inline
[8] Ver: Retomada da economia pode destravar carteira de R$ 1 tri em ‘créditos podres’. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/economia/retomada-da-economia-pode-destravar-carteira-de-r-1-tri-em-creditos-podres/

PEC 10 Acoberta lavagem de trilhões de papéis podres acumulados há 15 anos nos bancos e você pagará a conta. Disponível em: https://auditoriacidada.org.br/conteudo/pec-10-acoberta-lavagem-de-trilhoes-de-papeis-podres-acumulados-a-15-anos-nos-bancos-e-voce-pagara-a-conta/

Ativos privados que BC pode comprar caso PEC seja aprovada somam R$ 972,9 bilhões
. Disponível em: https://www.moneytimes.com.br/ativos-privados-que-bc-pode-comprar-caso-pec-seja-aprovada-somam-r-9729-bilhoes/.

 [9] Nota sobre os impactos econômicos e sociais da COVID-19.
Disponível em:
https://blog.ufes.br/grupodeconjunturaufes/2020/04/02/nota-sobre-os-impactos-economicos-e-sociais-da-covid-19/ .
[10] O embate entre empresas e bancos pelo acesso ao crédito na crise. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/01/O-embate-entre-empresas-e-bancos-pelo-acesso-ao-cr%C3%A9dito-na-crise.
[11] Linha de crédito para o pagamento de salários tem só 1% liberado a empresas. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,linha-de-credito-para-o-pagamento-de-salarios-tem-so-1-liberado-a-empresas,70003296117.
[12] Salvando o PIB ou Vidas? Disponível em: http://brasildebate.com.br/salvando-o-pib-ou-vidas/.
[13] Nas palavras de Roberto Setubal: “[…] no capitalismo não tem garantia de retorno nem de estabilidade, é a vida”. Fonte: “Não dá para salvar todo mundo, alguns setores vão se ajustar”, diz Setubal.
Disponível em:
https://www.infomoney.com.br/negocios/nao-da-para-salvar-todo-mundo-alguns-setores-vao-se-ajustar-diz-setubal/.
[14] Lembremos que desde de meados dos anos de 1970, a grande empresa moderna tem sua produção, distribuição, troca e consumo articulados com o sistema financeiro internacional, de forma que a modificação de seu modelo produtivo para o “pronta entrega” com plantas espalhadas por todos o globo ocorreu porque pode movimentar livremente seu capital na forma monetária – em especial com as chamadas zonas offshore.
[15] “Não dá para salvar todo mundo, alguns setores vão se ajustar”, diz Setubal. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/negocios/nao-da-para-salvar-todo-mundo-alguns-setores-vao-se-ajustar-diz-setubal/.
[16] Pico de Covid-19 nas classes altas já passou; o desafio é que o Brasil tem muita favela, diz presidente da XP.
Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/brasil-esta-indo-bem-no-controle-do-coronavirus-e-pico-nas-classes-altas-ja-passou-diz-presidente-da-xp.shtml.
[17] Um país ainda mais desigual. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/um-pais-ainda-mais-desigual/.
[18] Pandemia democratizou poder de matar.
Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/pandemia-democratizou-poder-de-matar-diz-autor-da-teoria-da-necropolitica.shtml.

 

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O QUE ESPERAR DE 2021?

Fabrício Augusto de Oliveira

Um dos maiores desafios colocados pela crise do coronavírus no período pós-pandemia, tanto para os economistas como para os governantes, será o de definir as melhores políticas que devem ser seguidas para reerguer a economia e recuperar a capacidade do sistema econômico de recriar os empregos que foram varridos com o aniquilamento de empresas provocado pela paralisação de muitas atividades econômicas. Não será uma tarefa fácil. Isso porque, além do inevitável gradualismo com que deve se dar a retomada, à medida que a ameaça do vírus levará um bom tempo para ser afastada, impedindo a normalização completa de muitas atividades, muito capital terá sido queimado, empresas, principalmente as de pequeno e médio porte, fechadas, o investimento privado altamente enfraquecido, sem poder contar com incentivo diante de uma demanda agregada também desfalecida, dado o elevado nível de desemprego, da queda do nível de renda e com as finanças dos Estados no mundo, em geral, destroçadas e, também grave, com um considerável aumento da pobreza e da desigualdade.

Apesar do otimismo de muitas instituições que projetam uma forte recuperação da atividade econômica em 2021, não são pequenos os riscos de que o mundo poderá permanecer numa zona de baixo crescimento e muitos países mesmo em recessão mais prolongada, dependendo das políticas que forem eleitas para a retirada da economia deste atoleiro, num quadro em que todos os motores do crescimento se encontram seriamente danificados e desligados.

O FMI, por exemplo, projeta uma taxa de crescimento da economia mundial de 5,8% em 2021, com as economias avançadas crescendo 4,5%, a União Europeia 4,8%, a Zona do Euro 4,7% e as economias emergentes 6,6%. Países como os Estados Unidos, para o qual se prevê uma expansão de 4,7% no ano, Alemanha, de 5,1%, França, de 4,5%, Itália, de 4,8%, Espanha, de 4,3%, Reino Unido, de 4%, Japão, de 3%, China, de 9,2%, Índia, de 7,4%, e até mesmo o Brasil, de 2,9%, aparecem, com essas estatísticas, nessas projeções, para confirmar este otimismo, sugerindo que, já neste ano, ter-se-á saído do inferno da recessão de 2020 e recuperado boa parte das perdas provocadas pela crise do coronavírus. Mais otimista, ainda, a Comissão Europeia, prevê uma expansão da Zona do Euro de 6,3% em 2021, e expansão de 6,5% para o PIB da Itália, 7,4% para o da França, 7% para a Espanha, e 5,9% para a Alemanha, sob a hipótese de que o confinamento será flexibilizado gradualmente a partir de maio.

Essas projeções parecem ignorar, contudo, os estragos provocados pelo tsunami da pandemia sobre a economia, o emprego, o nível de renda e sobre o próprio capital, amparadas na hipótese que o retorno à normalidade econômica após a pandemia religará automaticamente todos os motores da vida econômica. Não é bem assim.  Ao contrário das crises cíclicas clássicas em que injeções de liquidez, acompanhadas de estímulos à demanda agregada reinjetam forças no sistema econômico, propiciando sua redecolagem, a crise atual, diante da paralisação quase completa de muitas atividades econômicas, deve produzir, como resultado, uma carnificina de muitas empresas, com faturamento em baixa, lucros em declínio e elevada capacidade ociosa, principalmente nos segmentos das de pequeno e médio porte, além de outras de grande porte mais afetadas, como as aéreas, por exemplo, que não terão condições de responder rapidamente à retomada até mesmo por falta de capital que, em alguma medida, deve ter simplesmente evaporado. Nessa situação, não se pode contar, como essas projeções sugerem, que o investimento privado esteja em condições de dar respostas rápidas à retomada num cenário dominado por grandes incertezas, escassez de capital, elevada capacidade ociosa e demanda enfraquecida.

O consumo, por outro lado, deve demorar a se reerguer depois dessa catástrofe. Primeiro, porque o desemprego deve aumentar consideravelmente no mundo em decorrência da crise. Os pedidos de seguro-desemprego nos Estados Unidos, que ultrapassaram os 30.000 até o final de abril, indicam que o mesmo poderá superar a casa dos 20% da força de trabalho no país, nível equivalente ou superior ao projetado para países da Zona do Euro, como Espanha (19%), Grécia (20%) ou menor, mas elevado, como na França (10%), Itália (12%) próximos ao da crise do subprime e da dívida soberana europeia que levaram anos para serem reduzidos.

Em segundo lugar, porque a renda dos trabalhadores sofreu uma brutal redução na crise, principalmente a dos trabalhadores informais que simplesmente viram cessar seus ganhos com o isolamento. No caso dos trabalhadores formais que conseguiram manter seus empregos, houve, em muitos casos, reduções de seus salários que foram compensados, parcialmente, por alguma complementação dada pelos governos, enquanto os que foram demitidos passaram a receber o seguro-desemprego, via de regra com um valor inferior ao salário. Em se tratando dos informais, estes tiveram de se contentar, onde isso ocorreu, com algum auxílio prestado pelo governo, para continuar apenas sobrevivendo.

É provável que essa situação deve ter minguado as poupanças dos que as possuíam e aumentado os níveis de endividamento e de inadimplência das famílias, como se constata em muitos pesquisas veiculadas, ampliando as incertezas sobre o futuro e diminuindo sua intenção de gastar, tendência que só pode ser revertida com a volta da confiança na economia. Pesquisa realizada no Brasil pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), encomendada ao Instituto FSB Pesquisa, confirma que 50% dos brasileiros tiveram perda total ou parcial de renda, o que levou a um expressivo aumento de seus níveis de endividamento e, por esse motivo, à maior prudência na intenção de retornar ao mesmo patamar de compras que fazia antes da crise, mesmo com a normalização da situação.

Não bastasse isso, o tranco dado na atividade produtiva, afetando o nível de ocupação principalmente dos trabalhadores informais e limitando a política de transferência de renda dos Estados para as classes mais vulneráveis, deve empurrar uma parcela não pequena da população para a condição de pobreza e de extrema pobreza. A Cepal projeta, para a América Latina e Caribe, um aumento de 30 milhões de pessoas que passariam, com a crise, a integrar estes contingentes na região. No Brasil, onde, segundo o IBGE, de acordo com os dados do módulo Rendimento de Todas as Fontes, da PNAD contínua, divulgada no dia 06 de maio, metade dos brasileiros sobrevivia, em 2019, com apenas R$ 438 mensais (R$ 15 por dia), a situação deve se agravar ainda mais, limitando até mesmo o consumo de produtos mais essenciais.

Os cenários desenhados para o comércio exterior são também desalentadores para amparar o otimismo de uma recuperação em níveis tão elevados em 2021, como apontam essas pesquisas. Em função das hipóteses assumidas sobre o tamanho da recessão mundial, que afeta a demanda e o preço dos produtos comercializados, do período previsto de isolamento e das restrições impostas aos meios de transportes em cada país por causa da crise, estima-se uma retração que varia entre 15% e mais de 30%, um nível superior a que se registrou na crise do subprime, prevendo-se uma recuperação de 7% a 12% em 2021, insuficiente para recuperar as perdas do ano anterior. Ou seja, não se vislumbra, nessas condições, contribuição importante deste componente da demanda agregada para sustentar as projeções otimistas sobre o crescimento em 2021, notadamente para os países exportadores de commodities, cujos preços, já baixos, desabaram na crise por falta de demanda.

Restaria, assim, apenas o Estado como agente em condições de dar o impulso necessário para reerguer a economia, por meio do aumento de seus gastos, financiados pela emissão de moeda ou de títulos da dívida pública, mas seus orçamentos se encontram destroçados, comprometidos com elevados déficits e níveis de endividamento muito além do que recomenda o pensamento ortodoxo, em virtude dos esforços realizados para salvar a economia desde a crise do subprime e, agora, do coronavírus,

Esse, o dilema colocado no momento para a teoria econômica, o que é simplesmente ignorado nas projeções de crescimento para 2021 feitas por essas instituições: como essas se baseiam em hipóteses equivocadas, considerando que as ondas da crise vão gradualmente se enfraquecendo e acionando automaticamente os motores do crescimento, basta deixar a economia seguir seu curso natural para a superação da crise, tratada apenas como um ponto fora da curva e não como um fenômeno novo, diferente de outras crises, que danificou toda a aparelhagem de funcionamento idealizado do sistema econômico.

Se prevalecer a proposta do pensamento ortodoxo de que no pós-epidemia o Estado deve voltar a preocupar-se em implementar sérias medidas de ajuste fiscal para reduzir seus níveis de endividamento, o que tem sido defendido também no Brasil pela equipe econômica do governo Bolsonaro, dificilmente essas projeções otimistas sobre o crescimento mundial em 2021  se materializarão, sendo mais provável que o mundo continue prisioneiro do baixo crescimento ou até mesmo da recessão em vários países por um bom tempo, já que não se removerão as forças a ele contrárias. Se, por outro lado, continuar concedendo-se ao Estado a liberdade para atuar nessa situação, mesmo aumentando ainda mais seu endividamento, como recomendaria Keynes e defende a Moderna Teoria da Moeda, aumentam as chances do mundo sair mais rapidamente dessa crise, adiando a definição para o futuro de como essa conta será paga. Mas essa é outra questão.

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“O neoliberalismo como ideologia e política econômica não deverá entrar em colapso”. ENTREVISTA COM PAULO NAKATANI

Por Gustavo Mello e Henrique Braga

Professor titular do Departamento de Economia da UFES, Paulo Nakatani comenta, na entrevista a seguir, sobre os desdobramentos socioeconômicos da crise da sociedade capitalista, acelerada pela pandemia do COVID-19. Em especial, o professor chama a atenção, por um lado, para as medidas “draconianas”, que já estavam em curso e serão intensificadas, de piora das condições de trabalho, da redução dos salários e do flagelo do desemprego.  Por outro, para o papel do Estado que atua para salvar a acumulação de capital, explicitando sua “unidade orgânica” com esse último.  

  1. À luz das contradições do capitalismo contemporâneo gostaríamos que você analisasse a relação entre a pandemia de Covid-19 e a profunda crise econômica mundial que ela inaugura.

Essa pandemia surgiu em um contexto em que o capitalismo contemporâneo se encontra mundializado, em um estágio de superacumulação de capital que se concentra na esfera financeira e acumulando-se principalmente em diferentes formas fictícias. Além disso, a concentração da riqueza e da renda em escala mundial, e particularmente no Brasil, chegou a um estágio extremamente elevado, constituindo sociedades nas quais uma parcela importante de suas populações são desnecessárias, supérfluas, para a reprodução do capital, tanto como força de trabalho quanto como mercado consumidor. Temos, então, como consequência, a enorme pressão ao aumento da taxa de exploração da força de trabalho, pela desregulação das relações de trabalho, sua precarização e a destruição das instituições, das políticas e programas sociais.

A crise de 2007-2008 apareceu como se fosse uma crise financeira, com a desvalorização maciça do capital monetário portador de juros em suas diferentes formas fictícias. Mas, a rigor, teve seu fundamento no mercado imobiliário (construção e venda de novos imóveis) dos Estados Unidos, quando as famílias mais pobres não conseguiram mais manter o pagamento das prestações dos financiamentos que haviam contratado, devido ao aumento da taxa de juros. A resposta à crise foi uma brutal intervenção do Estado através dos bancos centrais, o Federal Reserve nos EUA, o Banco Central Europeu, o Banco da Inglaterra, o Banco do Japão, que se destacaram pela política de facilidades monetárias (quantitative easing) com a maciça criação monetária para o resgate de capitais particulares, bancos e empresas diversas e a redução das taxas básicas de juros, geralmente negativas em termos reais. Essa intervenção possibilitou a retomada de atividades produtivas e a recuperação das formas fictícias do capital monetário portador de juros, em poucos anos. Um dos resultados foi a conversão de parcelas do capital fictício na forma da dívida pública. Os impactos dessa crise espalharam-se por todo o mundo e se estenderam no tempo, e algumas economias se mantiveram, em média, relativamente estagnadas, até este ano de 2020. Sem contar que, nos países mais avançados, a reprodução do capital em geral estava necessitando de uma nova rodada de desvalorização, que vinha sendo anunciada por  muitos estudiosos.

A eclosão da pandemia de Covid-19 surgiu nesse contexto de uma nova crise potencial que ainda estava latente, adicionando novas variáveis. 

A primeira variável foi a busca de manutenção da legitimidade dos governos que deviam, ou deveriam, atender às necessidades sanitárias e de saúde da população, pois, em termos concretos, se refere à própria possibilidade de morte de centenas e milhares de pessoas. Para tanto, os diferentes governos, em diferentes momentos, decretaram o confinamento mais ou menos maciço da população, e alguns mais outros menos, o controle e o bloqueio de viagens, tanto internas quanto internacionais. Em primeiro lugar, esta medida interrompeu o fluxo e o movimento do capital nas atividades de comércio, de serviços não essenciais e parte da produção material. Em segundo, bloqueou a circulação do capital em suas formas autonomizadas de capital comercial, capital monetário e capital produtivo. Este bloqueio, tem como consequência a suspensão de atividades de produção de valor e mais valia, de realização, ou venda, das mercadorias produzidas e o desemprego em massa dos trabalhadores.

A segunda variável foi a demonstração efetiva de que as sociedades submetidas ao modo de produção capitalista não têm como objetivo as necessidades humanas, mas a própria reprodução do capital. Se aceitamos que as determinações de confinamento são mais adequadas à redução das mortes, uma parcela daqueles que são contrários estão se manifestando por todas as partes. O retorno dos trabalhadores para a produção de valor e mais valia é mais importante do que a vida de uma parte da população.

  1. Diante do colapso da produção e dos mercados financeiros pelo mundo afora, criou-se um pretenso consenso em torno da necessidade da intervenção do Estado, com vistas a minimizar os efeitos da crise e reduzir sua duração. Como você avalia o sentido geral das medidas estatais que estão sendo implementadas? Com base na experiência histórica recente é possível especular sobre seus efeitos de curto e médio prazo?

O debate a favor ou contrário à intervenção do Estado na economia refere-se ao campo da economia burguesa, entre ortodoxos e heterodoxos. Seu fundamento é a separação entre a esfera da economia e da política ou do público e privado. Para os marxistas, Estado e Capital constituem uma unidade orgânica e não tem sentido discutir se a intervenção é necessária ou não, a não ser ao nível da aparência. A gênese das diferentes formações econômico-sociais capitalistas, a formação do Estado capitalista e o desenvolvimento das relações capitalistas de produção e das classes sociais fundamentais ocorreram ao mesmo tempo.

As ações estatais sobre as unidades particulares de capital, no curso das crises, foram sendo desenvolvidas historicamente, com teorias, modelos e instrumentos, em particular a partir da grande depressão dos anos 1930. Assim, as medidas de política econômica resolvem em parte as contradições próprias ao capital em geral através de medidas voltadas a certas unidades particulares do capital, mas engendram novas contradições. Dessa maneira, no período entre o final da Segunda Guerra Mundial e a década de 1970, conhecido como os anos dourados, o sistema mundial foi relativamente regulado e controlado pelo Estado. Foi um período também chamado de economia mista, em que aparentemente as crises haviam sido superadas. Entretanto, o capitalismo não deixou de funcionar de forma cíclica, e as elevadas taxas de crescimento deveram-se fundamentalmente à reconstrução dos capitais após a maciça destruição física dos capitais e da riqueza acumulada antes da guerra, principalmente da Europa e Japão, e à gigantesca destruição da força de trabalho.

As medidas de política econômica adotas na crise atual são condicionadas pelas condições atuais da acumulação capitalista, além dela estar sendo diagnosticada como uma crise sanitária. Por um lado, observamos novamente a ação estatal voltada para o sistema de crédito, em particular a criação de moeda, o quantitative easing, para reduzir a destruição do capital em suas formas fictícias, o mercado acionário e de dívidas privadas, e para preencher os espaços na circulação dos capitais particulares, através do crédito a taxas de juros reduzidas ou subsidiadas e da manutenção de uma parte da renda dos trabalhadores. Por outro lado, a caracterização da crise como uma crise sanitária, traz como fator de legitimação a suposta ajuda aos pobres.

No curto prazo, as medidas de política econômica deverão amenizar o impacto da crise do capital. Deve reduzir a destruição das unidades particulares de capital e amenizar os efeitos dos bloqueios e supressão de parte das cadeias produtivas. No longo prazo, tanto a concentração do capital anteriormente existente, quanto as desigualdades na distribuição da riqueza e da renda não serão reduzidas, ao contrário pode tornar-se ainda mais aguda. Isso porque a gigantescas unidades particulares de capital, as grandes corporações, têm recursos acumulados que não só permitem que se mantenham como tendem a receber mais benefícios das políticas econômicas. Mas, as micro, pequenas e médias unidades de capital deverão sofrer mais intensamente os impactos da crise, muitas destas unidades deverão desaparecer ou passar por um novo processo de centralização. 

  1. O que essas medidas estatais revelam sobre a relação entre Estado e economia?

Elas revelam a unidade orgânica entre Estado e Capital. Revelam, igualmente, que a gestão do capital e da força de trabalho são realizadas por grupos e instituições estatais que não têm conhecimento das determinações fundamentais do modo capitalista de produção. Mas essas determinações fundamentais aparecem mediadas pelo processo histórico que produziu em cada sociedade uma relação conjuntural de forças entre as classes sociais e pelas diferentes formas de comportamento, sejam elas solidárias ou egoístas. Esses comportamentos aparecem, tanto no tratamento médico imediato da parcela da população infectada pelo vírus, quanto nas mais diversas ações de apoio e distribuição de doações aos mais necessitados. Aparecem, também, no comportamento da parcela que defende seu capital particular, suas rendas individuais e as formas e padrões de vida mais sofisticados da sociedade de consumo capitalista.

  1. Você considera que estamos diante do colapso do neoliberalismo? E, nesse caso, parece plausível uma espécie de revitalização do keynesianismo e do Estado de bem-estar social?

O neoliberalismo como ideologia e política econômica não deverá entrar em colapso. Isso porque respondem às necessidades do capital no estágio atual do capitalismo. O neoliberalismo não significa uma oposição à chamada intervenção estatal, sempre que necessário, há intervenção estatal para salvar capitais particulares em momentos de crise. O neoliberalismo significa que a forma e os instrumentos de intervenção foram modificados. As desregulamentações, chamadas de três D (desregulamentação, desintermediação e descompartimentalização) exigiram uma profunda e feroz intervenção estatal, que não serão revertidas, pois significariam amarras e limites à exploração capitalista.

O keynesianismo e o Estado de bem-estar social foram desenvolvidos em um momento particular da história, a reconstrução do pós-guerra na segunda metade do século XX. Por um lado, pelas necessidades da própria acumulação de capital e por outro, pela aguda luta de classes no pós-guerra, combinada com a necessidade de recuperação da força de trabalho destruída durante a guerra. Ao contrário do que foi muito disseminado, os sucessos dos anos dourados do pós-guerra não foi, a rigor, resultado de políticas econômicas keynesianas, mas à retomada da acumulação de capital determinado pelas condições concretas da reconstrução no período.

Para o capital, o bem-estar das classes trabalhadoras não tem nenhuma importância, salvo quando, no plano concreto, as condições de vida destas classes possam leva-las até uma situação de desobediência civil e insurreição. No momento atual, as frações de classe mais extremadas defendem condições para acabar com o bem-estar das classes trabalhadoras, isso quando não defendem políticas para exterminá-las.

A ideia de uma revitalização do keynesianismo encontra muitos problemas. É comum atribuir esse adjetivo à uma política de gastos públicos, com déficits orçamentários, que trariam benefícios à classe trabalhadora. Considero que esse ponto de vista é um equívoco. Os diferentes governos, nas condições atuais da crise do capital, aguçada pelo novo coronavírus, estão efetuando gastos públicos para atender à conjuntura particular da disseminação do vírus. Muitos poderão desmontar o sistema criado especialmente para atender aos imperativos da acelerada infecção de enormes massas populacionais em busca de uma legitimidade, mesmo que não tenham nenhuma noção desta busca. Ademais, o keynesianismo, de Keynes, nunca avançou no sentido de realmente superar as condições subalternas da classe trabalhadora. Keynes esperava que o mercado, comandado pelos capitais, atingisse um estágio do que poderíamos chamar de capitalismo bonzinho, que reduzisse a jornada de trabalho e criasse um tempo livre para as pessoas. Não tinha ideia do que isso era para os trabalhadores, pois exemplifica com as madames de seu círculo pessoal.

  1. Estaríamos, ao contrário, diante de limites intransponíveis do próprio capitalismo? Nesse caso, quais as perspectivas que se abrem?

Não estamos em limites intransponíveis para o capitalismo. A unidade Estado e Capital deverá propiciar as condições de reprodução ampliada do capital, em particular em suas formas fictícias e acentuar a exploração da força de trabalho. É a maior parte da sociedade que deve estabelecer os limites ao capital. Infelizmente não é o que se observa no momento. Do ponto de vista da sociedade e da maioria da população mundial, o capitalismo já atingiu seus limites há décadas e deveria ser superado por uma nova forma de organização social.

Infelizmente, considero que as perspectivas que se abrem não são muito animadoras, se acompanhamos análises e interpretações sobre a crise atual. Uma parte importante de analistas e intelectuais não estão colocando a questão da superação do capitalismo. Aliás, esta questão não é necessariamente aquela que responde aos interesses das grandes massas de trabalhadores. Além disso, massas gigantescas de trabalhadores estão se defrontando com o desemprego e desaparição das possibilidades de obtenção de alguma forma de renda em todas as atividades chamadas ou de informais ou eufemisticamente de empreendedorismo.

Em termos do capitalismo, é mais um momento de uma crise extremamente grave no movimento cíclico do capital. Mas não representa, necessariamente uma situação intransponível para o capital. Os diferentes governos estão atuando, não só com respostas à crise sanitária, mas com ações para a recuperação e reconstituição do capital em geral e das principais unidades particulares. Esta crise está permitindo que, para a reprodução do capital, mais medidas draconianas de repressão aos trabalhadores, de redução de suas condições de vida e a supressão de muitas décadas de vitórias nas relações trabalhistas estejam sendo efetivamente pulverizadas em curtíssimo prazo.

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UM VÍRUS ENTRE DUAS CRISES

*Texto publicado no blog da Revista Espaço Acadêmico

Fábio Campos¹

“Today, tomorrow, and yesterday, too
The flowers are dyin’ like all things do”
Bob Dylan 

A pandemia do coronavírus nos deslocou repentinamente para um estado de choque e desterro típicos de guerra, em que o uso da palavra colapso passou a ser difundido de maneira deliberada. Poucas vezes na história recente, ou de nossas gerações, presenciamos algo com tamanha gravidade no sentido dos acontecimentos, daí o senso comum procurar significados no passado, sejam no espectro sanitário como a Peste Negra (1347-1353) e a Gripe Espanhola (1918-1920); sejam na economia e suas implicações sociopolíticas como na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), ou nas Crises de 1929, 1973 e 2008. Do ponto de vista pessoal, de uma hora para outra, nos vimos confinados em nossos lares diante de inúmeras incertezas, inclusive em relação à própria sobrevivência. Porém, em muitos meios educacionais buscam-se manter a normalidade na forma de ensino à distância implementado às pressas, quando um abismo existencial se abre abaixo de nossos pés. Em outros, tentam manter a engrenagem da produção e dos serviços por desumanas formas de transporte, home office e delivery. Ao embalarem-se por “ressignificações”, “simbolismos”, “subjetividades”, “novas narrativas”, “pós-isso ou pós-aquilo”, também os modismos do pensamento neoliberal denotam ainda o elevado nível de alienação que nos acomete diante das desventuras do capital.

Em sintonia com a diária contagem de cadáveres e do falecimento da produção e do consumo capitalista que impõe uma explosão planetária do desemprego e da precarização da vida dos mais miseráveis, estamos no Brasil sob a vigência de um governo que significa a última geração na gestão do neoliberalismo, ao desconhecer qualquer escrúpulo de representação democrática burguesa em nome da manutenção dos mais variados negócios das classes dominantes que o apoiam. Na pior crise sanitária do século, temos a mais atroz representação governamental brasileira da classe dominante, o que denota a intersecção de dois vetores da mesma realidade: os limites civilizacionais do modo de produção capitalista e sua expressão universal bárbara com a experiência brasileira.

Antes do vírus, no entanto, já havia a combinação de duas crises em nossa regressão civilizacional. Por de trás de duvidosas projeções de crescimento da economia e do comércio mundial, mesmo diante de uma massa de capital fictício que nem o solavanco de 2008 fez parar de crescer, ou da disputa sino-estadunidense pela hegemonia financeira, energética e militar, o capital estava e está sob o curso de uma estrutural crise. O Brasil se insere como parte dela apresentando suas dimensões idiossincráticas que dizem respeito, sobretudo, ao colapso de sua formação nacional definido por algumas décadas, cuja estagnação econômica de quase meio século reflete somente a face mais aparente do problema. 

O arsenal de controle capitalista que sempre encontrou no Estado proteção monetária para casos extremos de fricções e crises, bem como impôs o policiamento regular de insurgentes via meios militares que se viabilizavam por enormes financiamentos, se vê confrontado por um vírus que desafia as vidas humanas espelhando os baixos investimentos em saúde pública, até mesmo nos mais cobiçados estilos de desenvolvimento do planeta. Simultaneamente se descortinam o desespero mundial por materiais médicos de toda complexidade para a sobrevivência de seus povos, que como numa guerra, cai o véu legalista burguês, exprimindo a disputa imperialista, agora, por exemplo, para interceptar o comércio de ventiladores respiratórios. Está a caminho a revelação capitalista eclipsada pelo pensamento mágico burguês: uma economia de abundância em bens supérfluos, como smartfones de última geração na casa dos bilhões de aparelhos consumidos no mundo, e a ausência de abastecimento regular de materiais hospitalares para enfrentar a crise sanitária.

No espaço neocolonial brasileiro, cuja rotina em breve estará mais próxima das sesmarias do século XVII, também o vírus evidenciou para os incautos qual é a genética de nossa classe dominante concebida no mando da escravaria. Em meio a uma tentativa precária e mal formulada de estratégia de isolamento social para conter a pandemia, setores da burguesia brasileira, desde o agropecuário, industrial, passando pelo comércio, financeiro, até os “milicianos-espirituais”, desafiam qualquer racionalidade que possa converter parte de nossa tragédia anunciada em algo menos penoso. Enquanto classe dominante de uma formação nacional destroçada na qual nem a economia, nem a política, pode apresentar móveis seguros de reprodução social, o gerenciamento da anomia se impõe pela necessidade de ampliação da alienação, violência e repressão, metamorfoseando política pública em projeto de holocausto. O foco genocida se volta para as camadas sociais mais vulneráveis que estão nas modernas senzalas das periferias brasileiras dos grandes centros, ou nas cercanias desassistidas de nossos sertões. Aqueles hereges que em maior ou menor intensidade porventura venham a denunciar tal calamidade, também poderão ser enquadrados como comunistas, aptos, dessa forma, a integrar o “grupo de risco” junto dos demais miseráveis infectados ou não.

Desse modo, a despeito do vírus ser biologicamente uma casualidade imperativa da natureza, sua compreensão enquanto pandemia social só pode ser dimensionada na linha histórica do tempo com suas contradições seculares. Mundialmente, o vírus se insere em uma crise particular que, de um comportamento cíclico de reprodução ampliada do capital que vinha desde o século XIX, intermediado por expansão e recessão, tornou-se, no último quartel do século XX até hoje permanente, estrutural. Do ponto de vista econômico, não obstante alguns picos de crescimento do PIB, ou da especialização manufatureira chinesa na nova divisão internacional do trabalho, uma estagnação econômica se colocava de forma perene, em que as gigantescas capacidades ociosas das corporações se combinavam com a produção de mais-valor por meios inéditos e pretéritos de exploração da força de trabalho. Esse mais-valor garantia e garante a crescente apropriação, desde a simples remuneração de lucros, até à fetichizada seiva financeira de juros e dividendos que brota dos retornos líquidos do capital fictício. Diferente de antes, entretanto, em que havia um caráter cíclico de reciclagem econômica da crise, ou seja, queima e nova criação de capital, a partir dos anos 1970 ela se transmutou em uma crise regular, em que a produção e apropriação para assegurar, respectivamente, geração e circulação de mais-valor, dependem igualmente da destruição incessante do mercado da força de trabalho, da natureza e do gênero humano. 

A crise do capital, portanto, não pode ser subnotificada, porque o nível de letalidade é de tal ordem que acomete as engrenagens econômicas e políticas do sistema diante de uma transnacionalização do capital que subordinou os sistemas econômicos nacionais ao seu império de retroalimentação. O modo de produção se converteu em modo de exportação da morte em todas as dimensões da existência: economia, política, cultura, arte, religião, direito, meio-digital, clima, natureza e genética. Do ponto de vista de sua superestrutura, a origem do pandemônio capitalista se forjou na mutação imperialista desde o fim do século XIX em que duas guerras mundiais no século XX pariram um poderoso complexo industrial militar lastreado no capital financeiro, sendo a corporação transnacional a plataforma dessa força. Nasceu desse marco uma contrarrevolução mundial que funcionaria como uma superestrutura de controle, cooptação e opressão, no exato momento que potencialmente o fim absoluto da humanidade seria decretado pela corrida nuclear. Tamanho choque à modernidade permitiu por um tempo exímio coexistir socialdemocracia nas economias centrais capitalistas, mesmo à custa das reservas coloniais e neocoloniais; por outro lado, concedeu um certo prazo de validade para o “socialismo real” que não passava de um burocratismo capitalista soviético; assim como cedeu para alguns países subdesenvolvidos a oportunidade de industrialização, ainda que sob dominação do capital internacional. A serviço da oligarquia do capital financeiro e das inovações tecnológicas desenvolvidas em teatros de guerra, a conversão do controle social do capital em uma racionalidade neoliberal nas economias centrais transformou o socialismo soviético em um gangsterismo capitalista, bem como transpôs alguns processos de industrialização periférica em reversão neocolonial.

Como não poderia deixar de ser, um país como o Brasil, secularmente doente por sua dependência externa e segregação, e, com ideias necrosadas pelo nosso desarmado e desdentado pensamento social, se insere nessa crise do capital contribuindo com sua própria variante: uma crise de formação como nação – num sentido mais básico que se possa entender, ou seja, o de preservar vidas em um território historicamente delimitado ante as pragas biológicas, bélicas, econômicas, tecnológicas e sociais que possam proliferar. Nessa crise estrutural do capital, em que se pronuncia a nossa crise de formação, faz com que o Brasil se integre globalmente pelo seu maior diferencial estratégico de barbárie: a herança escravocrata. Desde o momento em que se tentou e não conseguiu conciliar nos termos da domesticação capitalista: soberania, igualdade social e democracia com o Golpe de 1964, ficou clarividente que emancipação nacional e capitalismo não andam juntos por aqui. 

Mesmo que a industrialização se mantivesse por um tempo com a ditadura, e a burguesia brasileira pudesse legitimar sua dominação política à custa de um crescimento econômico expressivo, a conexão da nossa estrutura econômica e social com o processo de transnacionalização estava sendo fecundada, pois parte da crise do capital já estava sendo precocemente assimilada em nossa vida econômica diante do elevado nível de subordinação ao capital internacional. Tão logo a indústria deixou de ser o principal negócio e passou a ser a inflação para o capital internacional e seus sócios nativos, ou a ditadura se converteu em democracia restrita; tanto a formação econômica do Brasil colapsou, quanto um aparelho contrarrevolucionário poderia subsistir sem a subcontratação militar, mantendo até um certo verniz de “cidadania” com a Constituição de 1988. Depois da violenta crise da dívida externa e sua reciclagem que fizeram do desenvolvimentismo um moribundo, nos anos 1990 em diante, foi quando o Brasil estava pronto para se submeter integralmente ao novo padrão mundial de acumulação nascido com a crise dos anos 1970. Adaptado, por assim dizer, para desindustrializar e reprimarizar sua economia, bem como impor uma regressão ocupacional do emprego formal, tal qual praticar uma saturação do pacto federativo diante da disputa fiscal, ou ainda, catalisar a depredação ambiental em favor do complexo agromineral e pecuário. Sem falar, do aprisionamento do pensamento social a uma estrutura especializada e burocratizada, que aparece nos partidos, atravessa os sindicatos, e, acomete as universidades. Com isso, a contrarrevolução cumpriu por aqui seu desiderato: i)- uma formação econômica do país implodida diante de um controle imperialista maior; ii)- grande parte da população e da natureza submetida à destruição; iii)- e, a incapacidade coletiva de sequer imaginar uma transformação radical por meio da revolução brasileira.

Como representante local de interesses transnacionais que encarnam o capital nesta crise, nossa burguesia pode se inserir oferecendo o que há de mais avançado na extração de riquezas e repressão social que é o nosso passado, passado violento, mercantil, portanto, colonial, que nunca foi superado. Negócios internacionais poderão ser realizados aqui das formas mais espúrias, tanto na produção e circulação de mais-valor, assim como em relações de trabalho que serão crescentemente estabelecidas por renovadas formas de escravidão, estando as camadas populares, supérfluas, famintas e indignadas, destinadas à morte com a ajuda da Covid-19. Nossa imunização só terá efeito duradouro se conseguirmos reabilitar a única vacina inventada pela humanidade contra a peste da opressão – hoje imposta pelo capital, que é a revolução; caso contrário, o vírus ajudará as duas crises interconectadas destruírem todas as flores que restam, tal como o poeta acima ilustra.


¹ Professor e coordenador da pós graduação na área de História Econômica do Instituto de Economia da Unicamp e membro do IBEC.
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EDUCAÇÃO PÓS-PANDEMIA E URGÊNCIA DE UMA NOVA DIREÇÃO

Profa Neide César Vargas
Departamento de Economia/UFES

Até fins de 2019 não se imaginava que a COVID-19 pudesse se transformar numa pandemia, disseminando-se pelo mundo inteiro. Mesmo em 30 de janeiro, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a doença como sendo uma emergência de saúde pública de preocupação internacional[1], não houve grandes mudanças de rumo na maioria dos países. As ações governamentais inicialmente foram tímidas, condicionando os aspectos de saúde pública aos imperativos econômicos, deixando de seguir as recomendações relevantes da OMS já claras desde janeiro. Alguns países inclusive escolheram atacar a OMS, retirando-lhe autoridade e seguindo com políticas de manter tudo funcionando, numa linha de darwinismo social.

Mudanças importantes ocorreram a partir de inicio de março de 2020, com o espraiamento da doença, a consideração da OMS de que a COVID-19 já havia se transformado numa pandemia[2] e o aparecimento de estudos contundentes indicando a necessidade de isolamento social[3]. Desde então, países como EUA e UK passaram a alterar as suas estratégias de enfrentamento da questão. O novo contexto denotou os limites da atuação segundo a lógica do mercado e fortaleceu a adoção de medidas associadas às prerrogativas do Estado Soberano. De acordo com Dardot e Laval (2020)[4] elas englobam a imposição governamental de disciplina e controle social somada à atuação independente e mesmo competitiva em relação ao exterior. Em alguns países, à atuação competitiva entre Estados Nacionais, disputando insumos e equipamentos médicos, se soma uma acirrada disputa interna entre governos centrais e subnacionais por equipamentos e por ganhos políticos com o desenlace da doença, como vem ocorrendo nos EUA e no Brasil. 

A via da intervenção governamental, a despeito de ser a única conhecida e ser de mais fácil e rápido acionamento, parece insuficiente para lidar de maneira sustentável com a questão e seus desdobramentos. O momento sinaliza que a cooperação internacional e as ações globais são caminhos essenciais. O simples retorno do Estado intervencionista por meio dos vultosos créditos e dos gastos públicos envolvidos com socorro de empresas, de bancos e, em menor volume – de pessoas, são apenas medidas de curto prazo. Aprendemos com a crise de 2008 que a alta conta será posteriormente repassada, por meio da dívida pública, ao desmonte da própria estrutura do Estado e aos segmentos mais frágeis da sociedade. 

Adicionalmente, apostar todas as fichas nos Estados Nacionais, quaisquer que sejam as suas ações, tende a intensificar o isolacionismo dos países e a xenofobia, em certos casos alimentando visões políticas conspiratórias, que buscam bodes expiatórios em inimigos internos e externos para justificar os já esperados graves impactos que ocorrerão em termos de perdas de vidas bem como do ponto de vista econômico e social. Também por essa via a intensificação do uso de mecanismos eletrônicos para controle dos indivíduos coloca poderes imensuráveis nas mãos de governos cuja lógica de atuação está longe de ser o bem comum.

A racionalidade neoliberal consolidada nas últimas cinco décadas atingiu amplas esferas da existência humana, moldando o conteúdo e a forma de atuação dos governos, empresas e pessoas[5]. Imprimiu uma lógica de curto prazo generalizada, intensificando a concorrência nas organizações e entre sujeitos. Ampliou-se a interdependência econômica entre países ao mesmo tempo minimizando na agenda dos mesmos as questões atinentes ao bem estar social e aos riscos globais do modelo de sociedade. 

Conforme Dardot e Laval (2020), a pandemia em curso, apesar de afetar a solidariedade social no seu sentido mais básico, não representa o fim do Neoliberalismo e de sua lógica, como alguns tem preconizado. Ela apenas explicita as questões de fundo, obrigando empresas, governos e pessoas a mudarem, que seja no curto prazo, a forma como operam. De qualquer modo, enseja uma oportunidade para refletirmos acerca dos limites do modelo de sociedade que conhecemos, incapaz de garantir adequadamente e a todos, a provisão de serviços públicos básicos como a saúde e a educação. Os serviços públicos, de acordo com os mesmos autores, tendem a ser insuficientemente atendidos sob o princípio da soberania dos Estados. Por se guiarem pelo princípio da solidariedade social a sua dimensão pública não se vincula necessariamente a amplificação do poder do Estado ou a uma aposta anacrônica na sua provisão como um favor do Estado.

Considerando também a hipótese mais provável de não ocorrer significativa reversão da mundialização financeira e produtiva, a sua própria extensão, o significativo fluxo de bens, serviços, capital e de pessoas, faz com que a chance de ocorrência de novas pandemias se amplie. Esse é mais um fator a exigir uma nova direção global e sustentável para a provisão de serviços públicos básicos como a saúde, não redutível a saídas estritamente nacionais e de cunho estatal. 

Não obstante, o que temos visto na prática mundial é o protagonismo do Estado Soberano, inclusive nos países que escolheram adotar medidas menos enérgicas. Dentre o leque de medidas de controle governamental aparecem os diferentes graus de isolamento social, envolvendo fechamento de escolas e de locais de trabalho. Não se questiona, neste texto, a eficiência dessas medidas governamentais e de curto prazo para minimizar a disseminação da doença, fato comprovado pela experiência dos países que já passaram por fases mais agudas da epidemia bem como por estudos recentes[6]

O objetivo deste texto é, tomando o fechamento das escolas como um dado, identificar algumas contradições já em curso na Educação e o seu acirramento com a adoção dessa medida, favorecendo um aprofundamento do direcionamento segundo a lógica do mercado e da concorrência. No que tange ao curto prazo destacaremos três frentes de manifestação: a relação entre o perfil socioeconômico das famílias e o fechamento de escolas/faculdades/universidades; a relação das organizações ligadas à educação (governamentais e privadas) entre si e delas junto aos professores; e, particularmente, os impactos do fechamento de escolas sobre os mecanismos usuais de pesquisa científica. A partir dessas frentes, serão esboçadas possíveis tendências de longo prazo, cujo desenlace numa direção diferente da mais provável depende do perfil de atuação e da capacidade de mobilização dos movimentos sociais e militantes pró-educação.

Estimativas da UNESCO indicam que no ponto máximo, em 25 de abril de 2020, perto de 1,7 bilhão de estudantes, da pré-escola ao ensino superior, tinham sido afetados pelo fechamento de escolas em função das políticas de isolamento social adotadas pelos governos. Para termos uma noção da generalização dessa medida pelo mundo a mesma fonte nos mostra que ela chegou a abarcar 90,2% dos estudantes e 191 países. Não as adotou apenas a Bielorússia, o Cazaquistão e o Turcomenistão e os casos de adoção localizada também foram poucos: os EUA, a Rússia, a Austrália e a Groelândia. A China reverteu recentemente sua posição para um fechamento localizado. No Brasil, envolve quase 53 milhões de estudantes sendo 5,1 milhões da pré-escola, 11 milhões do ensino fundamental, 23 milhões do ensino secundário e 8,6 milhões do ensino superior.

Quando se discute a relação das famílias com o fechamento das escolas devemos considerar que famílias são organizações multifacetadas, a depender do nível de renda, de aspectos sociais, políticos e culturais. Pobreza, violência doméstica e demais problemas pré-existentes tendem a se intensificar em momentos de crise. De qualquer forma, para as famílias como um todo, o custo econômico de manter as crianças em casa tendeu a se elevar. Nicola et al (2020)[7], citando estudos da Brookings Institution, sugerem que o fechamento de escolas nas maiores cidades dos EUA correspondeu a um custo médio de U$ 142 por estudante. Em Nova York, em particular, o custo de fechamento das escolas por quatro semanas foi estimando em U$ 1,1 bilhão. Na mesma fonte cita-se que o fechamento de escolas por uma semana em Taiwan, em 2009, por conta do surto de H1N1, fez com que 27% das famílias não pudessem trabalhar, sendo que 18% perdeu renda.  

No caso específico de crianças de famílias de baixa renda, os efeitos são ainda mais devastadores. Muitos pais não são dispensados do trabalho, como tende a ocorrer no Brasil com empregadas domésticas, faxineiras, jardineiros, porteiros e, no mundo todo, trabalhadores em atividades essenciais, notadamente na área de saúde. Além desses, os trabalhadores na informalidade, que atingem cerca de 40% da PEA brasileira, não tem essa “opção”, necessitando seguir trabalhando para garantir renda para sua família. Ao ônus de continuar trabalhando, quando é possível, se agrega o fato de necessitarem de apoio familiar ou incorrerem em gastos adicionais para o cuidado com suas crianças.

Daí a importância de políticas emergenciais de renda mínima como tem sido adotadas em muitos países. No Brasil tais políticas já foram decididas mas não ainda totalmente operacionalizadas, estando muitas dessas famílias ao desamparo.

Além da questão econômica, nas famílias de baixa renda em que os pais seguem trabalhando, as crianças em casa estão sob maior risco de contaminação. Dados até 17 de abril para a cidade de São Paulo, acerca do perfil dos contaminados pela COVID-19 por bairros, gênero e faixa de idade, mostram que quem mais se contamina são mulheres de 30 a 39 anos, seguidas das de 40 a 49 anos e as de 20 a 29 anos e os óbitos ocorreram principalmente nos bairros periféricos[8]. Além disso, a dependência das famílias de baixa renda da alimentação oferecida nas escolas para as crianças amplia os riscos de faltar condições mínimas de sobrevivência para as mesmas. Por outro lado, tendo em vista que a escola funciona, em muitos casos, como espaço protetivo dos direitos das crianças, também se eleva o risco de agressões domésticas às mesmas.

Outra questão para esse tipo de famílias é a adoção de tarefas escolares em casa sendo que os pais muitas vezes não estão presentes e, os que estão, nem sempre tem o preparo para dar o apoio que a criança necessita. Mas também em famílias de classe média/alta o fato dos pais trabalharem em regime de home office pode dificultar o acompanhamento das crianças. Agrega-se a isso o uso do ensino digital. Em função da desigualdade social, segmentos significativos de estudantes, especialmente nas escolas públicas, não têm acesso doméstico à internet e muito menos a posse de computadores/celulares[9]. Esse problema se reproduz para o ensino superior, num contexto de um número significativo de estudantes universitários de baixa renda. Isso complica o uso das aulas remotas, generalizadas em faculdades privadas. 

Uma segunda frente que esse texto quer destacar é o impacto do fechamento das escolas nas organizações educacionais e junto aos professores. Ampliou-se em muito a pressão para a adoção de formas remotas de ensino visando garantir um mínimo de continuidade das atividades escolares. Como exemplo, nas escolas públicas do município de São Paulo foi firmada uma parceria com a Google e a Foreducation EdTech para o uso de uma ferramenta tecnológica complementar denominada G Suite for Education[10]. Com isso passou-se a contar com ferramentas digitais gratuitas para serem utilizadas pelos estudantes, em casa e de maneira complementar, durante o enfrentamento da pandemia. A iniciativa deve atingir estudantes de todas as etapas (Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos), envolvendo mais de 1 milhão de estudantes e 80 mil professores da Rede Municipal.

De acordo com informações do site da prefeitura a implantação dessas ferramentas tecnológicas envolve dois elementos: a criação das Contas Google Educacionais para docentes e estudantes, usando-as como canal de comunicação entre estudantes, famílias e educadores; a formação técnico-pedagógica para os profissionais de TI e gestores da secretaria de educação e transmissões orientadoras para os professores da Rede Municipal. A ferramenta complementa o material pedagógico impresso, elaborado pelos educadores da secretaria, enviado pelo correio e também disponível online[11].    

Não obstante as críticas que se possa fazer ao uso dessas tecnologias educacionais remotas, elas não são reprodutíveis num quadro nacional de grande assimetria econômica municipal. Não contando com recursos nem mesmo com a cultura de uso desses mecanismos, escolas e mesmo universidades públicas, podem ficar paralisadas por um tempo significativo ou funcionar em grande nível de precariedade[12], por não ter as condições mínimas para adotá-las. Isso amplifica a desigualdade de acesso à educação, com favorecimento a estudantes de famílias de maior renda e de escolas privadas. Por outro lado, as pressões políticas dos governos e da sociedade sobre a rede governamental ampliam as chances da extensão das horas de trabalho de professores, para os quais muitas das responsabilidades ligadas à viabilização do ensino remoto tendem a ser transferidas. Ao mesmo tempo, o trabalho não visível estimula propostas de redução de salários, de despedida de temporários além da busca de saídas pela via da contratação de serviços privados, conforme fez a prefeitura de São Paulo. 

Em contraste, nas escolas privadas, muitas previamente já envolvidas com o uso de tecnologias digitais, as condições técnicas e formativas para garantir a continuidade das suas atividades escolares tendem a ser viabilizadas de forma mais rápida. Nessas instituições o fato de ocorrer pagamento de mensalidades pressionou para a adoção do ensino remoto. Mesmo que de forma por vezes precária generalizaram-se o uso de seus sites e mesmo de ferramentas habituais em contatos empresariais como é o caso do Zoom. Por outro lado, em países como Dubai, houve pressão das famílias para reduzir o valor das mensalidades, sendo que 13,900 pessoas fizeram petições para reduzir em 30% mensalidades de escolas privadas (NICOLA ET AL, 2020).

Devemos ponderar que o uso abrupto das tecnologias de ensino remoto pelas escolas e a independência do estudante frente ao espaço escolar e à mediação dos professores tendem a explicitar seus limites e dificuldades. Aulas e reuniões remotas nem sempre são eficazes, e nos casos em que são, requerem a disseminação de formatos pedagógicos novos. Também tendem a explicitar os limites do ensino doméstico, mostrando que ele não funciona em muitos casos tendo em vista as condições da maioria das famílias. 

Mesmo com todos esses senões, a disputa entre escolas públicas e privadas – e dessas últimas entre si -, tende a se ampliar de forma rápida com franca desvantagem para as públicas. As universidades federais, em particular, tem vivenciado cortes de recursos desde 2014 e estão sendo forçadas a absorver tecnologias de difícil generalização em função das inadequadas condições técnicas e da desigualdade de renda dos estudantes.  

A última frente que destacaremos nesse texto são os impactos do fechamento de faculdades e universidades sobre o modelo de pesquisa científica corrente. Na pós-graduação as medidas de fechamento atingem aos grupos de pesquisa, muitos deles pausados ou suspensos por problemas de financiamento e/ou pelo redirecionamento dos professores e fundos para as áreas correlatas a COVID. No Reino Unido, The National Funding Body for Health Research interrompeu todas as pesquisas que não são na temática COVID-19 para permitir que os profissionais da saúde retornassem a linha de frente. Nos EUA ação similar foi adotada pelo National Institute for Health. As pesquisas fora dessa área, especialmente humanidades, paralisaram totalmente na maioria das instituições com a universidade de Harvard, por exemplo, fechando todos os laboratórios na Faculty of Arts and Sciences (NICOLA ET AL, 2020).

Isso também aconteceu no Brasil, nas universidades federais, com a manutenção de atividades de pesquisa presencial apenas nos casos relativos à COVID-19, sendo as demais precariamente mantidas no modelo remoto. Adicionalmente, eventos científicos foram cancelados ou postergados para o segundo semestre. 

Devemos destacar que as conferências são fundamentais para a pesquisa científica em muitas áreas, servindo para disseminar e trocar conhecimento e estabelecer vínculos colaborativos entre pesquisadores e instituições. Algumas conferências tem sido feitas online mas esse não é o modelo de produção de ciência que a humanidade tem praticado até o momento, sendo menos efetivo para o estabelecimento de redes e contatos informais usuais. Com isso tem-se prejuízo à pesquisa que, no caso do Brasil, é realizada predominantemente por universidades governamentais, sendo uma esfera adicional de ônus sobre as mesmas. 

Identificadas tais frentes na Educação, cuja dinâmica já sofria forte influência da lógica da concorrência e das saídas isoladas, podemos observar que o fechamento das escolas e universidades tende a estimular ainda mais tal lógica, sendo os seus efeitos mais intensos quanto maior o impacto sobre a qualidade do ensino, maior o tempo que as organizações de ensino fiquem paralisadas e quanto mais demore a descoberta e uso massificado de uma vacina para a COVID-19. 

Em outras palavras, deixadas ao sabor dos governos, da lógica de mercado e das saídas isoladas, as pressões em curso tendem a potencializar as contradições já existentes na Educação em âmbito mundial e no Brasil. No que tange ao Ensino o risco é a generalização rápida de um modelo caracterizado pelo aligeiramento dos conteúdos, pela ampliação do uso conjugado do ensino presencial e digital, remoto ou não, e pelo aumento da exclusão dos mais pobres, favorecendo as escolas privadas e reduzindo o acesso à Educação de qualidade. E o simples combate ao uso das tecnologias digitais remotas está longe de reverter esse quadro.

Após o período mais agudo da pandemia, nada de diferente ocorrendo no âmbito das pessoas e organizações, a tendência é a simples manutenção da razão de mundo atual que transfere ao individuo e às organizações a responsabilidade para resolver as dificuldades. Isso sob um quadro de agravamento dos diferenciais entre o público e o privado e entre ricos e pobres. Por isso concordamos com Dardot e Laval que consideram que serviços públicos essenciais como saúde e educação precisam de uma nova direção. A pandemia nos deixou claro os limites da provisão de serviços públicos de saúde por meio da atuação isolada dos governos, ou guiados pelo mercado ou pela visão convencional de soberania nacional. Também na Educação a ajuda mútua entre pessoas, organizações e países, numa atuação coordenada e cooperativa, a produção conjunta do conhecimento necessário são a saída mais promissora para a maioria. Mas essa lógica dos Comuns Mundiais não virá dos mercados nem dos governos. Sem uma mobilização política das pessoas e organizações para além da lógica habitual e a ampliação das pressões sociais daí decorrentes, a mudança de direção não prevalecerá.

NOTAS


[1] https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200131-sitrep-11-ncov.pdf?sfvrsn=de7c0f7_4
[2] https://www.who.int/docs/default-source/coronaviruse/situation-reports/20200311-sitrep-51-covid-19.pdf?sfvrsn=1ba62e57_10
[3] https://www.imperial.ac.uk/media/imperial-college/medicine/sph/ide/gida-fellowships/Imperial-College-COVID19-NPI-modelling-16-03-2020.pdf
[4] https://blogdaboitempo.com.br/2020/03/26/dardot-e-laval-a-prova-politica-da-pandemia/?fbclid=IwAR1oxc25PjOmX_nJRrutl-c-p1-937Y5eq-xC-qGoCwMJoC6EuGyn_eRXOk
[5] Para aprofundar esse aspecto ver: DARDOT; LAVAL A nova razão do mundo. São Paulo: Boitempo, 2016.
[6] Estudo publicado na revista The Lancet mostra, num cenário de 2% de letalidade e isolamento completo, escolas e trabalhadores, reduz-se em 99,3% a abrangência da disseminação, comparando-se com um cenário base em que nada seja feito. https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1473309920301626
[7] Artigo de abril de 2020: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1743919120303162
[8] http://periferiaemmovimento.com.br/wp-content/uploads/2020/04/PMSP_SMS_COVID19_Boletim_Semanal_20200417-1.pdf
[9] Segundo a PNAD contínua (IBGE), em 2018, o rendimento médio per capita para os que utilizavam internet era de R$ 1.769 e dos que utilizavam computadores, R$ 2.569 e o celular, R$ 1.765. O levantamento mostra que 79,1% dos domicílios no país tem acesso a internet, mas na área rural o acesso é menor, apenas 49,2% dos domicílios.
[10] Conforme informações das empresas, o Suite for Education é usado hoje como plataforma tecnológica por 120 milhões de professores e alunos no mundo todo.
[11] http://www.capital.sp.gov.br/noticia/covid-2013-19-estudantes-e-educadores-poderao-contar-com-tecnologicas-do-google-e-foreducation
[12] Sob críticas de entidades estudantis a USP manteve o semestre letivo 2020/1 da graduação em regime remoto.
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DESCONSTRUINDO FALSAS VERDADES EM TEMPOS DE PANDEMIA – PARTE 1

Vinícius Vieira Pereira Prof.
Departamento de Economia da UFES 
Tutor do Programa Pet Economia/UFES

Nos trágicos dias em que vivemos, algumas ideias vêm se difundindo de modo generalizado e precisam ser atacadas. Entre elas, destacaremos três. A primeira, que surge diante da certeza do caráter transitório da crise, é a de que, passada a turbulência momentânea, retornaremos à normalidade da vida pré-crise, o que pressupõe idéia de uma sociedade natural, aceitável, exemplar, equilibrada, desejável, que serve de modelo, sem defeitos ou problemas, para ficarmos apenas nesses poucos significados do verbete normal. Uma segunda mensagem, geralmente tomada como ponto de partida nas análises sobre a crise econômica causada pela Covid-19, é a de que esta crise é externa, ou exógena à sociedade capitalista e, portanto, não foi gestada internamente pelas nossas ações e pela forma como vivemos, produzimos e nos reproduzimos neste grande sistema social, mas sim, causada por um elemento estranho a ele, um vírus. E a terceira é a que insiste na tese de que a Covid-19 é uma doença democrática e que atinge, ricos e pobres. As três receberão, aqui, uma análise crítica, pois precisam ser desconstruídas.

Para atingirmos nosso objetivo, construiremos o presente argumento em uma série de três textos, que serão publicadas sequencialmente neste blog. Nesta primeira parte, a tarefa será a de questionar o argumento do retorno à “vida normal”. Como escrito em algum muro de algum país europeu, não se pode voltar à normalidade, pois ela era, em si, parte do problema. Assim, começaremos apresentando um contraponto, de imediato, qual seja, a ideia de que a vida conduzida pela lógica do capital não era normal, natural, equilibrada ou aceitável antes da Covid-19. Os problemas e os defeitos da vida na sociedade capitalista pré-crise deveriam constituir-se motivos suficientes para não a tratarmos como modelo idealizado, mas sim, buscarmos formas de suplantá-la, se pretendermos uma existência longa e humanitária para a nossa espécie no planeta Terra. 

Não podemos considerar “normal” uma sociedade marcada pela extrema desigualdade entre as pessoas e os povos, por uma concentração da riqueza sem paralelos na história humana[1], e que, só em nosso país, atingiu números alarmantes[2]; não devemos tomar como modelo uma sociabilidade pautada na exploração insensível do homem e da natureza pelo próprio homem[3]; uma existência que se sustenta na destruição dos biomas da Terra em nome da geração de empregos e da maior lucratividade dos negócios; uma sociedade que utiliza o conhecimento e o progresso tecnológico com o fito exclusivo da busca pelo lucro sem se importar com o abandono, a exclusão e a miséria em que vive metade da população mundial, segundo dados da ONU[4]; uma forma de vida que, baseada na concorrência e na competição entre os indivíduos, tornou-se incompatível com a coexistência de sentimentos humanitários como a solidariedade, a amizade e a fraternidade; um sistema que produz lixo e poluição atmosférica numa escala incompatível com a capacidade de escoamento desses rejeitos e com a saúde dos organismos vivos[5]. Para não nos alongarmos muito, uma sociedade pautada no fetichismo do dinheiro, onde as mercadorias se tornam entidades sobre-humanas que justificam qualquer sacrifício em nome de sua obtenção, uma sociabilidade dominada pela estética das formas aparentes e motivada por uma compulsão insaciável ao consumo.

Esta sociedade “normal” em que vivemos produz violência, exclusão e miséria na mesma proporção em que aumenta a população desabrigada, abandonada, faminta e encarcerada. Produz pequenas ilhas de riqueza num extenso oceano de pobreza em proporções insustentáveis para as nossas cidades[6]; dissemina o ódio contra as populações migratórias nas regiões de destino condenando-as a um retorno a lugar nenhum; uma sociedade que se sustenta na deterioração da saúde física e mental de crianças, jovens, adultos e velhos, cada vez mais dependentes de drogas lícitas e ilícitas ou apanhadas pela epidemia de suicídios[7] e no acirramento das relações econômicas, políticas e diplomáticas entre as nações que as coloca na iminência de uma guerra derradeira; enfim, um mundo distópico, cruel, cujo cenário de destruição e morte se naturaliza ainda mais se consideramos natural o seu retorno. 

Longe de qualquer abstração, este cenário trágico acima narrado é a nossa realidade concreta, pois, é neste mundo “normal”, que legitima a desigualdade e naturaliza a morte, que construímos nossas perspectivas e projetos de futuro. A maior prova de que o caminho que trilhamos de mãos dadas com o capitalismo não é normal vem dos próprios capitalistas, ou pelo menos, de um seleto grupo deles, entre os quais se conta o 1% dos mais ricos do mundo.  Apostando na tragédia como certeza de um futuro próximo, alguns dos mais destacados empreendedores bilionários do Vale do Silício, como Peter Theil e Sam Altman, entre outros super-ricos, a exemplo de Bill Gates, compraram propriedades e bunkers, esconderijos nucleares, na Nova Zelândia, refúgio considerado seguro para essa pequena elite se proteger do momento em que o sistema entrará em colapso e eclodirá, alternativa tida como certa por eles[8]. Segundo alguns desses gênios da tecnologia de ponta, a superpopulação, a mudança climática, a recorrência de pandemias, a extrema desigualdade e a violência, as migrações em massa, o esgotamento de recursos naturais, as fomes e o pânico levarão a população mundial a viver, na pele, uma realidade comparável a um episódio de Mad Max[9]. Indispostos a buscarem soluções para tornarem esse mundo melhor, os empreendedores de sucesso, como os fundadores de empresas como Reddit, Linkedin e PayPal, convenceram-se de que o governo norte-americano e as estruturas que o sustentam não conseguirão protegê-los e, desse modo, é necessário transcender completamente a condição humana. Enquanto tentam tornar possível a vida em outros planetas, a substituição de humanos por robôs e a reversão dos processos de envelhecimento[10], estocam comida, armas, munições e se equipam com motos e carros futuristas para defenderem a si próprios, suas famílias e seus patrimônios da revolta final, ou grande apocalipse do capital[11]

Ora, se diante de um cenário desolador causado por uma pandemia mortal, sonhamos com uma normalidade igualmente trágica, na qual o estado de barbárie domina a vida social, a pergunta que nos resta fazer é se um retorno à normalidade deve servir de guia neste contexto de crise. A busca por novas alternativas de sociabilidade deve entrar na pauta das discussões políticas e acadêmicas entre as mais urgentes na contemporaneidade. Diferentes ideias sobre o assunto têm sido expostas de modo cada vez mais frequente na imprensa e nos debates políticos. Dentre estas, destacaremos três, apresentando, em seguida, uma análise crítica da proposta. Em comum, elas guardam a necessidade de superar o neoliberalismo. Porém, uma delas, trabalha com o firme propósito de superação do capitalismo. 

A primeira, e mais repetida nos canais de mídia cujos editoriais mantêm o mínimo teor crítico, é a que sugere o abandono do capitalismo neoliberal e o retorno ao capitalismo do Estado de Bem-estar Social, ou Welfare State, modelo econômico que marcou a era pós-Segunda Guerra, pautado nas políticas econômicas de cunho keynesiano. Para os defensores dessa tese, o estado voltaria a assumir a proeminência nas decisões de produção e renda, criando mecanismos de proteção social, planejando e tomando decisões econômicas ao invés de deixar que o mercado sinalize,por meio do lucro, o que é necessário às pessoas[12]. Naquele momento da história, a posição assumida por uma estrutura estatal robusta resultou nos chamados trinta anos de glória do capitalismo no ocidente, ainda que pairasse sobre nossas cabeças uma guerra fria, e outras tantas quentes, levadas à cabo por nosso grande tutor, os EUA, que se preocupava incansavelmente em proteger o mundo contra a ameaça socialista que vinha do leste. Para levar à cabo tal projeto, os governos se endividaram e uma estrutura de financiamento de dívidas públicas se ergueu, permitindo aos bancos e financeiras de todos os cantos do mundo surfarem alegremente ao longo das últimas cinco décadas. O resultado positivo para as classes trabalhadoras surgiu através da rede de proteção social construída, baseada nos sistemas de seguridade social, o que significou acesso aos seguros desemprego, aos planos públicos de aposentadoria, pensão e auxílios emergenciais, aos benefícios de assistência social, à saúde pública, entre outros. Para a população, era o estado protetor. Para o capital privado, era o estado que chegava em boa hora, pois, garantia a sua valorização, financiando a infraestrutura necessária à produção e oferecendo os bens e serviços sociais essenciais ao funcionamento do mercado. Metaforicamente, pode-se afirmar que o estado reduzia o fogo sob a panela de pressão social, em momento tão dramático para os povos ocidentais recém-saídos de uma crise econômica sem precedentes e de uma guerra mundial devastadora. Havia, pela frente, um mundo a ser reconstruído.

No entanto, tal proposta precisa ser debatida, afinal, urge saber se as condições históricas presentes àquele momento do desenvolvimento do capitalismo estariam disponíveis nos dias de hoje. Num exercício de história sincrônica, comecemos com o modelo produtivo em voga nas indústrias, e os tamanhos das plantas produtivas e da classe trabalhadora formal, assim como a força dos sindicatos; as linhas de bens de consumo de massa requeridas pela população e produzidas pelas fábricas, o nível da produtividade do trabalho e a remuneração correspondente, bem como a capacidade desta de responder com consumo efetivo aos estímulos potenciais da oferta; os níveis de concentração e centralização do capital nos diferentes setores da economia; a predominância de uma ideologia política social-democrata, fundamental para a construção da estrutura nada mínima do estado e da rede de proteção social instalada; o nível de endividamento dos estados e a política de administração da dívida pública; o padrão cultural capaz de assegurar a reprodução da estrutura de consumo erguida; as relações internacionais e o respeito aos mecanismos supranacionais que sustentam a hegemonia de poder; a vigência de sistemas cambiais compatíveis com um projeto dessa natureza; a existência, ou não, de um modelo de sociabilidade alternativo concorrente com o capitalismo, como era, naquele momento da história, o que se pautava na proposta socialista/comunista, do qual a URSS era seu maior representante; a disponibilidade de recursos naturais e o nível de esgotamento da natureza. 

Enfim, aqueles que creem nessa alternativa como retorno pós-crise do coronavírus devem analisar todas as questões que passam necessariamente pela forma e estrutura do estado, do específico momento histórico da luta de classes e pelo grau de destruição da vida no planeta, pois somente assim poderemos idealizar horizontes factíveis. E vale lembrar que, no atual momento em que vivemos, as políticas que defendem um estado mínimo dominam a esfera política e ideológica. E, de acordo com Noam Chomsky, sociólogo e linguista norte-americano, para quem o neoliberalismo é o “capitalismo sem luvas”[13], o martelo neoliberal, aquele que determina a justiça nas democracias capitalistas contemporâneas, decreta que os governos não podem e nem devem agir, pois eles são o problema e não a solução[14].

Uma segunda opção para um não retorno às condições pré-crise, porém mantendo-se também a base ideológica do capitalismo como cerne da organização social, e que tem ocupado lugar de destaque na imprensa atual, é a descrita a partir do pensamento de Kate Raworth, economista e professora da Universidade de Oxford, em seu livro cujo título em português é Economia donut: uma alternativa ao crescimento a qualquer custo. Sobre a ideia central da autora, o colunista do The Guardian, George Monbiot, descreveu como sendo uma alternativa inovadora para o crescimento econômico[15]. Contrapondo-se à continuidade da lógica de expansão econômica baseada no neoliberalismo, o modelo de Raworth toma como metáfora uma rosquinha doce, um donut, daqueles que policiais comem dentro dos carros em filmes de origem anglo-saxã, a partir do qual, desenha os limites mínimo e máximo de consumo e bem-estar das populações nas cidades do futuro alternativo que sua tese supõe. O anel interior do donut representa o mínimo de alimento, moradia, água tratada, energia, educação, higiene, cuidados de saúde e bem-estar, igualdade de gênero, renda e voz política que todos os cidadãos devem ter para lhes garantir uma qualidade de vida tida como “boa” na visão da autora. O anel externo representa o limite máximo aceitável de consumo e renda dos indivíduos, limite este definido pelos cientistas a partir das condições de exploração e de danos causados ao clima, solo da terra, oceanos, camada de ozônio, à água pura e à biodiversidade. Qualquer posição que ultrapassasse tais limites não seria permitida pelos governos. Se, aquém do limite mínimo, cairíamos no buraco da rosquinha, o que indicaria uma situação socioeconômica incapaz de assegurar as condições mínimas de sobrevivência aos indivíduos que ali se situassem. Tal condição não seria aceita, a partir do que entraria em cena mecanismos de planejamento estatal para mitigar os problemas surgidos. Se, além da circunferência do donut, a posição seria igualmente rejeitada e impedida pelos governos por representar um nível de consumo que não respeitaria os limites da natureza, podendo ferir de morte o planeta Terra.

Pois bem, esse modelo donut foi recentemente abraçado pela prefeita da capital da Holanda, Marieke van Doorninck, que pretende levá-lo adiante, como plataforma política, aplicando-o experimentalmente à cidade de Amsterdã. Ela se justifica afirmando ser essencial pensar, agora, no pós-crise da Covid-19, mas sem recorrer aos mesmos mecanismos fáceis de outrora. Segundo ela, emprego, clima, renda e saúde são aspectos que devem ser tratados conjuntamente e com os quais temos de nos preocupar. Ela acredita que há uma estrutura ao nosso redor que nos habilita a tentar essa estratégia de construir uma economia que se preocupe com moradias e cuidados comunitários. E o momento clama por isso, afirma a deputada prefeita.

Ora, cabe discutir sobre os pressupostos que ancorariam uma proposta desse porte. Construções civis sustentáveis, produção de alimentos orgânicos ou com menos agrotóxicos, recusa de utilização de materiais e produtos oriundos de combustíveis fósseis bem como originados a partir de uma elevada exploração do trabalho seriam, de fato, muito bem-vindos ao mundo de hoje, não há quem negue. Necessidade de regulação e regulamentação dos espaços urbanos e planejamento da produção não são constatações novas e tratam-se de temas há muito debatidos seja por keynesianos, regulacionistas, institucionalistas, entre outras correntes que também perpassam subsidiariamente o assunto. Mas, toda e qualquer estratégia nesse sentido necessita, assim como a proposta anteriormente debatida, de um forte aparato estatal, do tipo que as políticas neoliberais já trataram de aniquilar nos últimos cinquenta anos. Recuperá-lo custará vontade política, recursos públicos e um tipo de globalização integradora e participativa que, para usar os termos da escola regulacionista, seja capaz de estimular o desenvolvimento a partir da criação de um conjunto harmônico entre as formas estruturais e o regime de acumulação. 

Ora, esse caminho não faz parte dos planos de crescimento do capital, nem de seus grandes arautos, a elite política e economicamente dominante. Até mesmo o questionável equilíbrio internacional de poder hoje mantido graças à produção e ao consumo de petróleo torna-se um grave empecilho para a proposta de mudança da matriz energética do planeta, uma das teses de apoio do modelo donut, na busca por uma forma menos poluente de geração de energia. Além do que, ainda que houvesse vontade política, cabe perguntar de onde viriam os recursos para garantir essa presença ativa dos mecanismos do estado, haja vista os limites impostos pelo mercado às dívidas públicas nacionais e às políticas discricionárias dos governos democraticamente eleitos nas últimas décadas.

Se se pretende discursar em favor de reformas tributárias que imponham uma tabela progressiva de impostos e a taxação de grandes fortunas e heranças, voltaríamos ao mesmo argumento já sugerido por Thomas Piketty[16], ideia que não angariou aliados de peso, não teve forças para sair do espaço acadêmico e mostrou-se inofensiva. Prova disso foi a repercussão midiática, digna de bestseller, que os principais canais da imprensa dominante no mundo deram ao autor e ao seu trabalho. E, de resposta ainda mais difícil: como impedir, ou mesmo controlar o consumo individual num modo de produção em que os lucros do capital, principal sinalizador da economia, disso dependem? Não nos esqueçamos de que o sentido maior da acumulação de capital repousa na aposta sobre o consumo ilimitado de mercadorias e serviços, crença maior que esta sociedade “livre” sempre cultuou.

Para encerrar, tratemos de uma terceira alternativa, em parte já em curso, porém em comunidades modelos, surgida no Brasil, a partir do Movimento dos Trabalhadores sem Terra. Organizado como um movimento político de amplitude nacional e ancorado em uma estratégia de socialização de setores estratégicos da economia, esse movimento defende uma política social que se baseia na aposta da superação do capitalismo e da construção de uma via democrática de socialismo. Apesar da estratégia já estar em curso na sociedade real, capitalista, ela ainda está limitada aos núcleos de povoamento constituídos por trabalhadores rurais, ou camponeses, conquistados via reforma agrária, os assentamentos. 

Defendendo a repartição planejada da terra, a partir do assentamento de famílias em lotes de tamanho pré-definido e cujas medidas mudam conforme a região, o tipo de produto predominante e a fertilidade do solo, a propriedade do solo por parte das famílias assentadas nos lotes, segundo a página do próprio movimento, é “apenas o primeiro passo rumo à reforma agrária”[17]. Nesse modelo de sociedade, após receberem o lote para nele trabalharem, as famílias continuam a participar do movimento. Todos os assentados e aqueles que estão acampados à espera de um lote de terra para também poderem trabalhar organizam-se numa estrutura participativa e democrática para tomar as decisões pertinentes à comunidade, tais como, necessidades de saneamento, cuidados com saúde, atendimento médico, energia, acesso à cultura e lazer. A mesma estrutura se repete em nível regional, estadual e nacional dentro do movimento. 

A soberania alimentar é o principal pilar da produção material nesse modelo, como assegura o líder nacional do MST, João Pedro Stédile[18]. Soberania que, segundo os ideais do movimento, deveria guiar não apenas a produção dentro dessas comunidades, mas no país como um todo, como a política agrária necessária para garantir bem-estar ao povo brasileiro, algo que o sistema baseado na concentração capitalista da terra, os grandes latifúndios monocultores, não consegue fazê-lo. Defendendo sempre que possível a agroecologia e as formas sustentáveis de produção alimentar e industrial, bem como de construção civil, a monocultura é desestimulada.

Em busca da construção de uma forma diferente de pensar a sociedade humana, uma nova ideologia é erguida, baseada na solidariedade entre os indivíduos e os povos, na produção comunitária, na preservação do meio ambiente, na desconstrução de preconceitos de gênero, religião e cor da pele. Por isso, todos desempenham atividades domésticas, políticas, educacionais, agrícolas e industriais. O sucesso conquistado pelo MST em seus assentamentos levou os norte-americanos, James Petras e Henry Veltmeyer, na obra, GlobalizationUnmasked: imperialism in te 21st century, a tratá-lo como um movimento sócio-político que se apresenta como resposta concreta ao imperialismo capitalista norte-americano no século XXI[19]. Os autores consideram essa alternativa de sociedade como uma possibilidade factível, uma vez que surge das lutas populares de massas sob liderança socialista ou, no mínimo, anti-neoliberal/anti-imperialista, com capacidade de se disseminar pelo planeta. Segundo eles, neste início de milênio, os povos do mundo devem buscar se opor à ambição imperialista e deixar de lado a noção de que o triunfo do modelo capitalista euro-americano é irreversível e inquestionável. 

No entanto, esta alternativa também se choca com uma série de antagonistas na sociedade burguesa, afinal, tais modelos societais convivem, no Brasil, com um adversário de enorme peso econômico e político, o agronegócio, baseado no grande latifúndio monocultor para exportação. Em um país onde grande parte da pauta exportadora se concentra na produção e exportação de commodities, com destaque para os alimentos e matérias primas agrícolas, propriedades baseadas na agricultura familiar com produção voltada para o mercado interno tornam-se quase que enclaves dentro de uma economia que cada dia mais está “voltada para fora”. A capacidade de expansão do modelo proposto pelo MST depende da continuidade do processo de reforma agrária, da entrega dos títulos definitivos como garantia do direito à terra, para que os assentados tenham segurança jurídica para trabalharem e produzirem nesses lotes. Depende, ainda, da elaboração de políticas agrícolas que garantam condições do assentado ter acesso ao crédito, bem como de uma infraestrutura que lhe garanta sementes, máquinas, implementos agrícolas e assistência técnica. 

Mas, tais medidas não encontram apoio de governos neoliberais nem de parlamentos hostis a tal demanda. Para se ter uma ideia da dificuldade dessa expansão, o primeiro governo Lula elevou consideravelmente o número de famílias assentadas, de 40 mil em 2003, para 140 mil famílias assentadas em 2006. No entanto, já no segundo mandato do mesmo presidente houve uma queda vertiginosa nesse número, caindo para pouco mais de 60 mil famílias já em 2007, 40 mil em 2010, 20 mil em 2011, o qual permaneceu praticamente imutável durante os governos Dilma[20], isso para falarmos apenas dos governos que, pressupõe-se, compartilhem do interesse em ampliar o projeto de reforma agrária no país, uma vez que o MST foi uma das bases de apoio aos governos do PT. 

Além disso, há também outras contradições cujas origens são internas ao próprio movimento. Começando pela fuga de jovens do campo para cidade, como afirmam Oliveira, Rabello e Feliciano[21], o que tem se mostrado como uma preocupação de vários coordenadores do movimento, que apontam a melhoria do acesso à educação em todos os níveis e a garantia de renda por meio de projetos de agroindústria e agroecologia como possíveis soluções para tais problemas. Citando Stédile, os autores afirmam que, somente assim, o jovem poderá permanecer no campo, tendo as mesmas condições ou até melhores, do que se migrasse para as periferias das cidades, onde só vai encontrar violência, pobreza e discriminação. Em segundo lugar, mas nem por isso menos importantes, existem dilemas políticos e ideológicos a serem sanados, os quais envolvem o acesso à terra, como discutido por Eliel Machado[22], para quem o campesinato pobre, base social dos sem-terra, e não a classe operária urbana, teria assumido, no Brasil, o protagonismo na luta contra o neoliberalismo e como reivindicadora do socialismo. Assim, caberá responder à difícil questão de como reivindicar meios de produção e lutar pelo socialismo simultaneamente.  

Ainda sobre o dilema da propriedade privada da terra, outro debate que se levanta no seio do MST é o que se refere ao título que ligaria o camponês à terra por ele cultivada após o assentamento, matéria fundamental não apenas para se discutir a relação de posse ou propriedade dos meios de produção, mas também por colocar em questão qual seria a melhor opção para a agricultura familiar e para a soberania alimentar. Após o assentamento, a família deve receber a Concessão de Direito Real de Uso – CDRU, ou o Título de Domínio – TD? Os que defendem a primeira hipótese apelam para o argumento de que os TD’s podem se tornar um problema, pois os assentamentos regularizados por documentos dessa natureza ficam vulneráveis a serem comprados novamente por grandes proprietários de terras, que geralmente o fazem a preços irrisórios, aproveitando-se da condição precária do assentado que se vê abandonado à própria sorte sem apoio de uma política agrária para prosseguir com o empreendimento.  Isso significaria um rápido retorno ao latifúndio, mas, agora, por meio da compra legal das terras[23]. Os que defendem os títulos definitivos apostam na segurança jurídica que os mesmos conferem à propriedade, além da garantia de permanência perene nas terras sem o risco de uma mudança na estrutura do movimento.

Enfim, muito há que se debater, mas as dificuldades encontradas não podem enterrar as alternativas e as perspectivas de mudanças.  O intuito deste texto foi o de evidenciar, em meio à catástrofe imposta pela Covid-19, a existência de uma preocupação da sociedade com o futuro que nos espera. Muitos são os contrários à continuidade do modelo pautado no capitalismo neoliberal, assim como o conhecemos hoje, o qual se mostrou completamente incompetente frente à pandemia que agora assola e devasta vidas e famílias em todo o planeta. Tal modelo de organização social tornou-se indefensável e escancarou o abandono da sociedade por parte dos governos que, dirigidos pelo grande capital, imprimiram uma lógica dualista de riqueza e miséria, sucesso e exclusão. Uma lógica pautada na normalidade da competição e do utilitarismo, que exalta o egoísmo e que tem como resposta a barbárie, a tragédia e a destruição.

Na segunda parte deste artigo, trataremos de analisar criticamente outro argumento bastante difundido atualmente, o de que a causa da pandemia deve ser buscada fora da esfera econômica, ou material, da sociedade, afinal, trata-se de um problema biológico que afeta a saúde dos indivíduos. Implícito a este argumento, está a falsa premissa de que o mundo ia bem, a economia também, até que… de repente…surgiu um vírus![24]

 Até a próxima semana…

NOTAS


[1] Relatório Oxfan aponta: 62 pessoas possuem riqueza equivalente a de metade do mundo. Disponível em: https://oxfam.org.br/publicacao/62-pessoas-possuem-o-equivalente-a-metade-do-mundo/
[2] Brasil alcança recorde de 13,5 milhões de miseráveis aponta IBGE. Disponível em: https://economia. estadao.com.br/noticias/geral,brasil-alcanca-recorde-de-13-5-milhoes-de-miseraveis-aponta-ibge,70003 077918
[3] Números do IBGE mostram crescimento da exploração do trabalhador. Disponível em: https://www. causaoperaria.org.br/acervo/blog/2017/10/01/numeros-do-ibge-mostram-crescimento-da-exploracao-do-trabalhador/#.XqdWGchKjIU; A natureza, sua destruição e o capitalismo: https://www.marxist.com/a-natureza-sua-destruicao-e-o-capitalismo.htm
[4] Banco Mundial: quase metade da população mundial vive abaixo da linha da pobreza. Disponível em: https://nacoesunidas.org/banco-mundial-quase-metade-da-populacao-global-vive-abaixo-da-linha-da-pobreza/
[5] Padrões de consumo global devem mudar para que o planeta sobreviva. Disponível em: https://www. correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2019/03/04/internas_economia,740974/padroes-de-consumo-global-devem-mudar-para-que-o-planeta-sobreviva.shtml
[6] Cattani, A. D. Riqueza e desigualdades.Caderno CRH/UFBA. v. 22. n. 57. Salvador: UFBA, 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-49792009000300009
[7] Taxa de suicídio nos EUA dispara nos últimos 15 anos. Disponívelem:https://exame.abril.com.br/ mundo/taxa-de-suicidios-nos-eua-dispara-24-nos-ultimos-15-anos/; Mortalidade por suicídio de adolescentes no Brasil: tendência temporal de crescimento entre 2000 e 2015.Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0047-2085201900010 0001&tlng=pt; Consumo de drogas psicoativas dispara no mundo. Disponível em:https://setorsaude.com.br/consumo-de-drogas-psicoativas-dispara-no-mundo/
[8] Rich tecnocrats planning doomsday escape to New Zeland bunkers. Disponível em: https://pt.technocracy.news/rich-technocrats-planning-doomsday-escape-to-new-zealand-bunkers/
[9] Assim o 1% mais rico se prepara para o apocalipse climático. Disponível em:http://www.ihu.unis inos.br/78-noticias/591892-assim-o-1-se-prepara-para-o-apocalipse -climatico;
[10] Os ultra-ricos preparam um mundo pós humano. Disponível em:  https://outraspalavras.net/sem-categoria/os-ultra-ricos-preparam-um-mundo-pos-humano/;
[11] Refúgio para o fim do mundo. Disponível em:https://www.istoedinheiro.com.br/ refugio-para-o-fim-do-mundo/
[12] Coronavírus mostra a importância do estado de bem-estar social. Disponível em: https://www.carta capital.com.br/economia/coronavirus-mostra-a-importancia-do-estado-de-bem-estar-social/
[13] Chomsky, Noam, O lucro ou as pessoas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002
[14] Disponível em: http://www.cubadebate.cu/especiales/2020/04/22/noam-chomsky-el-unico-pais-que-ha-demostrado-un-internacionalismo-genuino-ha-sido-cuba/#.XqMrQ8hKjIV
[15] Disponível em: https://www.theguardian.com/world/2020/apr/08/amsterdam-doughnut-model-mend-post-coronavirus-economy
[16] Sobre o autor e sua tese sobre a desigualdade bem como as formas por ele apontadas para mitigá-la, recomendamos A economia da desigualdade (1997), O capital no século XXI (2013), e Capital e ideologia (2019).
[17] Página oficial do MST na internet. Disponível em: https://mst.org.br/quem-somos/
[18] Brasil precisa recuperar ideia de soberania alimentar. Disponível em: https://tutameia.jor.br/sobera nia-alimentar-e-resposta-a-crise/
[19] Petras, J.; Veltmeyer, H. Globalization unmasked: imperialism in te 21st century. Canada: FenwoodPublishing; UK: Zed Books, 2001.
[20] Assentamentos Rurais: reforma agrária em dados. Disponível em: http://www.reformaagrariaem dados.org.br/realidade/2-assentamentos-rurais
[21] Oliveira,L.; Rabello, D.;Feliciano C.A. Permanecer ou sair do campo? um dilema da juventude camponesa. Disponível em: https://revista.fct.unesp.br/index.php/pegada/article/view/3032
[22] Machado, E. MST: dilemas políticos e ideológicos do acesso à terra.Disponível em: http://ken.pucsp.br/pontoevirgula/article/download/14321/10469.
[23] Disponível em: https://www.justificando.com/2019/04/17/assentamentos-rurais-qual-a-melhor-opcao-para-a-agricultura-familiar-a-expedicao-do-cdru-ou-o-td/
[24] Agradeço às fundamentais contribuições dos professores Ana Paula Fregnani Colombi, Gustavo Moura de Cavalcanti Mello, Henrique Pereira Braga e Rafael Moraes, integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisa em Conjuntura, do Departamento de Economia da UFES para a construção deste texto, não sem antes isentá-los de quaisquer erros que, porventura, o autor tenha cometido.

 

 

 

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POR UMA DIREÇÃO DIFERENTE

HENRIQUE BRAGA
Departamento de Economia/Ufes

O avanço da pandemia da COVID-19 estabeleceu inúmeros desafios para as ciências, sejam elas naturais ou sociais. No campo da ciência natural, o principal desafio tem sido o de salvar vidas. O que implica desenvolver o tratamento da doença e, enquanto não há uma “cura”, estabelecer estratégias de redução da contaminação pelo novo coronavírus. No campo das ciências sociais, impõe-se propor formas de se lidar, seja no campo psíquico, político, social ou econômico, com as estratégias apresentadas.

Nesse contexto, estudiosos de infectologia e imunologia da Universidade de Harvard afirmam que, na ausência de qualquer tratamento farmacêutico eficaz contra as graves doenças provocadas por um vírus de alta transmissibilidade, as estratégias para seu enfrentamento devem estar centradas na contenção da contaminação da população. Assim, seria possível “evitar o risco de sobrecarregar os sistemas de saúde e ganhar tempo para o desenvolvimento de tratamentos e vacinas”. É nesse sentido que devem ser adotados a quarentena, o distanciamento social e monitoramento da população, com teste em massa. Cuidados esses que precisam ser redobrados na estação do ano mais propícia à propagação do vírus: o inverno[1].

Mas, por quanto tempo seria necessária a adoção de tais medidas? Como o desenvolvimento e o teste de tratamentos e vacinas podem levar meses e até anos, eles estimam, com base nos países centrais, que seja necessário adotar o distanciamento social intermitente – ou mesmo substancial – e monitorar a população, com teste em massa, até 2022[2]. Com isso, o avanço da contaminação poderá ser contido, de forma que os sistemas de saúde teriam capacidade para o tratamento adequado da população[3]. O que reduziria não somente o número de mortes pelas doenças provocadas pelo COVID-19, como também diminuiria o número de mortos por outras doenças que, com um sistema de saúde em colapso, não conseguiriam o tratamento adequado. 

Embora essas estimativas estejam sujeitas a uma série de limitações técnicas, que são reconhecidas pelos próprios autores[4], a rapidez da transmissão do vírus pelo mundo, o elevado número de mortos – a despeito da baixa taxa de letalidade do vírus[5] – e o caso dramático da Itália, são evidências suficientes de que a pandemia da COVID-19 deve ser levada a sério. Mais do que isso, medidas contundentes precisam ser adotadas para viabilizar a forma de contenção da pandemia disponível no momento, evitando o adoecimento e a morte prematura da população[6]. Com especial atenção para os trabalhadoras e trabalhadores que, há anos, vêm sofrendo com a precarização das suas condições de trabalho, com a incerteza dos seus salários e com a pressão de terem de ser “empresário de si mesmo”[7]. 

A mesma força que compeliu a essa degradação das condições de trabalho é, porém, responsável pela produção desse vírus. Como mostra o coletivo chinês Chuang, a expansão das montadoras de automóveis para Wuhan proporcionou tanto a rápida urbanização quanto a busca por novas áreas agrícolas, que avançaram sobre o bioma da região. Localizada num vale quente e úmido, Wuhan é conhecida como uma das quatro “fornalhas” da China, constituindo um ambiente propício para as chamadas transmissões zoonóticas de doenças – a saber, quando há transmissão de uma espécie para outra. Numa das principais zonas produtivas da China, alimentada pela incessante dinâmica de produzir mais coisas em menos tempo, a emergência de um novo vírus (SARS-CoV-2) teve as consequências que estamos passando agora[8].

No campo econômico, o FMI estima, por exemplo, um declínio de 3,0% no PIB mundial, sendo que esse indicador recuaria, nas economias avançadas, em 6,1% e, nas economias ditas “emergentes”, em 1,0%[9]. Contudo, a julgar pela queda de 6,8% do PIB chinês no primeiro trimestre desse ano, quando comparado com o mesmo trimestre do ano passado, as estimativas do FMI são, para dizer o mínimo, otimistas[10]. 

Diante de um cenário de declínio da atividade econômica, o próprio fundo sugere aos Bancos Centrais medidas para preservarem a “estabilidade financeira global” e “manterem a economia global funcionando”. Em linhas gerais, as medidas são as seguintes: reduzir as taxas de juros e comprar ativos do sistema financeiro; intensificar as operações de mercado aberto para ampliar a quantidade de dinheiro disponível para o sistema financeiro; prover contratos de câmbio que deem conta da demanda por dólares; e, por fim, reativar programas usados na crise financeira de 2007/2008 para comprarem “ativos de risco” e “títulos privados”. Até o momento, segundo o fundo, os Bancos Centrais anunciaram a provisão de recursos ao sistema financeiro na ordem de 6 trilhões de dólares[11].

O montante dos recursos disponibilizados até então aponta, por um lado, para a importância deste setor para a economia contemporânea[12]. Pois, o automóvel produzido em Wuhan, por exemplo, será, provavelmente, vendido à crédito – seja no mercado chinês, estadunidense ou mesmo brasileiro – enquanto a tecnologia aplicada em sua produção foi financiada à crédito – neste caso, em grande parte pelo endividamento público e, em menor medida, por dívida privada. A relação imbricada entre sistema financeiro e produção de mercadorias é conhecida como financeirização, na qual a emissão de novos títulos de dívida públicos e privados, a garantia de suas remunerações por parte dos emissores e a contínua aposta na variação de seus preços nos mercados bursáteis condicionam – e são necessários – à produção usual de mercadorias[13]. 

Por outro lado, tal volume de recursos mostra que o FMI supõe que, assegurado o circuito de reciclagem dos títulos de dívida, sua emissão e a aposta nas variações dos seus preços, o crédito para os demais setores da economia será estabilizado. Contribuindo, portanto, para evitar a desorganização da atividade econômica[14]. Aposta semelhante faz o governo brasileiro, tanto nas ações já realizadas pelo BACEN, que liberaram 1,2 trilhão de reais[15], quanto a Emenda Constitucional nº 10/2020, que libera a compra e a venda, por parte do BACEN, de títulos públicos em mercado secundário e de títulos privados que apresentem risco de crédito[16]

No primeiro caso, trata-se de permitir ao BACEN que compre títulos emitidos pelo Tesouro Nacional, cuja função seria, em tese, financiar as ações estatais de combate à pandemia do COVID-19[17]. No segundo caso, os títulos privados serão monetizados. Diante de uma estimativa de declínio de 5,3% do PIB brasileiro em 2020[18], esse dinheiro disponibilizado para o setor privado tende a ser convertido em títulos públicos emitidos pelo Tesouro Nacional. Assim, além de estatizar a dívida privada, esse tipo de ação não assegura que as empresas não financeiras terão acesso ao crédito, poderão renegociar suas dívidas, manterem parte da atividade econômica e, por meio do multiplicador do gasto, garantirem parte do emprego e da renda dos trabalhadores e trabalhadoras afetados pela pandemia da COVID-19[19].

Além disso, é problemático o financiamento, por meio da emissão de dívida, das ações do Estado brasileiro de combate à pandemia e aos seus efeitos. Isso porque teria consequências futuras desastrosas sobre a relação Dívida Pública/PIB, principal indicador da política econômica para a imposição da austeridade fiscal. Esse é o principal argumento de Henrique Meirelles, ex-presidente do BACEN, que, em entrevista recente, chegou a defender a emissão monetária, por meio da expansão da base monetária, para financiar os gastos para fazer frente à pandemia e aos seus efeitos. Ainda assim, ele não foi contrário à emissão de títulos de dívida para tal financiamento, apenas deixou claro que essa forma exigiria, no futuro, medidas contundentes de austeridade fiscal[20]. 

Mesmo que alguns economistas apostem na capacidade do Estado de rolar dívida, podendo emitir títulos respeitando somente a capacidade produtiva da economia[21], há de se considerar o papel da dívida no capitalismo contemporâneo. Ela disciplina as instituições e as pessoas. O sujeito endividado – seja ele o Estado Nacional ou o trabalhador – deve se comportar de forma austera, comedida e buscar sempre novos rendimentos para honrar a dívida (num caso, privatizações; noutro, bicos ou segundo emprego)[22]. Afinal de contas, a dívida é uma obrigação quantificada com precisão, tomada de forma simples, fria e impessoal, a qual não se pode deixar de pagar – mesmo que sejam somente os seus juros[23]. Em poucas palavras, a dívida é uma técnica de poder, que condiciona as instituições e as pessoas à busca contínua do aumento da sua produtividade, conduzindo as pessoas a pressionarem pela mercantilização de diversas dimensões da vida, pois é preciso “fazer dinheiro” para honrar a dívida.

Se é apontado que o cenário para a vida social, até que haja uma vacina ou um tratamento razoável, é, até 2022, o isolamento social intermitente – ou completo – a quarentena e o monitoramento, com teste em massa; as medidas econômicas não podem apostar numa “volta da normalidade”, empenhando uma produção futura cujo modo de produzir foi um dos aspectos que nos colocou nesta situação[24]. Os efeitos disso podem ser ainda mais desastrosos, quando for constatada a inexistência das promessas de remuneração futuras – sejam elas a arrecadação do Estado, as receitas das firmas ou mesmo os recebimentos dos bancos.

Assegurar que as pessoas possam tomar as precauções necessárias para evitar o contágio implica, antes de tudo, a “criação de um salário social – renda básica universal – financiado com base em uma maior taxação das rendas e das riquezas dos capitalistas e seus associados”[25]. Em seguida, uma reorganização da produção, da distribuição, da troca e do consumo que evite o desabastecimento de alimentos e de material médico e que permita, dentre outras coisas, a continuidade dos atendimentos médicos e da pesquisa em busca de um tratamento e de uma vacina eficazes no combate à COVID-19[26]. 

Essa reorganização não partirá, contudo, do Estado ou do Mercado, uma vez que cada um de seus agentes estão preocupados demais consigo para agirem à altura da situação. Nesse momento, contamos somente com nós mesmos para impormos sobre eles, que possuem uma relação simbiótica[27], um rígido controle, orientado pela princípio de que nossa saúde, nossa subsistência e nossas vidas somente são possíveis em co-atividade, coobrigação, cooperação e reciprocidade[28]. E, por isso, nossas vidas estarão inviabilizadas se nossas ações continuarem a ser orientadas pela concorrência e pela autovalorização de nós mesmos e dos resultados das nossas atividades. Assim, para salvarmos nossas vidas e os seus meios de subsistência, cabe bloquearmos a produção pré-crise e agirmos numa direção diferente[29].

Nesse sentido, devemos nos perguntar quais foram os princípios das relações sociais que nos conduziram à perda dos laços de solidariedade, como recuperar esses laços sem retomar formas de dominação pessoal e, com isso, como produzir uma economia que assegure uma vida que valha a pena ser vivida e que seja passível de luto. Isso implica, dentre outras coisas, superar a mediação social pelo trabalho, cuja forma social valor se expressa por meio do dinheiro e tem na dívida monetária seu regime de obrigações. Talvez tenha chegado o momento de realmente colocar a questão: é necessário o contínuo suor no rosto de muitos para produzir uma riqueza que, no momento derradeiro, quando o vírus bate à porta, se mostra inútil? Até porque, não será com carros esportivos, bolsas de luxo, colares, banheiras de mármore de Carrara, debêntures, ações ou derivativos de balcão que iremos combater a COVID-19, não é mesmo?

NOTAS

[1] KISSLER, Stephen et al. Projecting the transmission dynamics of SARS-CoV-2 through the post-pandemic period. Science. Apr. 14, 2020. Disponível em: https://bit.ly/2XQhpk7. 
[2] Ver Kissler et al (2020).
[3] Ver figura 5 de Kissler et al (2020).
[4] Kissler et al (2020) são explícitos em reconhecerem a limitação do modelo usado para elaborar os cenários. Além disso, reconhecem os impactos negativos na economia e na sociedade da adoção das medidas sugeridas. Para mais sobre a limitação dos modelos, ver:  ADAM, David. Special report: The simulations driving the world’s response to COVID-19. Nature, 2020. Disponível em: https://go.nature.com/2VkHOF3.
[5] COVID-19 CORONAVIRUS PANDEMIC. Estatísticas de casos e de mortes por COVID-19.      Disponível em: https://bit.ly/2xKeOh3. Acesso em: 19 abr. 2020.
[6] Nota sobre os impactos econômicos e sociais da COVID-19.
Disponível em: https://bit.ly/34MWmk2.
[7] COVID-19 e o agravamento da pandemia neoliberal.
Disponível em: https://bit.ly/2zcj7SJ.
[8] Contágio Social – coronavírus, China, capitalismo tardio e o mundo natural.
Disponível em: https://bit.ly/2VGiCbb. 
[9] The Great Lockdown: Worst Economic Downturn Since the Great Depression.
Disponível em: https://bit.ly/2xylIWU.
[10] Com coronavírus, PIB tem queda anual de 6,8% no 1º trimestre na China.
Disponível em: https://bit.ly/2zfSgp1.
[11] COVID-19 Crisis Poses Threat to Financial Stability.
Disponível em: https://bit.ly/2XNYHd5.
[12] A economia real e o mercado de capitais diante da pandemia do COVID-19.
Disponível em: https://bit.ly/2zhBp5j.
[13] Lazzarato, Maurizio. É o capitalismo, estúpido!.
Disponível em: https://n-1edicoes.org/016.
[14] Cabe notar que o FMI recomenda políticas fiscais que preservem a renda das famílias nesse momento. O que está em franco desacordo com as medidas até o momento adotas pelo governo brasileiro. Ver: Fiscal Policies to Contain the Damage from COVID-19.
Disponível em: https://bit.ly/34N00dC.
[15] Quadro – Liberação de Liquidez.
Disponível em: https://bit.ly/3alirHH.
[16] Proposta de Emenda Constitucional nº 10/2020.
Disponível em: https://bit.ly/34N4Nff.
[17] COVID-19 e o Banco Central. Disponível em: https://bit.ly/2ypStW7. Financiamento monetário é arma orçamentária em “guerra” contra a covid-19.
Disponível em: https://bit.ly/2VlNmPZ. 
[18] The Great Lockdown: Worst Economic Downturn Since the Great Depression.
Disponível em: https://bit.ly/3ctESvG. Acesso em: 14 abr. 2020.
[19] Algo que já ocorre desde a primeira medida do BACEN: Varejo acusa banco de elevar juros. Disponível em: https://glo.bo/2yusPiR. Além disso, em recente entrevista, Ricardo Carneiro, ex-diretor executivo do diretor executivo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) nota que “não interessa só dar autorização ao Banco Central para comprar títulos no mercado secundário e não garantir que essa intervenção venha acompanhada também de assegurar novos financiamentos na economia, porque é disso que se trata.”. Disponível em: https://bit.ly/2yrNWCA. Entretanto, não há qualquer sinal do governo de que este exigirá contrapartidas do setor financeira assistido pela compra de títulos. 
[20] Meirelles defende ‘imprimir dinheiro’ contra crise do coronavírus: ‘Risco nenhum de inflação’.
Disponível em: https://bbc.in/2RT2Ush.
[21] Covid-19: a pandemia ensina ao mundo a verdade sobre o gasto público.
Disponível em: https://bit.ly/3cxjmq4.
[22] Lazzarato, Maurizio. O Governo do Homem Endividado. São Paulo: n-1 edições, 2017.
[23] Graeber, David. Dívida: os primeiros 5000 anos. São Paulo: Três Estrelas, 2016.
[24] Sobre esse assunto, além do texto Contágio Social – coronavírus, China, capitalismo tardio e o mundo natural. Disponível em: https://bit.ly/2VGiCbb; conferir também: Jappe, Anselm. O colapso. Disponível em: https://bit.ly/2Ki1jYL; e Scholz, Roswitha; Böttcher, Herbert. Coronavírus e o Colapso da Modernização.
Disponível em: https://bit.ly/34NuOet. 
[25] Prado, Eleutério. Entre ficção e o fetiche.
Disponível em: https://bit.ly/2XQh0hB.
[26] Para mais medidas, ver Nota sobre os impactos econômicos e sociais da COVID-19. Disponível em: https://bit.ly/34MWmk2.
[27] Mariutti, Eduardo. Estado, Mercado e concorrência. Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política. 2019, p.19.
Disponível em: https://bit.ly/3ajGd6H.
[28] Dardot, Pierre e Laval, Christian. Comum. São Paulo: Boitempo, 2017.
[29] Latour, Bruno. Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise.
Disponível em:
https://n-1edicoes.org/008-1.
 
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