Ciência e Magia

“Existe algo que une a bruxaria e a ciência aplicada ao mesmo
tempo que as separa da ‘sabedoria’ dos tempos antigos.”
C.S. Lewis (escritor inglês)

Ciência e magia possuem algo em comum? Afinal, quais são as semelhanças e quais as diferenças entre elas?

Magia (segundo o Dicionário Houaiss): “arte, ciência ou prática baseada na crença de ser possível influenciar o curso dos acontecimentos e produzir efeitos não naturais, irregulares e que não parecem racionais, valendo-se da intervenção de seres fantásticos e da manipulação de algum princípio controlador oculto supostamente presente na natureza, seja por meio de fórmulas rituais ou de ações simbólicas metodicamente efetuadas.

Embora possa parecer simplório que a ciência e a magia possuam alguma semelhança, a idéia é passível de ser discutida seriamente.

Como ilustração da continuidade histórica entre a ciência moderna e as concepções mágicas lembro que os primódios da química são herança da alquimia – um complexo sistema de crenças, conhecimentos e práticas medievais geralmente usados com objetivos quiméricos, tais como encontrar a Pedra Filosofal (substância que teria a capacidade de transformar tudo em ouro).

A semelhança essencial entre a ciência e magia é a crença em princípios/leis universais bem como o conhecimento de técnicas eficientes para manipular a natureza – as diferenças estão na forma e no conteúdo dessa crença. O cientista acredita na regularidade da natureza, na perpetuação das propriedades da matéria – então, ele elabora conceitos, desenvolve processos e constrói máquinas que o permitem alcançar resultados específicos; o mago acredita na existência de espíritos, na unidade orgânica do universo, na influência simpática – então, ele elabora conceitos e executa feitiços que o permitem alcançar resultados específicos. O cientista e o mago, como a maioria (se não totalidade) das pessoas, são semelhantes também neste aspecto: ambos buscam o poder através do uso dos recursos disponíveis,  sejam eles naturais ou sobrenaturais.

A distinção essencial entre a ciência e a magia está na forma (metodologia) e no conteúdo (ontologia) das suas crenças.

Ontologicamente, a ciência é naturalista, i.e., procura explicar/descrever os fenômenos mediante conceitos puramente materiais (matéria, energia, tempo e movimento, etc.). Já a magia é espiritualista pois assume a existência de uma realidade supranatural capaz de influenciar o transcurso dos acontecimentos mundanos, deliberadamente ou mediante estímulo.

O método científico é autocrítico e caracterizado pela experimentação: as teorias científicas devem ser comprovadas para serem aceitas como descrições fidedignas da realidade, sendo que as inadequações são investigadas para serem corrigidas. Contrariamente, a magia fundamenta seus conhecimentos em tradições e sua prática tem a forma de feitiços, cuja eficácia não é sistematicamente questionada: geralmente, os feitiços não são desacreditados por deixarem de produzir os efeitos esperados: suas falhas são sumariamente descartadas ou recebem interpretações post hoc.

Penso que há mais verdade na ciência do que a magia exatamente porque as leis científicas não são presumidas verdadeiras antes de serem aprovadas por um sistemático confronto experimental com a realidade; na verdade, o conhecimento científico não é considerado definitivo, senão passível de contínuo aperfeiçoamento.

Finalmente, o longo percurso histórico seguido pela humanidade desde a invenção da escrita até o advento da ciência moderna mostra que a ontologia e o método científicos não são ideias espontâneas da mente humana. Testemunha disso é o fato de que muitas superstições persistem atualmente apesar delas serem contrariadas pelo conhecimento científico acumulado (até certo ponto, pelo menos).

Indico este texto sobre a relação entre ciência e magia:

  • J.M. Smith: Science and Myth. Natural History Vol. 93, No.11 (November 1984): pp.11-24.

Termino citando a opinião de um pensador que não foi cientista, C.S. Lewis:

“O fato de os cientistas terem obtido sucesso onde o bruxo fracassou ergue entre eles um contraste tão forte no imaginário popular que a verdadeira história do nascimento da ciência acaba por ser mal compreendida. É possível encontrar até mesmo quem escreva sobre o século XVI dizendo que a bruxaria era então um resquício medieval e qu a ciência entrava em cena para expulsá-la. Os que estudaram o período certamente são mais dignos de confiança. Havia muito pouca bruxaria durante a Idade Média: os séculos XVI e XVII foram a época de esplendor dessa prática. O grande esforço da bruxaria e o grande esforço científico são irmãos gêmeos: um deles era doente e morreu, o outro era forte e sobreviveu. Reconheço que alguns (certamente não todos) dos primeiros cientistas eram movidos por um genuíno amor pelo conhecimento. Mas, se analisarmos o feitio daquela época como um todo, poderemos distinguir o impulso al qual me refiro. Existe algo que une a bruxaria e a ciência aplicada ao mesmo tempo que as separa da ‘sabedoria’ dos tempos antigos. Para os sábios da antiguidade, o problema principal era como conformar a alma à realidade, e a solução encontrada foi o conhecimento, a autodisciplina e a virtude. Tanto para a bruxaria quanto para a ciência aplicada, o problema é como subjugar a realidade aos desejos dos homens, e a solução encontrada foi uma técnica; e ambas, ao praticarem essa técnica, se põem a fazer coisas até então consideradas repulsivas e impiedosas – tais como desenterrar e retalhar cadáveres.”
C.S. Lewis: A abolição do homem – 2a. edição. Editora WMF Martins Fontes: São Paulo, 2012: pp.72-73.

São Mateus – ES, 31/03/2013