Estatística

Excerto sobre Estatística extraído de: Yuval Noah Harari: Homo Deus: uma breve história do amanhã. Tradução: Paulo Geiger. Editora Companhia das Letras: 2015. Capítulo 14 – A descoberta da ignorância. Seção: O dogma científico.

“Ao longo dos últimos 200 anos, desenvolveu-se um novo ramo da matemática para lidar com os aspectos mais complexos da realidade: a estatística.

Em 1744, dois clérigos presbiterianos na Escócia, Alexander Webster e Robert Wallace, decidiram criar um fundo de seguro de vida que pagaria pensões a viúvas e órfãos de clérigos falecidos. Eles propuseram que cada um dos pastores de sua igreja dedicasse uma pequena parte de sua renda para o fundo, que investiria o dinheiro. Se um pastor morresse, sua esposa receberia dividendos sobre os lucros do fundo. Isso lhe permitiria viver confortavelmente pelo resto da vida. Porém, para determinar quanto os pastores tinham de pagar a fim de que o fundo tivesse dinheiro suficiente para honrar suas obrigações, Webster e Wallace precisavam ser capazes de prever quantos pastores morreriam a cada ano, quantas viúvas e órfãos eles deixariam e quantos anos as viúvas viveriam a mais do que os maridos.

Observe o que os dois clérigos não fizeram. Eles não rezaram para que Deus lhes revelasse a resposta. Nem procuraram a resposta nas Escrituras Sagradas ou nas obras de teólogos antigos. Tampouco entraram em uma discussão filosófica abstrata. Sendo escoceses, eram sujeitos práticos. Então, contataram um professor de matemática da Universidade de Edimburgo, Colin Maclaurin. Os três reuniram dados sobre a idade em que as pessoas morriam e usaram esses dados para calcular quantos pastores provavelmente morreriam em determinado ano.

Seu trabalho se baseou em vários avanços recentes no campo da estatística e da probabilidade. Um desses avanços foi a Lei dos Grandes Números, de Jacob Bernoulli. Bernoulli havia codificado o princípio de que, embora fosse difícil prever com certeza um acontecimento específico, como a morte de uma pessoa em particular, era possível prever com grande precisão o resultado médio de muitos acontecimentos similares. Isto é, embora Maclaurin não pudesse usar a matemática para prever se Webster e Wallace morreriam no ano seguinte, ele podia, com dados suficientes, dizer a Webster e Wallace quantos pastores presbiterianos na Escócia quase certamente morreriam no ano seguinte. Por sorte, eles já contavam com os dados que poderiam usar. Tábuas atuariais publicadas 50 anos antes por Edmond Halley mostraram-se especialmente úteis. Halley havia analisado registros de 1.238 nascimentos e 1.174 mortes, obtidos da cidade de Breslávia, na Alemanha. As tábuas de Halley permitiram constatar, por exemplo, que uma pessoa de 20 anos de idade tinha uma chance em 100 de morrer em determinado ano, mas uma pessoa de 50 anos de idade tinha uma chance em 39.

Processando esses números, Webster e Wallace concluíram que, em média, haveria 930 pastores presbiterianos escoceses vivendo em um dado momento, e uma média de 27 pastores morria por ano, 18 dos quais deixariam viúvas. Cinco dos que não deixariam viúvas deixariam filhos órfãos, e dois dos que deixariam viúvas deixariam também filhos de casamentos anteriores que ainda não haviam completado 16 anos de idade. Posteriormente, eles calcularam quanto tempo deveria se passar até a viúva morrer ou se casar novamente (em ambos os casos, o pagamento da pensão cessaria). Com esses números, Webster e Wallace puderam determinar quanto dinheiro os pastores que aderissem ao fundo teriam de pagar para garantir o futuro de seus entes queridos. Contribuindo com 2 libras, 12 xelins e 2 pence por ano, um pastor podia garantir que a esposa viúva receberia pelo menos 10 libras por ano – uma soma considerável naqueles dias. Se achasse que isso não era suficiente, podia escolher pagar mais, até o limite de 6 libras, 11 xelins e 3 pence por ano – o que garantiria à viúva a soma ainda mais atraente de 25 libras por ano.

De acordo com seus cálculos, no ano 1765 o Fundo de Pensão para as Viúvas e os Filhos dos Pastores da Igreja da Escócia teria um capital totalizando 58.348 libras. Seus cálculos se mostraram incrivelmente precisos. Quando esse ano chegou, o capital do Fundo era 58.347 libras – apenas uma libra esterlina a menos que o previsto! Isso era ainda melhor do que as profecias de Habacuque, Jeremias ou são João. Hoje, o fundo de Webster e Wallace, conhecido simplesmente como Scottish Widows, é uma das maiores empresas de seguros e pensões do mundo. Com ativos no valor de 100 bilhões de libras, oferece garantias não só a viúvas escocesas, mas a qualquer um disposto a comprar suas apólices.”

Micromath

Destaco aqui algumas pérolas encontradas no livro

  • Keith Devlin: Micromath: mathematical problema and theorems to consider and solve on a computer. Macmillan Publishers LTD, 1984.

 

1) O Polinômio de Euler

 f(n) = n^2 + n + 41.

(Verfica-se que f(-n) = f(n-1), de modo que os valores de f nos argumentos inteiros negativos repetem os valores de f dos argumentos inteiros não-negativos.)

O Polinômio de Euler é espetacular porque retorna números primos para qualquer argumento inteiro entre 0 e 39 (inclusive). Além disso, para o primeiro milhão inteiros, pouco menos da metade dos valores de f são primos. Tal comportamento é bastante peculiar…

Um programa que verifica a primalidade dos valores do Polinômio de Euler: Polinomio-Euler!

2) Números de Fermat

Fermat conjecturou que são primos todos os números da forma

F(n) = 2^(2^n)+1; n  = 0, 1, 2, …

Fermat verificou sua conjectura apenas para os argumentos 0, 1, 2, 3, 4, não conseguindo prová-la e nem exibir um contraexemplo.

Euler mostrou que F(5) = 4294967297 é divisível por 641, provando que a conjectura de Fermat é falsa.

Posteriormente, verificou-se também que F(7) e F(16) também não são primos. Hoje, conjectura-se que os valores de F são primos apenas para os argumentos 0, 1, 2, 3, 4 – quase o oposto da conjectura original de Fermat!

Conclusão: Indução é algo temerário – até os gênios erram!

3) Números perfeitos

Um número perfeito é um inteiro positivo que é igual à soma dos seus divisores próprios.

Os primeiros números seis números perfeitos são:

6, 28, 496, 8128, 33550336, 8589869056.

Um matemático grego do primeiro século A.D. chamado Nicomachus conjecturou com base nos quatro primeiros números perfeitos conhecidos na sua época que  o n-ésimo número perfeito teria exatamente n dígitos e que terminaria alternativamente em 6 e 8. Ambas conjecturas foram demonstradas serem falsas pelas descobertas do quinto (séc.XV) e sexto (sec. XVI) números perfeitos.

Euclides provou que: se para algum inteiro positivo n o número 2^n-1 é primo, então (2^n-1)2^(n-1) é um número perfeito par.

Euler provou o resultado inverso: todo número perfeito par tem a forma (2^n-1)2^(n-1), para algum número inteiro positivo n tal que 2^n-1 é primo.

Números primos da forma 2^n-1 são chamados primos de Mersene.

A relação entre primos de Mersene e números perfeitos descoberta por Euclides e Euler é totalmente  inusitada em face das suas definições. Este é um exemplo interessante das belezas surpreendentes da Matemática.

4) Bugs

Uma estimativa para o custo dos bugs em softwares comerciais (do que podemos deduzir que é muito importante desenvolvermos procedimentos eficazes para evitá-los):

  • “‘Debugging’ is one of the first words people learn when they start to write computer programs. It is well nigh impossible to write a program of more than half a dozen lines (if that) without some small and practically undetectable error creeping in which, inevitably, causes the program to produce mysteriously bizarre results when it is run (always assuming that it will run at all). ‘Bugs’ are what they are called, and ‘debugging’ is the art (if that is the word) of finding and removing them. / It has been estimated that around 80 per cent of all the time (and hence money) spent on writing commercial software is spent on debugging. And it is unlikely that any largescale program is ever rendered totally bug-free. This goes for the operating systems and language compilers upon which everyone’s programs ultimately depend, besides the programs written by computer users.” (p.92)
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Computação Quântica…

Notícias sobre computação quântica

  • Cision: Pela primeira vez, o novo computador H2 Quantum da Quantinuum criou matéria quântica topológica não-abeliana e entrelaçou seus ânions. May 11, 2023. Link!
  • Nature Physics’ Editorial: Quantum possibilities. Nature Physics 14, 321 (2018). DOI:10.1038/s41567-018-0125-9. Link!
    • “Commercial quantum devices are in their infancy, but the growing industry targeting quantum technologies is already having a tangible effect on the job market.”
  • Sasikanth Manipatruni, Dmitri E. Nikonov, Ian A. Young: Beyond CMOS computing with spin and polarization. Nature Physics, volume 14, pages: 338–343 (2018). DOI:10.1038/s41567-018-0101-4. Link!

Computador Quântico da IBM

A IBM anunciou o desenvolvimento de um computador quântico e disponibilizou acesso por uma plataforma online:

A RBEF publicou um artigo que explica o que é um computador quântico e como os recursos da IBM podem ser usados:

Atualmente,  há uma corrida para se conquistar o domínio das tecnologias quânticas e alguns países já têm desenvolvido estratégias para garantir sua vanguarda. É ilustrativo o documento produzido pelo Conselho Consultivo para Estratégias em Tecnologia Quântica do Reino Unido (QT SAB):

  • UK Quantum Technologies Strategic Advisory Board (2015): National strategy for quantum technologies. Link!
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Matemática: fascinante e fundamental

A Matemática é fascinante e esse fascínio leva muitas pessoas a se dedicarem a seu estudo e desenvolvimento. Mas não é por causa do fascínio pela Matemática que a sociedade paga os matemáticos e custeia suas despesas com pesquisa: é por causa das suas inumeráveis aplicações na ciência, tecnologia, engenharia, comunicação, economia, administração,…

De fato, nossa sociedade tecnológica tornou-se tão dependente da Matemática que atualmente é impossível conceber a humanidade persistindo sem ela, a não ser imaginando a ocorrência de um cataclismo mundial que deixe relativamente poucos de nós vivos!

“Nem sempre esta relação da matemática com outras ciências é clara, nem é ela que guia o trabalho dos matemáticos, mais atraídos por questões de estética e beleza, mas essa influência de suas descobertas em outras áreas costuma aparecer, nem que seja muitos anos depois. A verdade é que, se a matemática parar, a física, a biologia, a engenharia também vão estagnar, e por isso é importante para um país manter um corpo de pesquisadores capacitados em matemática.” Fernando Codá Marques (IMPA) [1]

[1] Cesar Baima (O Globo): A multiplicação de talentos do Instituto de Matemática Pura e Aplicada. JC e-mail 4742, de 07 de Junho de 2013. Link!

Ciência e Magia

“Existe algo que une a bruxaria e a ciência aplicada ao mesmo
tempo que as separa da ‘sabedoria’ dos tempos antigos.”
C.S. Lewis (escritor inglês)

Ciência e magia possuem algo em comum? Afinal, quais são as semelhanças e quais as diferenças entre elas?

Magia (segundo o Dicionário Houaiss): “arte, ciência ou prática baseada na crença de ser possível influenciar o curso dos acontecimentos e produzir efeitos não naturais, irregulares e que não parecem racionais, valendo-se da intervenção de seres fantásticos e da manipulação de algum princípio controlador oculto supostamente presente na natureza, seja por meio de fórmulas rituais ou de ações simbólicas metodicamente efetuadas.

Embora possa parecer simplório que a ciência e a magia possuam alguma semelhança, a idéia é passível de ser discutida seriamente.

Como ilustração da continuidade histórica entre a ciência moderna e as concepções mágicas lembro que os primódios da química são herança da alquimia – um complexo sistema de crenças, conhecimentos e práticas medievais geralmente usados com objetivos quiméricos, tais como encontrar a Pedra Filosofal (substância que teria a capacidade de transformar tudo em ouro).

A semelhança essencial entre a ciência e magia é a crença em princípios/leis universais bem como o conhecimento de técnicas eficientes para manipular a natureza – as diferenças estão na forma e no conteúdo dessa crença. O cientista acredita na regularidade da natureza, na perpetuação das propriedades da matéria – então, ele elabora conceitos, desenvolve processos e constrói máquinas que o permitem alcançar resultados específicos; o mago acredita na existência de espíritos, na unidade orgânica do universo, na influência simpática – então, ele elabora conceitos e executa feitiços que o permitem alcançar resultados específicos. O cientista e o mago, como a maioria (se não totalidade) das pessoas, são semelhantes também neste aspecto: ambos buscam o poder através do uso dos recursos disponíveis,  sejam eles naturais ou sobrenaturais.

A distinção essencial entre a ciência e a magia está na forma (metodologia) e no conteúdo (ontologia) das suas crenças.

Ontologicamente, a ciência é naturalista, i.e., procura explicar/descrever os fenômenos mediante conceitos puramente materiais (matéria, energia, tempo e movimento, etc.). Já a magia é espiritualista pois assume a existência de uma realidade supranatural capaz de influenciar o transcurso dos acontecimentos mundanos, deliberadamente ou mediante estímulo.

O método científico é autocrítico e caracterizado pela experimentação: as teorias científicas devem ser comprovadas para serem aceitas como descrições fidedignas da realidade, sendo que as inadequações são investigadas para serem corrigidas. Contrariamente, a magia fundamenta seus conhecimentos em tradições e sua prática tem a forma de feitiços, cuja eficácia não é sistematicamente questionada: geralmente, os feitiços não são desacreditados por deixarem de produzir os efeitos esperados: suas falhas são sumariamente descartadas ou recebem interpretações post hoc.

Penso que há mais verdade na ciência do que a magia exatamente porque as leis científicas não são presumidas verdadeiras antes de serem aprovadas por um sistemático confronto experimental com a realidade; na verdade, o conhecimento científico não é considerado definitivo, senão passível de contínuo aperfeiçoamento.

Finalmente, o longo percurso histórico seguido pela humanidade desde a invenção da escrita até o advento da ciência moderna mostra que a ontologia e o método científicos não são ideias espontâneas da mente humana. Testemunha disso é o fato de que muitas superstições persistem atualmente apesar delas serem contrariadas pelo conhecimento científico acumulado (até certo ponto, pelo menos).

Indico este texto sobre a relação entre ciência e magia:

  • J.M. Smith: Science and Myth. Natural History Vol. 93, No.11 (November 1984): pp.11-24.

Termino citando a opinião de um pensador que não foi cientista, C.S. Lewis:

“O fato de os cientistas terem obtido sucesso onde o bruxo fracassou ergue entre eles um contraste tão forte no imaginário popular que a verdadeira história do nascimento da ciência acaba por ser mal compreendida. É possível encontrar até mesmo quem escreva sobre o século XVI dizendo que a bruxaria era então um resquício medieval e qu a ciência entrava em cena para expulsá-la. Os que estudaram o período certamente são mais dignos de confiança. Havia muito pouca bruxaria durante a Idade Média: os séculos XVI e XVII foram a época de esplendor dessa prática. O grande esforço da bruxaria e o grande esforço científico são irmãos gêmeos: um deles era doente e morreu, o outro era forte e sobreviveu. Reconheço que alguns (certamente não todos) dos primeiros cientistas eram movidos por um genuíno amor pelo conhecimento. Mas, se analisarmos o feitio daquela época como um todo, poderemos distinguir o impulso al qual me refiro. Existe algo que une a bruxaria e a ciência aplicada ao mesmo tempo que as separa da ‘sabedoria’ dos tempos antigos. Para os sábios da antiguidade, o problema principal era como conformar a alma à realidade, e a solução encontrada foi o conhecimento, a autodisciplina e a virtude. Tanto para a bruxaria quanto para a ciência aplicada, o problema é como subjugar a realidade aos desejos dos homens, e a solução encontrada foi uma técnica; e ambas, ao praticarem essa técnica, se põem a fazer coisas até então consideradas repulsivas e impiedosas – tais como desenterrar e retalhar cadáveres.”
C.S. Lewis: A abolição do homem – 2a. edição. Editora WMF Martins Fontes: São Paulo, 2012: pp.72-73.

São Mateus – ES, 31/03/2013

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